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A gratuidade nos transportes coletivos

5 de novembro de 2005

Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

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A gratuidade nos transportes coletivos , levantada em face  da leviana iniciativa de legisladores estaduais e municipais, visando a obtenção de prestígio político-eleitoreiro, – sem medir as conseqüências do fato – , tem e vem causando na justiça inúmeras controvérsias, além de despertar a frustração nos beneficiários das despropositadas iniciativas.

Não deixa de causar pasmo e revolta que políticos queiram formar “clientela eleitoral” mediante o irresponsável artifício de prometer e oferecer aos eleitores a gratuidade indiscriminada nos transportes coletivos, olvidando intencionalmente o parágrafo 2º do artigo da 112 da referida Constituição, in litteres.

“ 2º – Não será objeto de deliberação proposta que vise conceder gratuidade em serviço público prestado de forma indireta sem a correspondente indicação da fonte de custeio.”

Por oportuno e lembrança aos legisladores interessados, transcrevemos o convincente parecer do grande e consagrado mestre do direito, o jurista e professor Miguel Reale quanto à gratuidade para os idosos:

“Art.230 – A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

Parágrafo 1º – Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares.

Parágrafo 2 – Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos”.

À primeira vista, pode parecer que esta última determinação não comporta dúvida a tal ponto que alguém poderia invocar a superada parêmia: interpretatio in claris, mas estariam, a meu ver, em irrecusável erro de hermenêutica, quer sob o ponto de vista lógico-sistemático, quer sob o prisma teleológico-político de fundamental importância na interpretação dos textos constitucionais. Se não vejamos.

Em sucinto trabalho, dedicado à “Hermenêutica jurídica estrutural” – que considero a mais condizente com as exigências ético-politicas de nosso tempo – lembro de algumas diretrizes que me parecem, hoje em dia, dominantes em matéria de interpretação do Direito, pedindo vênia para lembrar aqui três desta notas características, a saber:

a) A interpretação das normas jurídicas tem sempre caráter unitário, devendo as suas diversas formas ser consideradas momentos necessários de uma unidade de compreensão (unidade do processo hermenêutico);

b) Toda interpretação jurídica é de natureza axiológica, isto é, pressupõe a valoração objetivada nas proposições normativas (natureza axiológica do ato interpretativo);

c) Toda interpretação jurídica dá-se necessariamente num contexto, isto é, em função da estrutura global do ordenamento (natureza integrada do ato interpretativo).

(Filosofia e Ciência do direito, São Paulo, 1978, P.81)

Esta última diretriz vincula-se à chamada “interpretação sistemática”, que resulta da natureza da mesma experiência jurídica, tal como Carlos Maximiliano, em obra até hoje não superada, soube expressar de maneira admirável, com esta sábia advertência:

“Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma: acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e se restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos.

Cada preceito, portanto, é membro de um grande todo; por isso de exame em conjunto resulta bastante luz para o caso em apreço”.

(Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª ed., Rio de Janeiro, 1979, p. 128)

É a razão pela qual o mesmo jurisconsulto já escrevera, páginas antes, como que antevendo a hipótese examinada no presente parecer:

“Nada de exclusivo apego aos vocábulos. O dever do juiz não é aplicar os parágrafos isolados (sic) e, sim, os princípios jurídicos em boa hora cristalizados em normas jurídicas”. (Op. Cit. P. 119)

Em sintonia com tais conceitos, lembro a lúcida advertência de Francesco Ferrara, em conhecida monografia:

“As palavras hão de entender-se na sua conexão, isto é, o pensamento da lei deve inferir-se do complexo das palavras usadas e não de fragmentos destacados, deixando-se no escuro uma parte da disposição. Deve-se partir do conceito de todas as palavras têm no discurso uma função e um sentido próprio, de que neste não há supérfluo ou contraditório, e por isso o sentido literal há de surgir da compreensão harmônica de todo o contexto”.

(Interpretação e Aplicação das Leis, 2ª ed., Ed. Saraiva, 1940, tradução de Manuel A.D. de Andrade, p.35)

É em se tratando de interpretação de normas constitucionais que mais se impõe a subordinação do intérprete às razões decorrentes dos processos teleológico e sistemático, sempre de maneira conjugada, a fim de que a finalidade ética, política, social ou econômica da regra constitucional seja realizada no contexto unitário da previsão legislativa.

Apreciando, preliminarmente, o objeto da consulta à luz do “processo sistemático”, observo que este se impõe quer no exame isolado do artigo 230, quer em referencia à totalidade do texto constitucional.

Efetivamente, analisando-se o citado art. 230 como norma autônoma, verifica-se que a mens legis atende a evidente finalidade assistencial às pessoas idosas, estabelecendo o dever de ampará-las, exigível da família, da sociedade e do Estado, tal como é enunciado  no caput da norma, sendo sabido que é nele que reside o valor básico da regra jurídica.

O que o legislador constituinte teve em vista foi evitar o desamparo do idoso, não havendo necessidade de invocar mestres da língua para reconhecer-se que “amparo” significa auxílio ou ajuda a quem esteja em estado de necessidade.

Ora, como os parágrafos devem ser necessariamente interpretados em função da norma principal, por visarem a especificar ou excepcionar algo em razão do disposto naquela, parece-me imperativo concluir-se que a gratuidade dos transportes coletivos urbanos, declarada no parágrafo 2º, somente se refere aos idosos carentes de amparo.

A bem ver, ao proclamar o princípio da solidariedade familiar, social e estatal para com as pessoas idosas desamparadas, a fim de assegurar-lhes “participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantir-lhes o direito à vida”, o legislador, no parágrafo 2º “antecipa uma das possíveis formas de amparo por parte do Poder Público”, consistente na isenção de pagamento do transporte coletivo urbano, que é da competência dos Municípios.

Não se trata, em suma, de um direito universal, assegurado a todo e qualquer idoso. Se tivesse essa desmedida amplitude, a disposição não seria reduzida a parágrafo de um artigo de incidência restrita, mas iria integrar a numerosa lista dos direitos e garantias fundamentais que compõem o título II da Constituição, no minucioso artigo 5º, ou não menos detalhado artigo 6º relativo aos “direitos sociais”,

Donde resulta que também do ponto de vista sistemático global, cabe levar em conta a estrutura e o espírito da nova Carta Magna, a qual, em mais de um tópico, se revela fiel à regra de igualdade, tal como foi definida por Aristóteles, e que consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualem. Por outras palavras, o parágrafo 2º do artigo 230 “não consagra um privilégio a favor das pessoas idosas abandonadas, desnecessitadas do amparo do Estado”.

Por outro lado, nota-se que a interpretação lata e indiscriminada do parágrafo 2º do artigo 230 viria redundar prejuízo para a comunidade, visto como a isenção concedida a todos os idosos, abstração feita de sua condição econômica, não poderia deixar de ter efeitos tarifários, onerando os demais usuários do transporte coletivo urbano, a maioria formada de pessoas de modestos recursos.

Desse modo, o privilégio concedido injustificadamente a indivíduos desnecessitados de amparo redundaria em ônus para a classe média em geral, o que positivamente ninguém dirá ter sido objetivo do legislador constituinte, nem resulta da disposição constitucional interpretada segundo suas verdadeira finalidade ético-social.

Outro argumento em abono da interpretação estrita do parágrafo 2º, é que, em regra as concessionárias ou permissionárias de serviço público, por uma razão primordial de política tarifária, devem auferir um quantum que lhes permita oferecer “serviço adequado”, atendendo-se ao caráter especial de seu contrato, como previsto no parágrafo único do artigo 175 da Constituição.

Nem se diga que a nova Carta exclui a referência preservação do equilíbrio econômico do contrato permitido ou concedido, porque essa exclusão decorre do fato de tratar-se de um princípio de per si inerente a esse tipo de contrato, tal como é reconhecido pela unanimidade dos mestres de Direito Administrativo.

Ninguém de bom senso poderá, em verdade, exigir “serviço adequado” sem que haja correspondência e proporcionalidade entre seu custo e a importância indispensável à sua manutenção, bem como a remuneração devida ao capital, uma vez que a Constituição, erigindo a livre iniciativa a princípio fundamental do Estado brasileiro, logo no artigo 1º, somente condena os “lucros arbitrários”, conforme reza o parágrafo 4º do artigo 173.

Não tem cabimento, por conseguinte, a interpretação isolada e aberrante de um parágrafo, destacado de seu contexto que importaria, outrossim, em prejuízo inegável a um serviço público permitido, ex vi de competência conferida ao Município.

Como se vê, seja pela força de interpretação sistemática, seja em razão dos valores sociais e econômicos em jogo (elementos essenciais da interpretação teleológica), a única conclusão que se impõe é no sentido que gratuidade nos transportes coletivos urbanos somente foi assegurada aos idosos necessitados de amparo, sendo manifestos os absurdos a que nos levaria a interpretação contrária. É o caso de lembrar a velha e sábia parêmia interpretatio illa sumenda quai absurdum eviatatur.