A delação premiada tem limites na Lei nº 12.850/2013 e não se confunde com o plea bargaining

17 de março de 2015

Desembargador do TJMG e coordenador da Escola Nacional da Magistratura

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Doorgal AndradaO plea bargaining existente no direito norte-americano permite, via de regra, que no processo penal a acusação e o réu bar­ganhem acordos entre si – quase que de modo privado – que nem sempre necessitarão de homologação da justiça, dependo da legislação de cada Estado membro.

A delação premiada que está regulamentada na Lei nº 12.850/2013 difere desde o nascedouro daquele instituto, pois o sistema judicial dos Estados Unidos da América é forjado na Common Law (que prestigia os precedentes) enquanto o brasileiro, de origem romano-germânico, é baseado nos Códigos, na conhecida Civil Law, muito embora o modelo norte-americano cada dia mais caminhe em direção a esse sistema.

O acordo havido entre o MP e o réu no plea bargaining pode ser bem mais amplo e não se submete aos limites legais rígidos previstos em códigos e leis como aqui. Há casos em que o acusado se beneficia com forte redução da sua pena apenas por confessar um crime. Outros recebem alteração na capitulação da denúncia, e há o benefício da prisão perpétua para afastar a pena de morte.

No Brasil, como sabido, a delação premiada se faz nos limites da recente Lei nº 12.850/2013, observado o devido processo legal e a estrita observância da legalidade penal/ processual penal.

José Carlos Cal Garcia nos alerta:

Não obstante a expressa menção à matéria típica de direito processual, os benefícios previstos ao réu delator têm nítido caráter material, tais como a redução das penas e a fixação do respectivo regime de cumprimento. […] discutir a delação premiada significa inseri-la no contexto da função estatal voltada ao esclarecimento de determinados fatos e cuja rigorosa observância dos direitos fundamentais relacionados com o devido processo legal é pressuposto de validade e legitimidade. (Boletim Eletrônico Conjur, 8/10/2014).

O acordo público – penal – entre as partes terá de passar pelo crivo da homologação judicial e da sua previsão legal. Se benefícios homologados deixarem de observar a legalidade plena, certamente irão influenciar a sanção e o processo penal, ficando passível de nulidade toda a decisão, data venia. Seriam provas viciadas, oriundas de atos ilegais. Assim, os parâmetros do acordo limitam-se aos que estão autorizados pela Lei nº 12.850/2013.

O inesquecível e renomado Francisco de Assis Toledo leciona com muita propriedade:

O princípio da legalidade, segundo o qual nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes desse mesmo fato tenham sido instituídos por lei o tipo delitivo e a pena respectiva, constitui uma real limitação ao poder estatal de interferir na esfera das liberdades individuais. (Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 21) [grifo nosso]

O grande Aníbal Bruno registra e nos ensina:

O rigor dessa limitação e a força dessas garantias estão no princípio que faz da lei penal a fonte exclusiva de declaração dos crimes e das penas, o princípio da absoluta legalidade do direito punitivo, que exige a anterioridade de uma lei penal, para que determinado fato, por ela definitivo e sancionado, seja julgado e punido como crime. (Direito Penal, PG. 1.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956. p. 192) [grifo nosso]

Esse princípio da reserva legal é fundamento básico do nosso direito penal e processual penal. Por ele o Estado está, por um lado legitimado, a estabelecer restrições a direitos fundamentais do cidadão de forma limitada na Lei, mas sem poder atuar com abusos ante tal prerrogativa, fazendo-o somente por meio do que está previsto na lei em sentido estrito e nele encerrar toda descrição da conduta proibida e a correlata sanção.

Cabe registrar algumas regras básicas para a nossa delação premiada, pois a Lei nº 12.850/2013, no caput de seu art. 4º e o parágrafo 1º, também no parágrafo 8º do art. 4º, autoriza prêmios pela colaboração sob os seguintes prismas, obrigatórios:

•    somente para aquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal;

•    levar-se-á em conta, para a concessão do benefício, a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração;

•    o juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais;

•    vier a favorecer unicamente o acusado colaborador efetivo, jamais terceiros ainda que réus.

Não se perfazendo o conjunto das regras acima, o acordo poderá ser declarado judicialmente nulo.

E, se não bastassem as regras mínimas acima descritas, também o caput do já citado art. 4º nos diz expressamente que o réu “colaborador eficaz” terá em troca uma gama de benefícios bem limitados na lei, e o delator poderá ser premiado tão somente com:

a) perdão judicial; b) redução em até 2/3 da pena privativa de liberdade; c) substituição da pena corporal por restritiva de direitos.

Portanto, tendo sido barganhado algum benefício não previsto na lei, o réu poderá estar sendo aquinhoado com uma premiação ilegal, indevida, cabendo ao magistrado afastar a cláusula legalmente defeituosa ou até mesmo não homologar o acordo ilícito.

Eventuais benefícios penais fora da previsão do texto da lei ferirão os sagrados princípios da legalidade, da ampla defesa e do devido processo legal. A título de exemplo, enumeramos alguns benefícios que não estão elencados como prêmio e, data venia, não podem ser ajustados pelas partes: a) estender os seus efeitos do prêmio a terceira pessoa indicada pelo réu, visando beneficiar quem não é colaborador efetivo; b) deixar o Ministério Público de representar contra ele réu ou deixar de oferecer denúncia; c) validar informações que não se mostravam necessárias ou imprescindíveis ao processo e que poderiam, quando muito, caracterizar a atenuante da confissão espontânea; d) validar em benefício do réu eventual atuação ilegítima da polícia no curso das investigações; e) permitir como prêmio qualquer vantagem econômico-financeira ao réu-colaborador.

Assim, o Ministério Público, embora seja o titular da ação penal, a persecussão penal se submete aos princípios da Indisponibilidade e Indivisibilidade e não poderá, com base na Lei nº12.850/2013, dispor da obrigatoriedade da denúncia, ou seja, a delação premiada não permite negociar o não oferecimento da peça penal exordial.

É certo que a Lei nº 12.850/2013 trouxe para si experiências exitosas da Lei nº 9.099/1995, que inaugurou entre nós o espaço da justiça penal consensual, como a transação penal e a conciliação civil. Também se inspirou fortemente no plea bargaining vivido no direito norte-americano, mas dele se difere como já dito, pois, ao contrário da nossa lei, permite alterar ou até evitar o oferecimento da denúncia, e, de outro lado, ainda supervaloriza a confissão.

Quanto ao modelo alienígena, Gabriel S. Queirós Campos nos descreve as controvérsias sobre a barganha penal “privada” norte-americana:

A plea bargaining, contudo, consiste em um dos aspectos mais controversos do sistema de justiça criminal dos Estados Unidos da América. A crítica mais grave formulada contra o instituto é a de inconstitucionalidade por supressão de direitos fundamentais do acusado. Na doutrina especializada, Lynch (2003, pp. 24-27) recorda que o Bill of Rights norte-americano estabelece uma série de salvaguardas para o acusado, incluindo o direito de ser informado das acusações, o direito de não se autoincriminar. […]

Ele questiona: é legítimo que o Estado use seus poderes de acusação e sentenciamento (charging and sentencing powers) para pressionar o acusado a renunciar a seus direitos?

Além dessa feroz oposição, mencionem-se também os seguintes argumentos contrários a plea bargaining (CHEMERINSKY, LEVENSON, 2008, p. 649-651):

(a) ela pode pressionar um inocente a confessar culpa para evitar ser condenado por uma acusação mais grave. Por esse argumento, guilty pleas seriam as principais causas de condenações equivocadas;

(b) embora o processo de plea bargaining seja normalmente encarado como um “contrato” ou “acordo” entre acusação e defesa, na verdade há grande disparidade de poderes nessa negociação;

(c) por ocorrer em um cenário privado, fora do alcance dos olhos do público, reduz-se a confiança da sociedade de que “a Justiça foi feita”;

(d) ela permite que o acusado deixe de ser responsabilizado por todos seus atos, recebendo um “desconto” da Justiça, reduzindo-se o efeito dissuasório da punição;

(e) a frustração das expectativas da vítima do crime, que não participam do processo e podem não concordar com a sentença mais favorável ao acusado confesso; e

(f) tratamento supostamente desigual entre réus, conforme a jurisdição e sua situação econômica (e capacidade de suportar os ônus de um julgamento regular).

Vistos, portanto, que estes dois institutos de justiça penal consensual – brasileiro e norte-americano – não se confundem e quase são incompatíveis, sobretudo em face da grande diferença judicial vivenciada – através de séculos – entres os dois países: Common Law × Civil Law. Além disso, a federação lá praticada na sua plenitude permite que cada Estado-membro crie o seu próprio modelo apropriado de plea bargaining.