Edição 245
A (In)Constitucionalidade da EC 96/2017
4 de janeiro de 2021
Débora Maria Gomes Messias Amaral Advogada, Prof. da Faculdade de Direito da Unipac/Barbacena (MG) / Acadêmico da Faculdade de Direito da Unipac/Barbacena
Gustavo Bianchetti Lima Gama Acadêmico da Faculdade de Direito da Unipac/Barbacena
O efeito backlash e as ADIs 5728 e 5772
Introdução
A Constituição Federal do Brasil (CF/1988) consagra a proteção da fauna e da flora como modo de assegurar o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado no seu art. 225. Por outro lado, a Emenda Constitucional (EC) 96/2017, introduziu o §7º ao art. 225 da CF/1988, e estabelece que não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que se afeiçoem às manifestações culturais, na forma prescrita no § 1º do art. 215 da CF, e estejam registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro. Ao alterar o núcleo essencial do direito ao meio ambiente equilibrado, na modalidade da proibição de submissão de animais a tratamento cruel, essa EC gerou uma enorme discussão jurisdicional, havendo um conflito aparente de normas da CF:
Art.225: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. §1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (…)VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que submetam os animais à crueldade.
Art.215: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. §1° O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
De um lado, a CF/1988 proíbe as práticas que submetam os animais a crueldade (art. 225, § 1º, VII); por outro, o texto constitucional garante o pleno exercício dos direitos culturais, das manifestações culturais e determina que o Estado proteja as manifestações das culturas populares (art. 215, caput e § 1º). Suscitando resolver quaisquer dúvidas ou questionamentos, o poder constituinte derivado reformador aprova a Emenda Constitucional 96 em junho de 2017, estabelecendo a possibilidade da prática desportiva com o uso de animais desde que registradas como manifestações culturais.
A proporção gigantesca que este conflito de normas constitucionais tomou deve-se ao julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4983, em outubro de 2016, decidindo, inicialmente, sobre a inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 15.299/2013 do Ceará, que regulamentava o ato da vaquejada naquele ente federado, e a posterior aprovação da EC 96, de junho de 2017, feita pelo Congresso Nacional. A então Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, afirma em parecer encaminhado ao STF que “Não é possível extrair da Constituição autorização para impor sofrimento intenso e para mutilar animais, com fundamento no exercício de direitos culturais e esportivos”. No entendimento da Procuradoria-Geral da República (PGR), a EC 96/2017, que autoriza as vaquejadas, rodeios e laço em território brasileiro, é inconstitucional. Desta forma, foi proposta pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal no STF uma nova ADI, a de número 5728.
Neste contexto, o poder de reforma constitucional cria um conceito eminentemente normativo de crueldade, dizendo, ainda com outras palavras, que o mesmo representa uma crueldade de fato; uma vez que as práticas, pelo fato de por serem enquadradas como manifestações culturais, por tal razão não são cruéis.
Evolução da prática da vaquejada e o seu contexto jurídico
A vaquejada teve seu início com a “pega do boi no mato”, que nada mais é que um ato corriqueiro no qual o vaqueiro está transportando uma boiada e, por ausência de cuidado ou por uma falha no cercado, o gado entra em uma roça ou em uma floresta. Entretanto, os homens não podem entrar imediatamente na mata, pois normalmente há vários fatores impeditivos, como uma quantidade grande de bois para continuar o caminho; uma quantidade pequena de vaqueiros; pelos aspectos naturais e geológicos do local; ou por se tratar de um boi mais selvagem.
Criou-se então a partir daí o hábito de premiar quem conseguisse pegar ou recuperar esse boi desnorteado, como forma de trabalho. No contexto do trabalho ou lida do vaqueiro e da pecuária, é necessário recuperar o animal dado o valor significativo de cada um que se perde dentro da mata.
Preliminarmente, a prática esportiva da vaquejada não segue na contramão do Código Civil de 2002, pois, a restituição de coisas perdidas e o direito à recompensa estão previstos em seu art. 1.234.
Art. 1.234: “Aquele que restituir a coisa achada, nos termos do artigo antecedente, terá direito a uma recompensa não inferior a cinco por cento do seu valor, e à indenização pelas despesas que houver feito pela conservação e transporte da coisa, se o dono não preferir abandoná-la.
Parágrafo único: Na determinação do montante da recompensa, considerar-se-á o esforço desenvolvido pelo descobridor para encontrar o dono, ou o legítimo possuidor, as possibilidades que teria este de encontrar a coisa e a situação econômica de ambos”.
Com o habitual pagamento de recompensas “da pega do boi no mato”, o ato foi sendo institucionalizado como uma “profissão”. Todavia, cresceu o viés de disputa entre os vaqueiros, e só se beneficiaria de tal prestígio aquele que capturasse o boi. Desde então, criou-se a cultura de que, possuindo bons cavalos, boa destreza, boas habilidades e boas técnicas para pegar o animal no mato, o vaqueiro faria jus à indenização ou recompensa.
A recompensa foi um grande passo para a iniciação do esporte, pois os profissionais do campo buscavam se aperfeiçoar para serem mais requisitados e também conseguirem um ganho mais significativo.
A prática de “pegar o boi” deixou de ser um trabalho efetivo para se tornar um simulacro esportivo, sendo uma simulação da lida diária do campo.
A vaquejada conhecida nacionalmente em que o boi é derrubado pelo rabo, é uma das técnicas possíveis do vaqueiro capturar o animal, pois dependendo das condições geográficas não é possível o arremesso do laço, tal como em uma mata fechada.
Dentro de um terreno desfavorável para a captura do gado, existem três possibilidades para recuperar o animal; a primeira delas é o abalroamento do cavalo em cima do boi, que requer uma habilidade do cavalo e que este não tenha medo de uma colisão; a segunda é o arremesso do próprio vaqueiro por cima do gado, que é muito arriscado e; a terceira que é a mais utilizada, é a queda pela cauda, pois o boi quando está correndo levanta o rabo, possibilitando ao vaqueiro uma forma de dominação sobre ele.
Não é novidade para o meio jurídico que a vaquejada, o rodeio e o laço são práticas rotineiras da sociedade brasileira, possuindo festas de expressões nacionais, como a Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos com um público de 800 mil pessoas em 2019, movimentando cerca de R$ 900 milhões com o turismo. A tradicional Festa da Vaquejada em Serrinha, na Bahia, teve sua primeira edição em 1967, onde os vaqueiros da região se reuniam, inicialmente, como forma de confraternização. A festa ocorreu com um público de 300 mil pessoas em 2019.
Entretanto, a CF/1988 proíbe expressamente práticas que submetam os animais à crueldade em seu art. 225, § 1º, VII. O STF, ao julgar a ADI 5.728, decidiu que a prática da vaquejada era inconstitucional com a fundamentação de que o esporte fere a fauna e flora com os maus tratos aos animais.
Na visão do professor Clauver, que leciona as matérias de Direito Civil e Processo Civil na Faculdade Leão Sampaio, em Juazeiro do Norte (CE), é importante separar os cuidados dos cavalos com os cuidados dos gados. Como relatado anteriormente, a vaquejada é um reflexo de uma vida diária do vaqueiro e do animal no campo.
A queda do gado em uma perseguição dentro de uma mata onde se encontram galhos, árvores e arbustos; tudo isso é natural no dia-a-dia da lida com o gado. Já o cavalo faz a sua função natural desde que o homem começou a utilizá-lo como meio de transporte, sendo fundamental a dominação dele através de equipamentos, que trazem um conforto para o homem e segurança ao conduzi-lo. Sem o mínimo de equipamento torna-se impossível a utilização do animal.
É válido frisar os cuidados que esses animais sofrem todos os dias, possuindo alimentações balanceadas, acompanhamento médico veterinário frequentemente, cuidadores que dedicam suas vidas para que os animais tenham uma vida saudável. Além da saúde, eles são submetidos a treinamentos especializados para adquirir melhor rendimento nas competições. Como em todas as realidades da vida, existem exceções, pessoas que não observam e não guardam os cuidados mínimos para com os seus animais, não se tratando de uma exclusividade dos esportes com animais.
Em constante mudança, e consequentemente debates, a vaquejada sofreu alterações robustas na sua prática. Os membros participantes e organizadores (comissão organizadora, vaqueiro, médico veterinário, dono do gado e etc.) do esporte ao detectarem práticas abusivas, foram tomando medidas de prevenção, desde cuidados específicos com os animais, como limitações de corridas do mesmo animal dentro da competição, utilização obrigatória do protetor de cauda, até, o ajuste do piso da pista para um amortecimento do animal durante a queda.
Quanto à regulamentação legal do tema, após o julgamento, em outubro de 2016, de uma ADI (4983) contra Lei Estadual do Ceará de 2013, que previa a prática da vaquejada e foi declarada inconstitucional por maioria do STF, outra Lei Estadual do Ceará de setembro de 2017 dispôs sobre a prática da vaquejada naquele mesmo ente federado, estabelecendo diretrizes que resguardem o bem-estar dos animais envolvidos, bem como a proteção ambiental, sanitária e segurança geral do evento. A Nova Lei estadual regulamenta a vaquejada, coíbe práticas abusivas e ilegais, resguardando também a integridade física do animal, o art. 4º da Lei 16.321/2017 observa que:
Art. 4º Ficam obrigados os organizadores da vaquejada a adotar medidas de proteção à integridade física do público, dos vaqueiros e dos animais, tendo por diretrizes:
§ 1º Quanto aos animais:
I – proibição da participação de qualquer animal que possua ferimentos com sangramentos;
II – proibição ao uso de bois com chifres pontiagudos, que ofereçam riscos aos competidores e/ou cavalos, exceto bovino com protetor de chifres;
III – utilização de arreios que não causem ferimentos ao cavalo;
IV – transporte dos animais em veículos apropriados, de acordo com a espécie, oferecendo-lhes conforto, bem como instalação de infraestrutura que garanta a integridade física dos animais, tudo em tamanho adequado à quantidade de indivíduos prevista, e que tenham sombreamento, água e alimentação suficientes;
V – cada bovino não deve correr mais de três vezes, por competição;
VI – o brete deverá ser cercado com material resistente não perfurante ou cortante e com piso de areia frouxa não inferior a 20cm de altura;
VII – proibição do uso de objetos perfurantes, cortantes e de choques no gado bovino envolvido no evento;
VIII – só participarão do evento animas com as exigências sanitárias contempladas;
IX – o piso da pista de corrida deve possuir camada de 30 centímetros de areia frouxa e não inferior a 40 centímetros entre as faixas de pontuação formando colchão de areia, sendo capaz de minimizar possíveis acidentes;
X – É vedada a participação de bovino sem o protetor de cauda, o qual será de responsabilidade dos organizadores na qualidade, estado de conservação e entrelaçamento na forma adequada.
Importante dizer que a nova Lei Estadual de 2017 foi sancionada e promulgada após a aprovação da Emenda Constitucional nº 96 de junho de 2017 que também prevê a prática desportiva que utiliza animais, desde que sejam manifestações culturais.
Na opinião do Professor entrevistado Clauver, um vaqueiro cearense há mais ou menos quatro anos e que preza pelos cuidados dos seus animais, “existe uma polêmica grande voltada sobre um aspecto específico, que são os esportes que lidam com animais, e essas mesmas pessoas esquecem a realidade que os animais são submetidos no seu dia-a-dia.”
É mister ressaltar que a prática da vaquejada é uma realidade cultural nacional, e a maior crítica dos defensores desse esporte é que ao invés do Estado fomentar os devidos cuidados com os animais, ele afasta a regulamentação, criando maior possibilidade de uma prática ilegal.
A constitucionalidade x constitucionalidade da regulamentação das práticas desportivas com uso de animais
Como exposto, em outubro de 2016, o Plenário do STF julgou procedente a ADI 4983, ajuizada pelo Procurador-Geral da República, contra a Lei nº 15.299/2013, do Estado do Ceará, que regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural no estado. Para o Ministro relator, Marco Aurélio, o sentido da expressão “crueldade” constante no inciso VII do parágrafo 1º do art. 225 da CF/1988 alcançaria a tortura e os maus-tratos infringidos aos bois durante a prática da vaquejada. Assim, para ele, revelava-se “intolerável a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada”. Na votação da ADI 4983 seguiram o relator os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e a então Presidente da Corte, Ministra Cármen Lúcia. Ficaram vencidos os ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Luiz Fux, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, que entenderam que a vaquejada consiste em manifestação cultural. Segundo o Ministro Dias Toffoli, que votou pela validade da Lei Estadual, na vaquejada há técnica, regramento e treinamento diferenciados, o que torna a atuação exclusiva de vaqueiros profissionais. Percebe-se nesta decisão o quanto é polêmico o debate, tendo em vista que seis ministros votaram pela inconstitucionalidade da Lei e outros cinco pela constitucionalidade.
Em posterior reação à decisão do STF na ADI 4983, atuando como legislador constituinte e representante do povo, o Congresso Nacional brasileiro aprovou a Emenda Constitucional nº 96/2017, acrescentando o § 7º ao art. 225 da CF/1988 para determinar que práticas desportivas que utilizem animais não são consideradas cruéis e apresentando condições que as especifica.
Acresceu-se ao art. 225 da CF/1988:
§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 nesta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.
Não há dúvidas entre os estudiosos do Direito que tal atitude do Congresso Nacional foi uma reação legislativa, mas muitos se perguntaram sobre a constitucionalidade de uma reação legislativa. A CF/1988 é avessa a tal ato?
A teoria de Montesquieu sobre a separação dos poderes é um tema que gera grandes debates em todas as democracias, e o Brasil não foge da regra. Um debate assíduo no campo do Direito Constitucional e também da Ciência Política é a reação legislativa. No estudo da hermenêutica constitucional existe um fenômeno chamado “fossilização da Constituição” que é quando uma Corte Suprema decide que alguma lei é inconstitucional, essa ficaria inválida ad aeternum e jamais poderia ser considerada constitucional depois de tal decisão. Todavia esse fenômeno é indesejado pelo pensamento dominante doutrinário e jurisprudencial.
Existe também dentro da hermenêutica constitucional a “Teoria da última palavra” que possui três correntes que debatem de quem seria a decisão final sobre os temas incontroversos.
A primeira corrente é aquela que delega o monopólio da última palavra à Corte Superior do Estado. No Brasil essa interpretação surge a partir do art. 102 da CF/1988 “Compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição (…)”, entretanto, assevera o Professor Samuel Sales Fonteles da seguinte forma:
Note-se que a condição de Guardião da Constituição, ostentada pelo Supremo Tribunal Federal, nunca excluiu a possibilidade de que outras pessoas e entidades efetuassem a interpretação constitucional, até porque, como foi dito alhures, qualquer destinatário dos comandos constitucionais, por um imperativo lógico, precisa interpretar os seus preceitos.
A segunda corrente é a da soberania legislativa, com o seu fundamento arraigado ao princípio da representatividade, uma vez que os legisladores foram eleitos e estariam em melhores condições para solucionar impasses morais à luz do princípio democrático.
Por fim, encontra-se a terceira corrente que é a “teoria dos diálogos institucionais”, sustentada por inúmeros juristas com o fundamento de que, em uma democracia, não existe uma última palavra.
É notório que no decorrer dos anos de vigência da nossa Carta Magna inúmeras vezes o STF, com suas diversas composições de ministros, modificou seu entendimento em determinados temas, podemos citar dois casos famosos, que são primeiro a decisão do Ministro Luís Roberto Barroso, ao descriminalizar o aborto até a 12ª semana; e, segundo, a decisão do plenário sobre a prisão em segunda instância. Ambas as decisões geraram grandes debates dentro do parlamento e para ambas foram apresentados projetos de lei com a intenção de modificar tais decisões.
O Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) Doorgal Borges de Andrada, ao responder questionamento dos autores deste artigo sobre o tema da reação legislativa e o seu posicionamento a respeito da EC/96, observou que:
Primeiro, há que se entender que qualquer Lei para entrar em vigor ela necessita passar por aquilo que o Direito chama de processo legislativo: ser aprovada nas comissões, no plenário, ser sancionada (não vetada) pelo Executivo. Em todas essas fases ela pode ser rejeitada pelo Legislativo e vetada pelo Executivo, sob argumento do controle interno de constitucionalidade, sobretudo na Comissão de Constituição e Justiça (do Senado e da Câmara), se eles assim entenderem que ela é inconstitucional, como também por esse motivo pode ser o veto presidencial. Sendo aprovada e sancionada, somente assim ela se torna passível de ser apreciada e julgada em uma ação de inconstitucionalidade pelo STF.
Com isso, enquanto uma lei aprovada não vier a ser sancionada e não entrar em vigor, o Judiciário não tem como declará-la inconstitucional, pois ela não é uma legislação vigente. Disso decorre que pode o Legislativo aprovar leis com temas que já foram julgados anteriormente pelo STF, quantas vezes o Congresso quiser, pois ela será uma legislação nova atacável pelo STF (ainda que com mesmo tema) somente depois de se tornar lei vigente. E, como lei nova, ao ser examinada pelo STF, ele até pode alterar seu entendimento sobre o mesmo assunto, porque o STF pode mudar o seu entendimento jurídico, aliás, como exemplo, foi o caso da Constitucionalidade da prisão em segunda instância que eles entendiam válida por seis votos a cinco. Mesmo sem ter havido uma nova lei, resolveram mudar e entender que a prisão era inconstitucional por seis votos a cinco, apenas porque houve uma nova ação sobre o mesmo tema.
Portanto, o STF não pode interferir na independência de outro poder (Legislativo), ou no processo legislativo, ainda que o projeto de lei traga tema debatido em lei anterior julgada inconstitucional. Porém, após a entrada em vigor dessa nova Lei, o STF poderá ser acionado (somente quando ela entrar em vigor) e pode manter ou mudar de posição.
Especificamente quanto à EC/96, parece que ela alterou o texto constitucional. Nesse caso, o entendimento do STF – agora com muito mais razão – pode ser alterado em relação às leis novas. Se até mesmo sem que seja alterado o texto da CF/1988, pode o STF alterar sua interpretação (como já ocorreu, embora seja raro), então, agora, com muito mais motivo poderá fazê-lo, diante de alteração da CF/1988 após a EC/96.
Por outro lado, quanto ao mérito da EC/96 (terra de minha avó materna, meus tios e primos), entendo que a EC/96 não fere cláusulas pétreas, portanto é constitucional. Quanto ao Poder Legislativo do Ceará, pode sim, sem qualquer impedimento, aprovar nova Lei Estadual agora com base e suporte na EC/96. A Assembleia Legislativa do Ceará é livre e independente para fazer por meio do processo legislativo/político tudo que for do interesse dela. Se depois, alguém for provocar o STF, então ele novamente dará sua interpretação em face dessa nova Lei do Ceará e também em face desse novo texto da CF/1988, alterado pela EC/96.
Em suma, se mesmo antes que não houvesse a EC/96 poderia o STF mudar de entendimento em face, caso houvesse uma nova ação de inconstitucionalidade do mesmo tema com outra lei nova, com muito mais força ele pode alterar o entendimento (não manter a antiga interpretação) agora em face da mudança da CF/1988.
Sobre o mérito do tema, embora eu não seja um Constitucionalista especializado, não vejo presente o dolo ou a vontade de praticar a crueldade no animal. Muito antes disso, o que se objetiva na festa popular e tradicional é a disputa/diversão com ritos de preservação de conceitos de várias gerações (aliás, o risco de morte não apenas para o animal, mas também para o homem, como ocorre nas touradas).
Essa visão jurídica contrária ou favorável ao mérito, sempre terá uma carga decorrente da formação educacional, religiosa, social e política/ideológica de cada ministro, tanto que a decisão do STF foi de apenas seis votos a cinco, o que por si só demonstra toda fraqueza no acerto da decisão e a sua grande polêmica jurídica.
Possivelmente os ministros mais originários ou de infância vivida no interior do País serão favoráveis a essa festa tradicional, e, os que vieram e viveram em regiões urbanas (criados no asfalto) de grandes cidades, talvez estes não assimilem a mesma postura e sensibilidade para o entendimento da vida do homem do interior e suas tradições.
Muitas doutrinas sustentam que a reação legislativa é extremamente constitucional e é um pilar da democracia, tal como ocorre no caso de exorbitância do Poder Executivo quando edita seus atos normativos. Prevê o art. 49, V, CF/1988 que é “da competência exclusiva do Congresso Nacional sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.
Segundo esta linha de pensamento, foi proposta em fevereiro de 2011 a PEC n° 3/2011 e em maio do mesmo ano a PEC 33/2011, ambas de autoria do Deputado Federal Nazareno Fonteles (PT/PI), a primeira visando alterar a redação do inciso V do art. 49 da CF/1988, para que fosse atribuída ao Congresso Nacional a competência de “sustar os atos normativos dos outros poderes que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”(grifo nosso); e a segunda alterar a quantidade mínima de votos de membros de tribunais para declaração de inconstitucionalidade de leis; condicionando o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo STF à aprovação pelo Poder Legislativo e submetendo ao Congresso Nacional a decisão sobre a inconstitucionalidade de emendas à Constituição.
O que a primeira PEC almejava, mais especificamente, era estender até o Judiciário a autorização para suspender atos dos dois poderes, já que, como citado acima, a atual redação constitucional só trata de sustar atos do Poder Executivo. O argumento era de que a mudança não implicaria a reforma de decisões judiciais – mas apenas possibilitaria a revisão de atos praticados pelo STF no exercício de suas competências impróprias de regulamentação. Tais PECs foram arquivadas nos termos do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, sem debate em Plenário e tramitação final.
Segundo estudiosos como Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia, Mussi Assad Mussi Koury Neto e Mariana Cristina Pereira Melo, o argumento apresentado buscaria tão somente revestir com capa de sentido os verdadeiros interesses subjacentes às propostas, denunciados pelo contexto em que elas foram feitas. Ao justificá-la, o autor da primeira proposta reclamou da crescente interferência do Judiciário em áreas de competência do Poder Legislativo quando interpreta algumas leis.
É verdade que o modelo de interpretação desenvolvido pela Escola da Exegese, era aquele em que a palavra final em relação à interpretação das normas era do legislador. Os exegetas defendiam que a atividade judicial deveria valer-se do método gramatical para alcançar o exato sentido da vontade geral explicitada na lei, de modo a ter-se tornado comum compreender a interpretação do direito como a busca da voluntas legislatoris (ou da voluntas legis). Desta forma, ao transpô-la, o Poder Judiciário estaria exorbitando seu poder e entrando em área de competência do Poder Legislativo.
Já Castanheira Neves, no seu estudo sobre o método de interpretação jurídica, sinalizou o rompimento com o modelo exegético, a partir da consciência de que a interpretação está atrelada à aplicação, contraria a pretensão do Legislativo de manter-se no monopólio hermenêutico das normas que produzem.
Por outro lado, deve-se salientar que as decisões do STF, conforme já prevê a CF/1988 quanto à independência entre os Poderes da República, não vinculam o Legislador, e permitem que o Congresso Nacional supere essas decisões mediante novo processo legislativo, com a edição de leis ou emendas constitucionais.
O efeito backlash
Bastante pertinente ao tema, é o debate apresentado pela doutrina sobre o instituto do chamado “efeito backlash”, ou seja, a reação contrária da população mediante decisões das cortes superiores.
As supremas cortes são chamadas a pronunciarem-se a respeito de alguns temas controversos, entretanto, nem sempre o posicionamento institucional adotado é bem recebido pelo corpo social. A resposta dada pelo Estado, pode inflamar reações hostis e, em casos mais extremos, gerar até mesmo uma verdadeira convulsão social.
A reação popular em relação a alguns julgados das cortes superiores, tem a sua devida importância na sociedade, razão pela qual os professores de Direito da Yale Law School, Robert Post e Reva Siegel apontam que esse fenômeno é capaz de ativar uma cidadania adormecida, em um efeito cascata, capaz de contagiar os demais cidadãos. Senão vejamos:
O constitucionalismo democrático sugere, ademais, que controvérsias provocadas por decisões judiciais podem até mesmo ter efeitos positivos para a ordem constitucional americana. Cidadãos que se opõem a decisões judiciais são politicamente ativos. […] Eles procuram persuadir outros americanos a adotarem seus entendimentos sobre a Constituição. Estas formas de engajamentos levam os cidadãos a se identificarem com a Constituição e uns com os outros. O debate popular sobre a Constituição infunde as memórias e os princípios da nossa tradição constitucional com significados que governam a lealdade popular e que nunca se desenvolveria se uma cidadania normativamente alienada se submeter, de forma passiva, ao julgamento dos juízes e tribunais.
Como se nota, o efeito backlash não se trata somente de uma reação popular em determinadas decisões judiciais, mas promove mudanças na cidadania, mudanças dentro do Poder Legislativo, no Poder Executivo e também uma modificação indireta no Poder Judiciário.
Embora o tema abordado não seja de grande repercussão dentro da doutrina brasileira, alguns ministros do STF já reconhecem a importância de tal instituto. O Ministro Luís Roberto Barroso e o Ministro Luiz Fux já tangenciaram o tema, tecendo elogios ao marco teórico do constitucionalismo democrático.
Em uma análise sobre a EC 96/2017, verifica-se que não houve reação backlash em relação a ADI 4983/CE, pois, não houve grande repercussão social, somente ocorreu um efeito legislativo, este é o posicionamento do estimável Professor Samuel Sales Fonteles em seu livro “Direito e backlash”. Neste sentido:
Essa é a razão pela qual, no ordenamento brasileiro, a Emenda à Constituição nº 96/2017, que estatuiu não haver crueldade em práticas desportivas com animais, pode (e deve) ser tida como uma reação à ADI 4983/CE, precedente em que o STF reputou crudelíssima a prática da vaquejada, porém, em uma rigorosa análise científica, não se trata de uma prova cabal de backlash. Não se tem conhecimento de que a decisão da mais alta corte brasileira despertou significativas hostilizações sociais, mas sim um lobby de um setor muito específico da economia, sobretudo a cearense. A EC nº 96/2017 só poderia ser considerada como sinalizadora de um backlash se acompanhada de outros sintomas característicos desse controverso fenômeno social.
O Professor Fonteles diz na citação supramencionada, que a EC/96 poderia ser um backlash se acompanhada de outros sintomas. Com a devida vênia, acredito que o Professor não levou em consideração alguns tópicos por ele mesmo HAVIA levantado em seu livro, para medir o backlash em outros casos.
O quesito principal no livro para medir este “efeito” é a manifestação social, porém, é importante ressaltar, que a maior manifestação que uma sociedade pode fazer, é através de uma desobediência civil, fato é, que não se ouviu dizer que as vaquejadas foram interrompidas por causa da decisão da ADI 4983/CE.
Mais um ponto abordado como medidor de um backlash é a ocorrência de uma eleição atípica (o backlash não ocorre em um tempo determinado, mas em todas as reações da sociedade), fato é, que as eleições de 2018, foram uma resposta da sociedade, também, em relação à política ambiental e cultural.
Outro quesito apresentado no livro são as indicações para o Tribunal, pois através dessa reação da sociedade brasileira pode-se influenciar nas duas novas indicações para o STF durante a Administração Federal 2019/2022.
Diante de todos os fatos, é importante concluir que, a sociedade não somente elegeu um Legislativo mais conservador, como elegeu também um Governo que foi além da EC 96/2017, incluindo a vaquejada, o rodeio e o laço como patrimônio cultural brasileiro.
A aprovação da Lei nº 13.873/2019 e a polêmica dos decretos executivo e legislativo
Em 18 de setembro de 2019 o presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou a lei que regulamenta as práticas de vaquejada, rodeio e laço. Tal lei, de nº 13.873/2019, alterou a Lei nº 13.364/2016, para incluir o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestação cultural nacional, elevar essas atividades à condição de bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro e dispor sobre as modalidades esportivas equestres tradicionais e sobre a proteção ao bem-estar animal. A nova Lei de 2019 ampliou a disposição da Lei de 2016 para incluir o laço e a prática esportiva das atividades ligadas ao boi e cavalos como patrimônio cultural, bem como previu a proteção do animal.
Pouco antes da alteração legislativa acima, em 16 de agosto de 2019, o presidente da República editou o Decreto Presidencial nº 9.975/2019, de acordo com a sua competência regulamentadora prevista no art. 84, IV e VI da CF/1988, e dispôs sobre a avaliação de protocolos de bem-estar animal elaborados por entidades promotoras de rodeios pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. De acordo com o Decreto cabe ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento atestar o reconhecimento dos aludidos protocolos de bem-estar animal e compete aos órgãos de sanidade agropecuária estaduais e distrital, como instância intermediária do Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária, verificar o seu cumprimento. Tal Decreto Executivo visou regulamentar a Lei nº 10.519/2002 que trata da promoção e a fiscalização da defesa sanitária animal quando da realização de rodeios.
Em 19 de agosto de 2019 foi proposto pelo Deputado Federal Célio Studart (CE) o Projeto de Decreto Legislativo 516/2019 visando sustar o Decreto de 16 de agosto de 2019 do presidente da República que regulamentou a fiscalização sanitária animal quando da realização dos rodeios em todo território nacional.
Para o aludido deputado a norma passa por cima de leis municipais e estaduais, além de decisões judiciais, que baniram algumas práticas do rodeio consideradas prejudiciais à saúde animal, como as provas do laço e de bulldog (em que o bezerro tem o pescoço imobilizado pelo peão).
É fato que a CF/1988 prevê a competência do Congresso Nacional para sustar atos normativos do Poder Executivo é expressa nos termos do art. 49, inciso V, da Constituição Federal, e determina que a extrapolação do poder regulamentar da autoridade administrativa, bem como a sobreposição dos limites de delegação legislativa serão alvos de regulação pelo Poder Legislativo.
Segundo a proposta do deputado em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Decreto Legislativo em questão observa e analisa preceitos constitucionais com o objetivo de impedir que o Poder Executivo, de maneira monocrática, e sem nenhum debate por meio do Congresso Nacional, desconsidere decisões judiciais e legislações municipais e/ou estaduais anteriormente construídas de maneira inconsequente e injustificada.
Segundo expressamente diz o aludido Deputado Célio Studart em seu Projeto Protocolizado na Câmara:
A proibição judicial da prova do laço, bem como provas de bulldog, conforme observado em 2006, em Barretos (SP), embasou-se, prioritariamente, na incapacidade por parte dos produtores do evento em demonstrar, por meio de estudo, comprovação de que as atividades eram inofensivas ou que não implicariam em sofrimento animal. Em 2010, foi aprovada lei municipal neste sentido, proibindo a realização de quaisquer provas de laço no município (Lei nº 4.446/2010). Em 2011, no entanto, um bezerro teve de ser sacrificado após ficar paraplégico durante uma prova realizada em Barretos. A equipe veterinária da produção do evento atribuiu o ocorrido ao peão praticante por erro de técnica, refutando a possibilidade de maus-tratos na realização da atividade. Em 2015, houve tentativa, por meio de aprovação de lei na Câmara dos Vereadores, de sustar a legislação que proibiu, em 2010, a realização de provas desta natureza. Apesar de sancionada pelo prefeito de Barretos à época, a lei foi considerada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, embasando-se na Constituição Estadual paulista, considerou a tentativa de Barretos de voltar a permitir as provas de laço como um “inaceitável retrocesso”.
Outro caso de proibição judicial da prova do laço também ocorreu no Estado do Paraná, em que ação civil pública interposta pelo Ministério Público estadual, com o objetivo de impedir a realização de evento que cause maus-tratos em animais (sedéns de qualquer espécie, natural e material, esporas de qualquer tipo, corda americana, choques, peiteiras, barrigueiras, sinos, laços e outros), foi sentenciada favoravelmente. Na ocasião, a juíza responsável pela decisão expôs, em sua argumentação, que “esporte em que um dos envolvidos não optou por competir não é esporte. É covardia”. Além da Constituição Estadual paulista e das infindáveis discussões e mobilizações em prol da causa animal, a própria Constituição Federal prevê a proteção destes e impõe “ao poder público e à coletividade o dever de defender o meio-ambiente e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. A submissão de animais à crueldade bem como práticas que coloquem em risco sua função ecológica são expressamente vedadas pela Carta Magna, conforme o disposto no inciso VII do parágrafo 1º do art. 225.
Nesta linha de interpretação proibitiva, diz-se que a atividade de vaquejada e rodeios impõem, em vários momentos, riscos à integridade física dos animais e por isso a prova do laço deveria ser uma medida refutada. Segundo os seus defensores, as perseguições seguidas de laçadas e derrubadas de animal em rodeios ou eventos similares traz aos animais grande sofrimento físico, psíquico, além de causar lesões orgânicas, rupturas musculares e paralisia geradas pelo intenso desgaste do animal. Neste contexto, entendem os oponentes da aprovação de tais atividades que, nas vaquejadas, a violência é constante. Neste sentido, ao evidenciar a crueldade aos animais nesta prática, estar-se-ia contrariando o que dispõe a Constituição Federal.
Em 21 de setembro de 2020, o Projeto de Decreto Legislativo nº 516/2019 encontra-se aguardando parecer do relator na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) da Câmara dos Deputados.
Mas, apesar da proposta de Decreto Legislativo acima continuar tramitando, entende-se que a aprovação da Lei nº 13.873/2019, debatida no Congresso Nacional, pôs fim à polêmica proposta pelo Deputado Célio Studart. Ou seja, neste momento ou até que se dê outra interpretação ao caso via judicial, está regulada via Lei Ordinária Federal, constitucionalmente debatida e aprovada, a prática de tais atividades desportivas envolvendo animais no Brasil, desde que cumpridas as recomendações e restrições quanto ao bem estar dos animais.
A ADI 5.728
Em julho de 2017, o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal ajuizou a ADI 5728, no STF, para questionar a EC/96, aprovada em junho de 2017, que considerou como não cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais. De acordo com a entidade autora, a emenda constitucional questionada foi aprovada para contornar a declaração de inconstitucionalidade da Lei do Ceará que legalizava a prática da vaquejada, em decisão proferida pelo STF em outubro de 2016.
Como já aludido anteriormente, a emenda questionada inseriu o § 7º ao art. 215 da CF/1988, dispositivo que, segundo o fórum, deve consagrar a proteção ao meio ambiente. O texto da emenda diz, na íntegra, que “para fins do disposto na parte final do inciso VII do parágrafo 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o §1º do art. 215 nesta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos”.
Na ADI 5728 proposta, a entidade alega que a EC/96 afrontou o núcleo essencial do direito ao meio ambiente equilibrado, na modalidade da proibição de submissão de animais a tratamento cruel, previsto no art. 225 (§1º, inciso VII) da CF/1988. Sustenta que a norma ofende também o art. 60 (parágrafo 4º, inciso IV), segundo a qual não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir cláusulas pétreas, entre elas, se encontra o direito fundamental de proteção aos animais.
O Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, como autor da ADI, citou, como precedentes, as decisões anteriores do STF que julgaram inconstitucionais as brigas de galo e a vaquejada e pediu a concessão de liminar para suspender a eficácia da norma. Sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, foi aplicado ao caso o procedimento abreviado do art. 12 da Lei nº 9.868/1999, com o intuito de que a decisão seja tomada em caráter definitivo, sem prévia análise de liminar, em razão da relevância da matéria.
A Procuradoria Geral da República, através da então Procuradora-Geral Raquel Dodge, apresentou em 3 de maio de 2018, Parecer na ADI 5728 no sentido de considerar inconstitucional a Emenda questionada:
A Emenda Constitucional 96, de 6 de junho de 2017, ao não considerar cruéis práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam “manifestações culturais” (e este é conceito extremamente vago, no qual múltiplas práticas podem ser inseridas), colide na raiz com as normas constitucionais de proteção ao ambiente e, em particular, com as do art. 225, § 1 o, VI, que impõe ao poder público a proteção da fauna e da flora e veda práticas que submetam animais a crueldade (inciso VII).
(…)
A norma promulgada pelo constituinte derivado contraria recente decisão do Supremo Tribunal Federal que assentou a inconstitucionalidade das vaquejadas e definiu que “a obrigação de o Estado garantir todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do art. 225 da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade”. A estreita associação entre a tutela constitucional do ambiente (aí incluída, naturalmente, a proteção da fauna), os direitos fundamentais e a dignidade humana foi bem percebida por diferentes ministros nos votos que proferiram na ADI 4.983/CE.
(…)
A emenda constitucional ainda contém uma ilogicidade insuperável: define como não cruéis as práticas desportivas se forem reconhecidas como manifestação cultural. Ocorre que a crueldade intrínseca a determinada atividade não desaparece pelo fato de uma norma jurídica a rotular como “manifestação cultural”. A crueldade ali permanecerá, qualquer que seja o tratamento jurídico a ela atribuído e não há dúvida de que animais envolvidos em vaquejadas são submetidos a condições degradantes e sistemáticas de lesões e maus-tratos, as quais caracterizam tratamento cruel, que encontra vedação no art. 225, § 1o, VII, da Constituição da República. (grifo nosso)
(…)
Não há dúvida de que práticas cruéis como vaquejadas, brigas de galo, a farra do boi e atividades análogas colidem com a Constituição da República, principalmente com o art. 225, § 1º, VII.
Desta forma, a Procuradora-Geral da República opinou pelo conhecimento da ADI 5728 e, no mérito, pela procedência do pedido formulado, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da EC/96. Segundo a PGR, não é porque compreendemos que o fato de determinada prática é considerada manifestação cultural que lhe retiramos a característica da crueldade.
Até o dia 21 de setembro de 2020, data de análise e escrita deste artigo, a ADI 5728 encontra-se em tramitação no STF, aguardando julgamento.
A ADI 5.772
Em setembro de 2017, o então procurador-geral da República Rodrigo Janot, ajuizou no STF outra ADI, de nº 5772, com pedido de liminar para questionar a mesma EC/96, segundo a qual práticas desportivas que utilizem animais não são consideradas cruéis, nas condições que especifica; a expressão “Vaquejada”, nos artigos 1º , 2º e 3º da Lei nº 13.364/2016, que eleva a prática de vaquejada à condição de patrimônio cultural imaterial brasileiro; e a expressão “as vaquejadas”, no art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 10.220/2001, que institui normas gerais relativas à atividade de peão de rodeio e o equipara a atleta profissional. Assim, além da Emenda Constitucional, a ação também impugna as leis federais que regulamentam a prática da vaquejada. Na ação a Procuradoria Geral da República alega que, embora a EC considere a possibilidade de tratar como manifestação cultural a atividade desportiva com o uso de animais e as leis federais regulamentem, entre outras práticas, a vaquejada:
Atividade, porém, que inevitavelmente submeta animais a tratamento violento e cruel, como a vaquejada, ainda que seja manifestação cultural, é incompatível com a ordem constitucional, em particular com os artigos. 1º, III (princípio da dignidade humana), e 225, § 1º, VII (proteção da fauna contra crueldade), da Constituição da República, e com a jurisprudência do STF.
A ADI 5772 também está aguardando julgamento
Desta forma, a questão continua judicializada, e, ainda sem decisão final.
A reação legislativa à decisão anterior e contrária do STF às práticas desportivas utilizando animais, como o caso da vaquejada, integra a dinâmica própria dos chamados diálogos institucionais ou constitucionais que devem ocorrer entre os Poderes Legislativo e Judiciário, a fim de que seja encontrada a melhor interpretação que se possa extrair das normas constitucionais, de modo que não haja um órgão ou Poder que seja sempre o que dará a última palavra sobre o sentido e alcance da Constituição.
Já a reação do STF à reversão legislativa de sua jurisprudência constitucional depende do tipo de ato normativo que foi utilizado pelo Congresso Nacional para tanto. Nas ADIs propostas como questiona-se uma emenda constitucional ela somente será considerada inválida pela Corte se atentar, de forma clara, contra os limites definidos no art. 60 e seus §§, da Constituição; caso contrário, ela deverá prevalecer.
O Ministro Luiz Fux, em precedente anterior já explicou que a superação legislativa de precedentes da Suprema Corte é fruto dos diálogos institucionais que devem ser travados entre os Poderes em questão, assim para ele:
Essa práxis dialógica, além de não ser incomum na realidade interinstitucional brasileira, afigura-se perfeitamente legítima – e, por vezes, desejável –, estimulando prodigioso ativismo congressual, desde que, é claro, observados os balizamentos constitucionais. Da análise dos retromencionados arestos e da postura institucional adotada pelo STF em cada um deles, pode-se concluir, sem incorrer em equívocos, que (I) o Tribunal não subtrai ex ante a faculdade de correção legislativa pelo constituinte reformador ou legislador ordinário, (II) no caso de reversão jurisprudencial via emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá, nas hipóteses estritas, de ultraje aos limites preconizados pelo art. 60 e seus §§, da Constituição, e (III) no caso de reversão jurisprudencial por lei ordinária, excetuadas as situações de ofensa chapada ao texto magno, a Corte tem adotado um comportamento de autorrestrição e de maior deferência às opções políticas do legislador. Destarte, inexiste, descritivamente, qualquer supremacia judicial nesta acepção mais forte.
Sobre o tema, é imperioso dizer que, em abril de 2018, o Ministro Marco Aurélio, do STF, julgou prejudicada a ADI 5713, ajuizada pela PGR contra a Lei nº 10.428/2015, do Estado da Paraíba, que autoriza a prática da vaquejada. Segundo o Ministro relator Marco Aurélio, a ação perdeu seu objeto depois da promulgação da EC/96, que permitiu práticas desportivas que utilizem animais, desde que reconhecidas como manifestações culturais e regulamentadas por lei que assegure o bem-estar dos animais. De acordo com o ministro, com a edição da EC 96, “modificou-se, de forma substancial, o tratamento constitucionalmente conferido à vaquejada, ficando prejudicada a análise desta ação”. No entanto, o ministro destacou que o Tribunal ainda enfrentará a matéria nas duas ADIs (5728 e 5772) em trâmite na Corte contra a emenda.
Conclusão
“Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” O povo é detentor do poder soberano do Estado e, através de seus representantes indiretos, aprovou o Projeto de Lei nº 8240/17 com a votação de 402 favoráveis e 34 votos contrários. Após a aprovação da Câmara do Deputados, o presidente da República sancionou a referida Lei nº 13.873/2019. Da mesma forma, os constitucionalistas reformadores aprovaram a EC/96, como legítimos representantes do povo.
Rousseau pondera a soberania do governo da seguinte forma:
Consagra o povo como fonte básica de toda autoridade política; proclamada o bem comum como justo fim do governo; fortalece a opinião de que o Estado é um organismo social, fazendo-o depositário da consciência pública e da vontade geral; mantém a doutrina democrática de que a verdadeira base do dever político assentada na aquiescência; veicula a possibilidade de uma harmonia fundamental entre a liberdade e a autoridade.
Como dito, em 18 de setembro de 2019, o presidente da República sancionou a Lei nº 13.873, alterando a Lei nº 13.364/2016, e regulamentou a vaquejada, o rodeio e o laço como práticas esportivas-culturais do Brasil. Segundo interpretação pela aprovação, a lei visa resguardar a cultura de toda a Nação, sendo que a prática do laço é uma expressão cultural da região sul do País; o rodeio é praticado em toda a Região Sudeste e Centro-Oeste; já a vaquejada é praticada nas regiões Norte e Nordeste.
Importante destacar que a Lei nº 13.873/2019 incumbiu ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento atestar os regulamentos específicos para o rodeio, a vaquejada, o laço e as modalidades esportivas equestres aprovados pelas suas respectivas associações ou entidades legais reconhecidas, que assegurem a proteção ao bem-estar animal e prevejam sanções para os casos de descumprimento.
O §2º do art. 3º-B da lei prevê:
§ 2º Sem prejuízo das demais disposições que garantam o bem-estar animal, deve-se, em relação à vaquejada:
I – assegurar aos animais água, alimentação e local apropriado para descanso;
II – prevenir ferimentos e doenças por meio de instalações, ferramentas e utensílios adequados e da prestação de assistência médico-veterinária;
III – utilizar protetor de cauda nos bovinos;
IV – garantir quantidade suficiente de areia lavada na faixa onde ocorre a pontuação, respeitada a profundidade mínima de quarenta centímetros.”
O Decreto nº 9.975/2019, anterior à citada Lei, no intuito de regulamentar a Lei nº10.519/2002, que trata da promoção e da fiscalização da defesa sanitária animal quando da realização de rodeios, dispôs que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento atestará o reconhecimento dos aludidos protocolos de bem-estar animal e que compete aos órgãos de sanidade agropecuária estaduais e distrital verificar o seu cumprimento. Mas, há discussão proposta por deputado federal na Câmara dos Deputados em agosto de 2019 visando sustar o decreto presidencial.
Por outro lado, tramitam ainda no STF duas ADIs (5.728 e 5.772) visando a declaração de inconstitucionalidade da EC/96 por alegada ofensa ao núcleo essencial do direito ao meio ambiente equilibrado, na modalidade da proibição de submissão de animais a tratamento cruel, previsto no art. 225 (parágrafo 1º, inciso VII) da Constituição Federal.
Entende-se que, interpretando-se de acordo com o debatido efeito backlash, é possível afirmar que o povo brasileiro por meio do constitucionalismo democrático e através de uma reação legislativa desaprovou a decisão final do STF no julgamento da ADI 4983 que julgou a Lei Estadual do Ceará como inconstitucional.
Resta-nos ainda saber como se dará a interpretação do STF nas duas ações em trâmite e qual será a reação do povo, assim como também do Poder Legislativo e do Poder Executivo.
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