A coragem como síntese de todas as virtudes

5 de julho de 2021

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Entrevista com o Ministro Marco Aurélio Mello, que se despede do Supremo e da carreira pública com trajetória de independência e serviços prestados ao Brasil

Em setembro de 1999, ao ser agraciado com o primeiro Troféu Dom Quixote – com o qual, desde então, a Revista Justiça & Cidadania tem laureado as personalidades que mais se destacam na defesa dos direitos da cidadania – declarou o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello: “Acabamos de receber uma distinção, um prêmio que nos confere a quadra vivida. Uma quadra que exige Dom Quixote, exige aqueles que agem e combatem a apatia. Precisamos repensar o destino de nossa sociedade, precisamos marchar objetivando a proporcionar bem estar ao povo brasileiro, aqueles milhões que vivem na absoluta pobreza e que nos fazem responsáveis pelo resguardo da própria dignidade do homem. Nesse campo, nós operadores do Direito, que somos responsáveis pela segurança jurídica, devemos ser acima de tudo artífices da almejada Justiça”.

Mais de 20 anos depois, prestes a se despedir do Supremo Tribunal Federal e do serviço público, a carreira do Ministro Marco Aurélio continua coerente com sua declarada independência, com a coragem quixotesca manifestada em cada um dos seus pronunciamentos e pelo sentimento de que nada gratifica mais ao homem do que servir ao próximo. Nessa conversa virtual com o Editor-Executivo Tiago Salles, a poucos dias da aposentadoria, o magistrado fala sobre os momentos mais marcantes da trajetória, sobre os grandes julgamentos que enfrentou e também sobre os planos para o futuro: “Detenho um espírito irrequieto, (…) não haverá ócio com dignidade”.

Tiago Salles – Ministro, quando comecei a trabalhar com meu pai, ele falava que o senhor tinha que ser presidente da República. 

Ministro Marco Aurélio Mello – Muy amigo! (risos) Acabei substituindo como “zelador do Planalto” o Presidente Fernando Henrique Cardoso em cinco oportunidades, quando ele viajou e os demais que estavam na minha frente na ordem de substituição não podiam assumir porque se tornariam inelegíveis, e eram candidatos à reeleição, os presidentes da Câmara e do Senado.

TS – Em uma dessas oportunidades em que assumiu, o senhor assinou a lei que criou a TV Justiça como presidente. 

MAM – Foi algo interessante, porque, no jargão futebolístico, bati o corner e corri para cabecear ao gol, porque o projeto saiu do meu gabinete. Foi um projeto que tramitou de forma muito célere, imediatamente foi aprovado na Câmara sob a presidência do Deputado Federal Aécio Neves e depois no Senado sob a presidência do Senador Ramez Tebet. O Senador queria remeter imediatamente ao Palácio, mas eu disse “aguarde um pouco que vou conversar com o Presidente Fernando Henrique Cardoso para saber qual é a opinião que ele tem sobre essa matéria, se for para sancionar, vou pedir para deixar que eu sancione”. Então, em um jantar a dois no Alvorada, indaguei ao Presidente, que com aquele perfil democrático e o jeito carioca perguntou qual era o projeto. Eu disse que era a TV Justiça, que se fosse para sancionar eu gostaria, mas que se fosse para vetar, não. Ele disse: “Marco Aurélio, sanção e veto são seus”. Acabei fazendo uma solenidade no Palácio e hoje, na entrada da TV Justiça, tem lá a lei por mim assinada como Presidente da República, isso para mim é um orgulho.

TS – A TV Justiça trouxe muitas mudanças, principalmente na exposição dos ministros e dos julgamentos. Como o senhor enxerga essa exposição que acontece até em tempo real, questionando as decisões dos magistrados nas redes sociais?

MAM – Em primeiro lugar, o homem público deve estar em uma vitrine, para ali ser elogiado ou criticado. A crítica construtiva é sempre bem-vinda. Em segundo lugar, cheguei ao Tribunal em uma outra época. O relator levava o voto estruturado, mas os demais integrantes, ditos vogais, votavam de improviso, como costumo dizer, votavam “no gogó”. Hoje em dia não, hoje em dia é possível que o voto de um integrante que não funciona como relator seja mais longo do que o voto do relator. E todos eles com votos escritos. Alguma coisa está errada. Eu, por exemplo, recusei participar da entrega recíproca do voto antes do pregão do processo. Quando recusei, disse que queria estar solto na bancada, não queria ir para a bancada já com o meu convencimento formado sobre o tema. Quero ouvir os advogados na tribuna. A mais, disse que sou um juiz facilmente sugestionável, “vou receber o voto e ficar tendencioso, tentado a aderir ao relator”. É claro que não era isso, mas não recebo e também não entrego antes do pregão o meu voto e penso que isso é o que deveria ocorrer. Agora, é claro que nós precisamos conciliar celeridade e conteúdo. Evidentemente, se acredita que todos que estão lá no Supremo ocupando as onze cadeiras tenham formação técnica e humanística para votar de improviso, não é o que ocorre, e aí, às vezes, a maledicência chega inclusive a sinalizar que alguns seriam locutores de assessores. Não posso acreditar nisso. 

TS – Como o senhor vê o inquérito das fake news? Se o senhor pudesse enxergar através de uma bola de cristal, como veria o encaminhamento desse inquérito? Onde é que ele vai dar?

MAM – É um inquérito que está tramitando há praticamente dois anos e não se tem sinalizada a apresentação de denúncia, que é a peça inicial do processo-crime. Por isso votei contra a instauração. Houve a instauração do inquérito pela própria vítima, o Supremo. É algo equivocado, porque o inquérito surge mediante representação da polícia ou requerimento do Ministério Público. Mais do que isso: Como surgiu o relator? Escolhido a dedo pelo então Presidente do Supremo, Ministro Dias Toffoli. Tempos estranhos! Por isso é que votei (contra). Repeti isso em Plenário, não estou criticando quem quer que seja, mas para mostrar o meu convencimento quanto à negativa de sequência do inquérito, tenho que dizer o porquê. Votei contra a instauração do inquérito e se tornou um “fim do mundo”, porque quando surge qualquer matéria que diga respeito de alguma forma à liberdade de expressão, ela é encaminhada ao relator, Ministro Alexandre de Moraes. Isso não coaduna com o Direito instrumental, com a dinâmica do Direito, com o ato democrático por excelência, que é a distribuição, quer de inquérito, quer de ação. 

TS – Por muito tempo se falou que o senhor era o “ministro do voto vencido”. Sempre teve um voto contramajoritário e não são raros os exemplos de questões em que, depois, o Tribunal se aproximou das posições que o senhor sustentou desde o início. Da proibição de progressão de pena em crime hediondo ao alcance do mandado de injunção, muitas foram as teses que na época foram votos vencidos, mas que hoje configuram jurisprudência pacífica do Supremo. O que o senhor poderia comentar a esse respeito? 

MAM – O colegiado é o somatório de forças distintas. Cada qual tem a sua formação técnica e a sua formação humanística. Cada qual tem a sua forma de atuar e nós nos completamos mutuamente. Quando se diz que “o Marco Aurélio fica muito vencido”, ninguém percebe porque é que fico vencido. Às vezes fico vencido por uma questão instrumental, porque dou muito valor às normas processuais, já que elas implicam saber o que pode ou não ocorrer na tramitação de um processo. Às vezes fico vencido no modismo, na modulação, de se dar o dito pelo não dito, como se a Constituição Federal não estivesse em vigor desde 1988. Aí se diz: “Olha, a lei só é inconstitucional daqui para frente”. A Constituição Federal, para ter concretude, não precisa do endosso do Supremo. O Supremo reconhece a concretude e é o guarda maior da Constituição. Toda vez que o Supremo modula um pronunciamento, ele estimula a prática de outros pronunciamentos à margem da Constituição. Não se avança culturalmente assim. 

Agora, você se referiu a situações em que fiquei vencido isoladamente e, posteriormente, o Tribunal evoluiu para sufragar o que eu sustentara antes. Premonição quanto ao futuro? Não. Busquei antes dar a minha contribuição e, com o passar do tempo, os demais integrantes se mostraram sensíveis àquela ótica que externara. Isso é muito bom. A evolução é sempre possível. Costumo repetir Nietzsche: “Só os mortos não evoluem”.

TS – Por falar em evolução e mudança, o senhor acha válida a ideia de limitar os pedidos de vista nas cortes superiores? Seria favorável a uma regra no Supremo assim como existe hoje no Superior Tribunal de Justiça? 

MAM – Você tocou em uma matéria importantíssima. Com a pandemia, eu que sempre fui contra, passei a inserir todos os meus processos na sessão virtual. Consegui, inclusive, acabar com o acervo de processos aguardando pauta no Plenário. Cheguei a ter, sem espaço para inserção na pauta, cerca de 150 processos. O que está havendo, e receio muito isso, é que o destaque, o pedido de vista, tem sido usado para não se enfrentar as grandes questões nacionais. O pedido de vista se transforma em “perdido de vista”, senta-se em cima do processo, isso é inconcebível em termos de ofício judicante, em termos de arte de proceder e julgar. Então, penso que quando se pede vista há prazo regimental para se devolver o processo. Você deve devolver até duas semanas depois do pedido de vista, na segunda sessão ordinária que se segue àquela em que você pediu vista. Mas aí nós temos outro prato da balança: prazo sem sanção é ineficaz. O colega às vezes esquece que pediu vista do processo e o deixa na prateleira, quando não deixa na própria gaveta.

TS – O senhor também concorda com a limitação da concessão de liminares ou com a estipulação de prazo para levá-las ao colegiado? 

MAM – Eu me pronunciei a favor de uma proposta feita pelo Ministro Luís Roberto Barroso e cheguei mesmo antes a propor que em se tratando de liminar, considerado ato de outro poder enquanto poder na atividade essencial, a tutela deveria ser implementada pelo colegiado, mas fiquei sozinho nesse propósito. Agora, o Ministro Luís Roberto Barroso propõe que o relator continue a implementar a liminar, mas que submeta na primeira sessão do colegiado essa liminar a referendo. Também não adianta ele submeter e o presidente não inserir na pauta, nós sabemos que a pauta ainda é definida pelo “todo-poderoso presidente”, ou da Turma ou do Plenário. Nós precisamos realmente rever essa prática existente no Supremo, para se ter o melhor em termos de entrega da prestação jurisdicional, decisão final do processo, no tempo que a própria Constituição aponta como razoável. Deve ser um período razoável para se concluir o processo, porque ele revela um conflito de interesse, e nós sabemos que o conflito de interesse abala a paz social. É preciso que ele seja retirado do cenário o quanto antes e a forma de fazer isso é julgando-se e definindo-se a matéria. Como o colegiado é um órgão democrático por excelência, vence a maioria, não a minoria.

TS – Aconteceu há pouco tempo, no habeas corpus do André do Rap… O que o senhor acha sobre o fato de um ministro do Supremo, ou mesmo seu presidente, poder cassar liminares e outras decisões monocráticas dos demais ministros? 

MAM – Vou esclarecer mais uma vez porque implementei a liminar. O Congresso Nacional aprovou uma alteração do Código do Processo Penal e aí passamos a ter no parágrafo único do art. 316 uma regra segundo a qual a custódia provisória – não se trata de execução definitiva da pena – dura por 90 dias, podendo ser renovada mediante provocação da polícia, do Ministério Público ou até mesmo de ofício pelo juiz. Recebi um habeas corpus, que é uma ação de envergadura maior, porque está prevista na Constituição Federal, voltada a preservar a liberdade de ir e vir do cidadão. E aí, olhando esse habeas corpus – olho o conteúdo, não olho o envolvido, porque a lei é linear, se aplica em qualquer situação, pouco importando o beneficiário – verifiquei que ele estava preso há mais de 90 dias sem a renovação dessa custódia. O próprio preceito legal prevê a consequência quando isso ocorre, que é a ilegalidade da prisão. O habeas corpus pressupõe a existência de um ato ilegal. Constatado o ato ilegal, cumpre ao juiz, com a capa sobre os ombros, simplesmente aplicar a lei. Eu o fiz, mas, para a surpresa generalizada, o Presidente Luiz Fux achou que ombreando comigo poderia cassar minha decisão.

“Caçou” minha decisão com cedilha e não com dois esses, mas ficou um pouco desconfiado quanto ao não merecimento desse ato e o levou para o referendo do Plenário. Todos os colegas concordaram que ele não podia ter cassado minha decisão, mas em passo seguinte confirmaram a decisão dele, Ministro Luiz Fux. Paciência. Acima de qualquer um de nós está o colegiado e eu não discuto no colegiado absolutamente nada, muito menos superioridade intelectual. Sempre saí do Plenário e da Turma, mesmo vencido de forma isolada, com o mesmo sorriso que entrei. São as partes que disputam, o que quero, para colocar tranquilamente a cabeça no travesseiro e não ter pesadelos, é que o meu convencimento fique consignado e que esse convencimento ressoe realmente o que penso sob o ângulo técnico e humanístico.

TS – Como presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o senhor participou do processo de informatização das eleições. Como qualifica as denúncias sem comprovação feitas contra a lisura do processo eleitoral? 

MAM – Em primeiro lugar, devo fazer justiça. A ideia da urna eletrônica surgiu na gestão do meu antecessor, o Ministro Carlos Velloso, que reuniu um grupo de notáveis para pensar o projeto. Inclusive, presidi uma comissão no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral. Fui um general nas primeiras eleições informatizadas, quando havia realmente uma incógnita quanto à valia e à segurança da urna eletrônica. Fizemos as primeiras eleições informatizadas nas capitais de estados que tinham à época mais de cem mil eleitores. Foi um sucesso absoluto, porque com a urna eletrônica se afasta a mão do homem quanto ao manuseio. A urna – que não está ligada a tantas outras quantas, não há um sistema linear – tem um disco fixo e um disco móvel. Depois de habilitado aquele eleitor específico, ele digita o número do candidato. Se o cargo é do Executivo, aparece inclusive a fotografia do candidato. Posteriormente, temos a retirada do disco móvel, o voto fica criptografado e há a remessa ao Tribunal Superior Eleitoral. 

De 1996 aos dias atuais não houve uma impugnação minimamente séria que tivesse resultado em um pronunciamento glosando a urna eletrônica, mas nos dias atuais temos um presidente da República que foi eleito mediante esse sistema, já talvez preparando campo para uma articulação em 2022, se não conseguir a reeleição, que começa a apontar que pode haver a possibilidade de fraude. Nós sempre tivemos auditorias no âmbito do TSE, e eu as presidi três vezes, porque não fujo ao trabalho. Inclusive, a uma certa época, foi feita auditagem por uma firma especializada, com participação da Universidade de Brasília, e não se apontou qualquer ponto fraco na preservação da vontade do eleitor. Agora já passou a época do insurgimento relativo à urna eletrônica, como ocorre quando aparece uma coisa nova. É um sistema praticado e já aprovado pela população, que está implantado. Não vejo como retroagir-se para se voltar àquele sistema anterior que gerava inúmeras impugnações a candidatos que teriam tido o nome sufragado, o que inclusive sobrecarregava o Judiciário Eleitoral. Que se caminhe realmente sem paixão, ou seja, reconhecendo o que é certo e o que é errado. Se houvesse algum fato negativo, se poderia pensar, porque o aperfeiçoamento é infindável no afastamento desse dado, mas até aqui ele não surgiu. 

TS – O que acha das modificações que se pretende fazer para alterar a eleição dos parlamentares, como as propostas de voto distrital e voto distrital misto?

MAM – O que nós temos no Brasil é que geralmente se vota no candidato, não se vota praticamente no partido, muito embora nas eleições proporcionais ocorra a consideração dos votos recebidos pela legenda para saber quantas cadeiras serão preenchidas por esse ou aquele partido. A modificação desse sistema que está no Código Eleitoral cabe ao Congresso, com a palavra os deputados e senadores. Agora, que modifiquem para se melhorar o sistema, não para favorecer a este ou aquele segmento conforme a maioria reinante. 

TS – Do seu ingresso do Ministério Público do Trabalho (MPT), em 1975, até a aposentadoria esse mês são 46 anos de serviços prestados ao Brasil. Qual é o balanço que o senhor faz dessa carreira dedicada ao serviço público? 

MAM – Sempre atuei da mesma forma, tendo a coragem como a síntese de todas as virtudes. Não adianta a pessoa ter virtudes e ser pusilânime. Sempre atuei com muita independência. Comecei a prestar serviços públicos em 1966, em uma autarquia corporativista, o Conselho Federal dos Representantes Comerciais. Hoje, à rigor, completei 55 anos, dois meses e 22 dias de serviço público. O que mais gratifica o homem é servir aos seus semelhantes, e servir com pureza d’alma. É o que tenho feito nesses anos todos.

Pela minha família, de início, eu não seria sequer bacharel em Direito, tanto que comecei a estudar para fazer o vestibular para Engenharia. Foi quando em 1966 sofri um acidente muito sério, quase fui embora, não porque estava na farra, mas dormindo em casa. Parei de estudar por dois anos. Quando retornei, fiz na Rua da Matriz, em Botafogo (bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro), o (curso) Hélio Alonso para prestar vestibular para Direito. Fui aprovado na Faculdade Nacional de Direito e, me perdoem o cabotinismo, fiz um belíssimo curso, porque o espelho só revela notas nove e dez. Naquela época fazíamos duas provas por ano, quem não conseguisse nas duas provas completar 14 pontos ia à prova oral. Nunca fui à oral, sempre passei bem. Fiz um bom curso e depois a carreira me sorriu, porque fui advogado a partir da formatura em 1973, antes fui estagiário. Ingressei no Ministério Público do Trabalho em 1975 e em 1978 no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT1).

Fiquei no MPT cerca de três anos, no TRT1 outros três anos e, em 1981, com a idade mínima de 35 anos, me mandaram para Brasília. Pude vir para Brasília com a família. Minha filha mais velha, que hoje tem 45, tinha seis anos. A mais nova, que é procuradora do Distrito Federal, tinha seis meses. Minha mulher era inspetora do Trabalho, havíamos feito concurso juntos para o serviço público, mas saiu a minha nomeação como procurador, não assumi como inspetor do Trabalho. Ela veio e nós sentamos praça em Brasília. Tanto que hoje, aposentado, não vou retornar ao Rio de Janeiro, minha base vai ser Brasília, cidade que amo como se tivesse nascido aqui. Meu filho mais novo nasceu em Brasília e me sinto totalmente adaptado aqui.

Em 1990, fui guindado ao Supremo e me acusaram de ter recebido a cadeira de presente de um primo – não sou primo dele, ele é que é meu primo porque nasceu depois de mim – esquecendo minha vida profissional anterior, esquecendo que no Governo Sarney meu nome foi sugerido pela comunidade jurídica trabalhista para três vagas, me refiro aos tribunais, à advocacia trabalhista e aos órgãos de classe. Acontece que naquela época eu tinha como primo o maior desafeto do Presidente José Sarney e, evidentemente, não tive o nome lembrado. A ironia maior ocorreu quando houve o problema da chapa no Amapá para o Senado, que o partido apresentou sem os dois suplentes, ela foi glosada no TSE por sete votos, unanimemente, a uma só voz. Aí o José Guilherme, que foi um grande advogado – falecidos tragicamente ele, a mulher e a secretária do lar – impetrou um mandado de segurança para o Presidente Sarney continuar disputando a eleição, mantendo o nome na cédula e o horário na propaganda eleitoral. O mandado de segurança, são essas coisas do destino, foi sorteado a mim como relator. Implementei uma liminar que ninguém implementaria, a partir da minha coragem e do meu desassombro, para ele realmente figurar nas eleições. O que fiz? Simplesmente cumpri o meu dever de cidadão juiz, de Estado julgador. Isso é reconhecido pelo próprio Presidente Sarney, que acabou eleito.

O juiz atua independentemente de quem esteja envolvido no processo. Ou pode proceder dessa forma ou deve se dar por impedido ou suspeito de atuar no processo. 

TS – Quais foram os pontos de sua trajetória que lhe trouxeram maior realização como magistrado e também como cidadão? 

MAM – A maior realização é personificar o Estado julgador. É uma missão praticamente  sublime, porque você a exerce de forma coercitiva, com o monopólio da força. Isso gratifica muito. Por isso é que, muito embora completando o tempo para a aposentadoria aos 52, 53 anos, continuei judicando. Vou continuar até a undécima hora, até o próximo dia 12 de julho, quando completarei 75 anos. Saberei virar essa página como saberia também, em 2016, aos 70 anos. Veio a “PEC da bengala” e evidentemente continuei. Um jornalista, inclusive, me perguntou: “Ministro, está para sair a PEC da bengala, mais cinco anos, o senhor permanece no Tribunal? Eu disse “depende, se eu não precisar de uma bengala, permaneço”. Ainda bem que não veio a (outra) PEC, porque lá nos Estados Unidos o cargo é realmente vitalício, ou seja, a pessoa permanece no cargo enquanto tiver condições de bem servir. Eu aos 75 anos estou bem fisicamente e, evidentemente, poderia continuar, mas há o sistema e devemos observá-lo. Ainda bem que não veio uma outra PEC que poderia ser até a “PEC do babador”, para o integrante do Tribunal continuar. Agora vou desencarnar, a partir do dia 12 de julho essa página estará virada, com o sentimento de missão cumprida. Isso é o que é importante para o homem público.

TS – E quais foram as maiores frustrações que teve ao longo desse período? 

MAM – “Não tive frustração alguma. Devo ter errado em algumas situações, porque sou um ser humano, mas jamais me arrependi de um pronunciamento feito. Como comecei a atuar como juiz em colegiado, percebi logo, imediatamente, o que é o colegiado: vence a maioria. Integrei colegiados que tinham participação heterogênea, tinham a participação de leigos, mas proclamado o resultado, sempre o observei. É claro que atuando no Plenário, principalmente do Supremo, volto a discutir as matérias. Na Turma, quando estou no órgão fracionado, ressalvo impedimento para observar a decisão do Plenário, mas no Plenário não. Evidentemente, nunca retornei à residência ressentido quanto a alguma decisão do Supremo, mesmo ficando vencido de forma isolada.

TS – Lamenta não poder participar de algum julgamento que está por vir? 

MAM – Não, participei de tantos julgamentos importantes, que não tenho como objetivo este ou aquele julgamento. Agora mesmo liberei um processo e penso que a votação vai começar na próxima sexta-feira (25/6), na sessão virtual, que diz respeito ao tributo consideradas as grandes fortunas. Liberei o processo porque ele se mostrou aparelhado para julgamento final e resolvi realmente preparar relatório e voto. Estarei inserindo relatório, voto e ementa na sessão virtual. Agora, é claro que a conclusão desse julgamento ficará para o futuro. Só espero que não haja nenhum “perdido de vista”, nem tampouco um pedido de destaque, porque geralmente se tem essa manobra para se projetar no tempo a matéria. No caso desse tributo, ele foi previsto em 1988, mas não houve até hoje vontade política para aprovar-se a lei complementar regendo-o quanto a valores, base de incidência e alíquota. Evidentemente, ajuizada a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o que assentei e constatei foi a omissão do Congresso Nacional, mas reconheço que tudo passa em termos de Congresso Nacional por uma vontade política. Essa vontade, ante talvez às pressões ocorridas, não houve até hoje, de forma perniciosa, porque se nós formos ao Ato das Disposições Transitórias da Carta de 1988, vamos ver que há uma finalidade quanto ao que for arrecadado, considerado esse imposto. A finalidade é o combate à pobreza e às desigualdades no Brasil, que tanto nos envergonham.

TS – O senhor vai se aposentar em menos de um mês, não sei se já se sentiria à vontade com essa pergunta, mas como é que o senhor enxerga julgamentos importantes que estão por vir, tão importante para a sociedade, como nos casos do aborto e da descriminalização das drogas? 

MAM – Quanto à droga, criminalizar sem a apenação do usuário, considerada a sua liberdade de ir e vir, qual é o bem protegido pela norma? É o bem revelado pelo próprio usuário? Não. É o bem revelado pela saúde pública. Quanto ao aborto, muito embora eu seja favorável à liberdade da mulher quanto ao próprio corpo, nós temos uma regência no Código Penal que revela situações concretas, entre as quais aquela revelada por estupro, que é uma violência inimaginável, em que se pode interromper a gravidez. A anencefalia é outro problema, e para a minha decisão foi fácil, aliás atuou no processo como advogado o Ministro Luís Roberto Barroso. Eu estava em Belém do Pará quando recebi um telefonema e ele disse “Ministro, foi distribuída uma ação – uma ADPF, se não me falha a memória a de número 54 – e ninguém melhor do que o senhor para ser o relator do caso”. Porque eu penso de forma solta e sempre busco o melhor para a sociedade. Sustentei que nesse caso não haveria o aborto, porque o aborto pressupõe possibilidade de vida fora do útero. No caso do feto anencéfalo, sem cérebro, não se tem essa possibilidade. Implementei a liminar, levei à referendo, o Tribunal não quis apreciar a matéria de imediato, projetou para julgamento final e acabamos concluindo que não seria o caso de se cogitar aborto. Por uma maioria realmente apertada, reconheço, se caminhou nesse sentido, ao meu ver percebendo que o Estado é laico e o Poder Judiciário, como segmento básico do Estado e da República também é laico.

TS – Considerando a relevância de vossa excelência para o Brasil, o senhor vai continuar participando do dia a dia da sociedade brasileira? Quais são os projetos que o senhor tem em mente para o futuro?

MAM – Eu detenho um espírito irrequieto, não sou de me acomodar, então, certamente, não haverá ócio com dignidade. Cuidarei de outras coisas, sou presidente aqui em Brasília do Instituto Uniceub de Cidadania e penso em me dedicar mais à área acadêmica. Não buscarei concorrer, fiquem tranquilos, com os senhores advogados, porque tenho uma situação econômica e financeira que para mim é absolutamente satisfatória. Não buscarei a prata pela prata, mas, considerada a experiência acumulada nesses muitos anos de serviço público, estarei realmente em atividade enquanto a genética ajudar.

TS – Se eu tivesse um conflito de interesse a ser julgado pelo Judiciário, também gostaria que ele fosse apreciado pelo Juiz Marco Aurélio.

MAM – O que pode haver falando mais à alma do que isso? Hoje nutro o sentimento do dever cumprido. Infalível nesses anos de magistratura? Não. Falível como convém, porque as leis são feitas para os homens. A norma legal sugere uma interpretação, que ocorre segundo a formação de cada qual. Encerro meus dias como juiz em paz com a minha consciência e na certeza de que prestei serviços aos meus concidadãos.