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A intimação e a incidência da multa no cumprimento da sentença

31 de julho de 2008

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O novo art. 475-J, inserido no Código de Processo Civil pela Lei nº 11.232, de 22/12/05, em vigor seis meses após sua publicação, que se deu em 23/12/05, estabeleceu, no seu caput, o seguinte:
“Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze (15) dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação”.
Da redação lacunosa do dispositivo transcrito decorreram algumas dúvidas e controvérsias, a respeito não só do termo a quo e dos requisitos para fluência do prazo de 15 dias, como também do procedimento e forma de intimação do devedor para cumprimento voluntário da condenação mencionada e, ainda, da incidência da multa referida.
As incipientes jurisprudência e doutrina sobre o tema vêm enfrentando essas dúvidas e controvérsias no suprimento das lacunas daquela norma processual.
Recentemente, a egrégia 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão do eminente ministro Humberto Gomes de Barros, decidiu a questão de que aqui se cuida, na forma da ementa agora destacada:

“LEI Nº 11.232/2005. ARTIGO 475-J, CPC. CUMPRIMENTO DA SENTENÇA. MULTA. TERMO INICIAL. INTIMAÇÃO DA PARTE VENCIDA. DESNECESSIDADE.
1. A intimação da sentença que condena ao pagamento de quantia certa consuma-se mediante publicação, pelos meios ordinários, a fim de que tenha início o prazo recursal. Desnecessária a intimação pessoal do devedor. 2. Transitada em julgado a sentença condenatória, não é necessário que a parte vencida, pessoalmente ou por seu advogado, seja intimada para cumpri-la. 3. Cabe ao vencido cumprir espontaneamente a obrigação, em quinze dias, sob pena de ver sua dívida automaticamente acrescida de 10%”(REsp. nº 954859/RS; j. 16/08/07; v.u., DJU 27/08/07).

Como se vê, o STJ, ao exercer, pela primeira vez quanto à matéria em foco, a sua função uniformizadora da jurisprudência nacional e da interpretação da lei federal, entendeu que o termo inicial do prazo de 15 dias, previsto na citada regra processual, deve ser fixado a partir do trânsito em julgado da decisão condenatória, independentemente de intimação do devedor ou de seu advogado. Expirado o prazo sem cumprimento da obrigação, é aplicável, desde logo, a multa de 10% sobre o montante da condenação.
Os fundamentos do acórdão daquela e. Corte residem, em síntese, nos argumentos de que:

“(…) A reforma da lei teve como escopo imediato tirar o devedor da passividade em relação ao cumprimento da sentença condenatória. Foi-lhe imposto o ônus de tomar a iniciativa de cumprir a sentença de forma voluntária e rapidamente. O objetivo estratégico da inovação é emprestar eficácia às decisões judiciais, tornando a prestação judicial menos onerosa para o vitorioso. (…) A lei não explicitou o termo inicial da contagem do prazo de quinze dias. (…) O art. 475-J não previu, também, a intimação pessoal do devedor para cumprir a sentença. (…) Em verdade, o bom patrono deve adiantar-se à intimação formal, prevenindo seu constituinte para que se prepare e fique em condições de cumprir a condenação. Se o causídico, por desleixo, omite-se em informar seu constituinte e o expõe à multa, ele deve responder por tal prejuízo.”

Posteriormente, diversos julgados do STJ, lastreados nesse aresto, decidiram no mesmo sentido (v.g.: AG 101091-RS – 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJ 12/05/08; AG 965762-RJ – 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 1º/04/08; AG 993387-DF – 4ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 18/03/08; AG 953570-RJ – 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 27/11/07 e AG 988363 – RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, DJ 08/05/08).
Sem se ingressar, neste passo, em outros aspectos jurídicos do tema, é necessário salientar que os fundamentos expostos no acórdão, em parte transcrito, não atentaram para alguns relevantes fatos de ordem prática, concernentes à correta administração da Justiça.
De fato, a imposição da multa logo ao fim do prazo corrido de 15 dias contados da data do trânsito em julgado da condenação, independentemente de intimação, teria que ser precedida de certas providências inarredáveis, sob pena de se infligirem sérios prejuízos ao devedor.
A primeira delas consistiria na determinação de que se fizesse, de imediato, a certificação do trânsito em julgado, o que, muitas vezes, pode levar dias para ocorrer, a fim de se evitar que o processo fique inacessível à parte interessada durante a fluência do prazo em tela para a realização desse ato cartorário. O jurisdicionado, além de ter direito ao exame dos autos (CPC, art. 155, parágrafo único) por todo o tempo de fluência do prazo, não pode ser onerado, conforme jurisprudência sobre o art. 180 do CPC, por obstáculos criados pela outra parte, pelos serventuários, pelo magistrado ou por qualquer outro embaraço judicial criado por terceiros, fora do controle do advogado.
Do mesmo modo, se os autos se encontrassem nos tribunais ter-se-ia que ordenar, ademais, que permanecessem na secretaria à disposição do patrono do vencido, durante todo o curso do prazo aludido, para consultas, expedição de guias e juntada de comprovantes de depósitos, sob pena de se inviabilizar o pagamento do débito, enquanto os autos estiverem em trâmite entre os tribunais superiores e inferiores, ou entre estes e as varas de origem, e, portanto, inteiramente indisponíveis, submetendo-se o devedor, nessa hipótese, à inevitável incidência da multa, independentemente de sua iniciativa de satisfazer a obrigação.
Tais questões devem ser especialmente consideradas, diante do teor do art. 510 do CPC:

“Transitado em julgado o acórdão, o escrivão, ou o secretário, independentemente de despacho, providenciará a baixa dos autos ao juízo de origem, no prazo de 5 (cinco) dias.”

Eis aí expressa a primeira regra legal desprezada pelo aresto citado do egrégio Superior Tribunal de Justiça.
Se o escrivão ou o secretário se acham obrigados, por lei, a providenciar a baixa dos autos no prazo de 5 dias cuja fluência se daria concomitantemente à daquele outro, de 15 dias, para pagamento da condenação – que ainda se somaria ao tempo de remessa ao juízo de origem, de autuação, registros, anotações e despachos – salta aos olhos a impossibilidade do devedor de consultar o processo para verificação do preciso quantum debeatur; de requerer e obter expedição de guias de depósito e as respectivas juntadas de seu comprovante, naquele período de 15 dias, para cumprimento de sentença, contados do trânsito em julgado da decisão definitiva prolatada no feito.
Por outro lado, agora já abordando aspectos jurídicos mais técnicos do assunto, se no corpo da decisão cognitiva, especialmente na segunda e terceira instâncias, não figurasse, traduzido em números, o valor exato da condenação, perfeitamente atualizado, acrescido de juros, custas e honorários, sem qualquer imprecisão, a multa do art. 475-J do CPC seria inaplicável ao término do prazo de 15 dias do seu trânsito em julgado.
Com efeito, o aludido art. 475-J fala, textualmente, em quantia certa ou já fixada em liquidação. Portanto, antes que se imponha a multa em exame, é necessário que se proceda, primeiro, à liquidação do débito, ainda que por mero cálculo aritmético, conforme os arts. 475-A, § 1º, e 475-B do CPC.
O referido art. 475-A, caput, dispõe: “Quando a sentença não determinar o valor devido, procede-se à sua liquidação”. Já o seu § 1º estipula: “Do requerimento de liquidação de sentença será a parte intimada na pessoa de seu advogado”. E o art. 475-B preceitua: “Quando a determinação do valor da condenação depender apenas de cálculo aritmético, o credor requererá o cumprimento da sentença, na forma do art. 475-J dessa lei, instruindo o pedido com a memória discriminada e atualizada do cálculo”.
Dessa forma, na hipótese da decisão cognitiva transitada em julgado não conter, em seu texto, o valor exato e numérico da condenação, como, inclusive, ocorreu no v. aresto referido do STJ, e como, aliás, acontece na grande maioria das vezes, a lei preconiza que a regra do art. 475-J do CPC seja, forçosamente, conjugada com as dos arts. 475-A, caput e § 1º, e 475-B do mesmo diploma legal. Destarte, só depois de liquidado o quantum debeatur, a requerimento do credor, e intimado o advogado do vencido, é que poderá se iniciar a contagem do prazo de incidência da multa em questão.
Eis aí os outros dispositivos processuais desprezados pelo acórdão do STJ, uma vez que da v. decisão daquela e. Corte não constava o preciso quantum debeatur objeto da condenação. Logo, não poderia ter mandado que se contasse o prazo em tela do trânsito em julgado, sob pena de multa, independentemente da intimação do devedor ou de seu advogado. Deveria ela, então, ter aplicado, sistematicamente, os referidos arts. 475-A, caput, § 1º, 475-B e 475-J do CPC, segundo os quais, quando a determinação do valor da condenação depender apenas de cálculo aritmético, o credor requererá o cumprimento da sentença, instruindo o pedido com a memória discriminada e atualizada do cálculo, intimando-se o devedor, na pessoa de seu advogado.
De outro turno, no caso da decisão cognitiva transitada em julgado apresentar o valor exato da condenação perfeitamente atualizado, acrescido de juros, custas e honorários, sem qualquer imprecisão, deveriam ser rigorosamente observadas as providências de ordem prática mencionadas acima, respeitado o comando do art. 510 do CPC, antes de impor-se a multa aqui tratada, sob pena de se causarem severos e exagerados prejuízos ao devedor, que, em tal hipótese, não teria possibilidade de cumprir sua obrigação.
Convém destacar, neste ponto, outras substanciosas e aprimoradas compreensões sobre o tema, distintas daquela manifestada pelo STJ. A 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, em brilhante acórdão do desembargador Jessé Torres, decidiu, apoiada em sólidos precedentes do mesmo Tribunal e na norma do art. 475-A, § 1º, do CPC, que:

“(…) O prazo para pagamento conta-se a partir da intimação do devedor, mediante publicação no D.O., para o pagamento do valor constante de planilha apresentada pelo credor.” (Agravo de Instrumento nº 2008.002.04152 – j. 12/02/08)

Dentre os precedentes referidos, encontra-se a judiciosa decisão da 11ª CCTJ/RJ, da lavra do desembargador Cláudio de Mello Tavares, nestes termos:

“Necessidade de intimação de devedor na pessoa de seu advogado, através da imprensa oficial. A Lei nº 11.232/2005, quando alterou a sistemática processual, objetivou dar maior efetividade aos títulos judiciais, prestigiando o cumprimento espontâneo das obrigações. Desta forma, do trânsito em julgado da sentença, no caso de condenação por quantia certa, emerge o dever do réu em pagar o que é devido ao autor, como mero prosseguimento do processo de conhecimento e sua inação acarretar-lhe-á a incidência da multa prevista no artigo 475-J do Código de Processo Civil (…).” (Agravo nº 2007.002.23381)

Indo mais além ainda, existem precedentes, dentre outros, da 13ª CCTJ/RJ, no AI nº 2007.002.35067 – Rel. Des. Sérgio Cavalieri; da 14ª CCTJ/RJ, no AI nº 2008.002.02400 – Rel. Des. Cleber Ghelfenstein e da 2ª CCTJ/RJ, no AI nº 2007.002.00509 – Rel. Des. Elizabete Filizzola, todos entendendo pela necessidade de intimação pessoal do devedor por via postal, em homenagem às garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
Na doutrina sobre a matéria, renomados processualistas divergem quanto à forma de intimação do devedor e o termo a quo da fluência do prazo, para cumprimento voluntário da condenação. Sergio Bermudes acredita ser indispensável a intimação do devedor para ciência do trânsito em julgado. No entanto, segundo ele, a publicação do despacho “cumpra-se” mantido pela praxe forense seria suficiente ao início do prazo de 15 dias do art. 475-J (“A Reforma do Código de Processo Civil”, Saraiva, 3ª edição, 2008, a ser lançada).
Humberto Theodoro Jr. sustenta que o devedor teria que tomar a iniciativa de cumprir a condenação no prazo legal, que fluiria do momento do trânsito em julgado, independentemente de sua intimação. Porém, se o trânsito em julgado ocorresse em instância superior, enquanto os autos não baixassem à instância de origem, o prazo não correria e só seria contado, então, a partir da intimação às partes da chegada do processo ao juízo da causa (“As Novas Reformas do Código de Processo Civil”, Forense, Rio de Janeiro, 2006, p. 145).
Araken de Assis leciona que o prazo se inicia a partir do momento em que a prestação se torna exigível, tendo o devedor que solver espontaneamente a dívida (“Cumprimento da Sentença”, Forense, Rio de Janeiro, 2006, p. 258). Por outro lado, Alexandre Câmara ensina que o prazo começa da intimação pessoal do devedor, e não do advogado, pois é um ato que só à parte cabe realizar, pessoalmente. Para ele, tal intimação deverá ser determinada pelo juiz de ofício, a partir do momento em que a sentença se tornar eficaz (“A Nova Execução da Sentença”, Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 4ª ed., 2007, p. 115-116).
Conclui-se, pois, sopesados todos os argumentos, que, na hipótese de no corpo da decisão cognitiva transitada em julgado não figurar o valor numérico exato da condenação, perfeitamente atualizado e acrescido de todos os encargos legais, deve-se obedecer ao procedimento de liquidação da sentença previsto nos dispositivos processuais mencionados. Se, de outro modo, daquela decisão constar esse valor exato, o correto seria, respeitada a norma do art. 510 do CPC, intimar a parte, na pessoa do seu advogado, até mesmo pela simples publicação do despacho “cumpra-se”, como sustenta Sergio Bermudes, para que cumpra o julgado, sob pena, aí sim, de imposição de multa, no prazo do art. 475-J do CPC, observando-se, destarte, a mens legis, em harmonia com imperativos de ordem prática, mediante a ponderação de importantes valores e interesses jurídicos distintos, o que evitaria prejuízos excessivos ao devedor.