A construção do trabalho seguro e decente em tempos de crise e covid-19 

5 de outubro de 2020

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Vivemos um momento singular, pois as populações dos quatro cantos do mundo encontram-se assustadas na luta contra um inimigo invisível, sem armas suficientes à dizimação da covid-19. Milhares de pessoas perderam suas vidas para o vírus; outras tantas submeteram-se a longos e penosos tratamentos.

Tudo isso também acarretou mudanças profundas no mundo do trabalho, inicialmente, com um crescente número de demissões causadas pela severa crise econômica e retração do mercado de trabalho decorrentes da drástica redução da circulação de pessoas e, consequentemente, do consumo.

Também o modus operandi das atividades laborativas foi substancialmente modificado, com o imperativo confinamento das pessoas em seus lares, incrementando-se fortemente o home office e a utilização da inteligência artificial. Essas circunstâncias constituem desafios e obstáculos para a instituição de um ambiente de trabalho seguro e saudável, ecologicamente equilibrado, conforme preconiza a vigente Constituição Federal.

No mundo pré-pandemia as estatísticas em torno do número de acidentes de trabalho ocorridos já nos assombravam, não obstante o vasto acervo de leis e regulamentações em prol da vida, da saúde, da integridade física e mental dos trabalhadores. O Brasil, segundo relatórios da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ocupa o 4º lugar no ranking dos países com mais acidentes de trabalho, perdendo apenas para China, Estados Unidos e Rússia, nesta ordem.

Esse cenário, conquanto difícil, não poderá constituir óbice ao cumprimento de uma agenda do trabalho decente, notadamente porque precisamos ter claro que as pandemias, assim como as guerras e as grandes crises econômicas, representam fatores que potencializam as ações das sociedades em busca de grandes conquistas para a superação das adversidades históricas que lhes assolam.

É preciso, pois, pensar formas de dar efetividade aos ditames constitucionais e infraconstitucionais vigentes, bem como à política de saúde e segurança dos trabalhadores de que trata o Decreto nº 7602/2011, sem falar nas normas internacionais ratificadas pelo Parlamento brasileiro.

O objeto deste estudo é analisar a legislação emergencial e permanente vigentes, relacionadas ao mundo do trabalho, com enfoque às normas de saúde e segurança no ambiente de trabalho, de modo a propor soluções para o avanço da agenda de construção de um cenário de trabalho seguro e decente em meio à crise decorrente da pandemia da covid-19.

A Constituição de 1988 trouxe aos brasileiros um complexo arcabouço jurídico garantidor da saúde e segurança no trabalho, em conformidade com a filosofia da Convenção 155 da OIT, denominada “Convenção sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores, 1981”, aprovada na 67ª Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra, na Suíça, que viria a entrar em vigor no plano internacional dois anos depois; e, no Brasil, no ano de 1993, após a sua aprovação por meio do Decreto Legislativo nº 27, de 17 de março de 1992. Segundo o art. 4º – 1 dessa convenção “Todo membro deverá, em consulta com as organizações mais representativas de empregadores e de trabalhadores, e levando em conta as condições e as práticas nacionais, formular, pôr em prática e reexaminar periodicamente uma política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio-ambiente de trabalho”.

De plano, infere-se que é dever do Estado planejar, fiscalizar e reavaliar as políticas de prevenção em prol da saúde, da higiene e da segurança dos trabalhadores, em qualquer tempo, especialmente em situações de agravo e de maior vulnerabilidade dos destinatários da proteção instituída no plano internacional.

Por conseguinte, e tendo em vista o propósito desse estudo, cabe salientar que a pandemia decorrente da covid-19 demandou a normatização de novas situações vivenciadas nas relações de trabalho, o que se deu, em grande parte, por meio da Medida Provisória nº 927/2020, que, não convertida em lei pelo Congresso Nacional, caducou em 20 de julho.

Essas circunstâncias não autorizam o Poder Público, segundo as suas competências (art. 6º da Convenção), a negligenciar as normas que assegurem a saúde física e mental dos trabalhadores. Antes, pelo contrário, entendemos que, neste momento de dificuldades, restrições e imprevisibilidades, que nos levam a uma crise sem precedentes, devem ser salvaguardadas as garantias à vida, à saúde e à segurança daqueles que buscam no trabalho a concretude do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

A ideia da máxima proteção foi ainda positivada na Carta Magna, segundo o qual “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por finalidade assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social”, enunciando, assim, a prevalência do interesse coletivo sobre o individual, este consubstanciado na propriedade dos meios de produção e de prestação de serviços.

A partir dos regramentos internacionais e documentos elaborados pela OIT, o trabalho decente é aquele que resulta de oportunidades iguais conferidas a homens e mulheres para que trabalhem de forma produtiva e com respeito à saúde e segurança no ambiente laboral, mas também aos valores próprios da personalidade humana, a exemplo da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, de forma a proporcionar a redução da pobreza, a diminuição das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável.

Esses parâmetros permitem o cumprimento dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável que constituem a Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), em especial o objetivo de número 8, que consiste na promoção do “crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas e todos”.

A legislação emergencial, portanto, deverá contemplar mecanismos que assegurem à economia a manutenção dos postos de trabalho, de modo a não agravar a situação de desemprego no País, já tão alarmante no período pré-pandemia, para que possamos, passado o momento de crise, buscar o crescimento econômico que possibilite a redução da pobreza e das desigualdades sociais.

A noção de trabalho decente está intrinsecamente ligada à dignidade da pessoa humana, não se concebendo haver previsão constitucional quanto ao direito ao pleno emprego, senão vinculada a condições que observem a igualdade de gênero, raça, credo, e orientação sexual, dentre outros aspectos próprios da personalidade humana, em um contexto de total liberdade de convicções, em adição a condições de trabalho de respeito à saúde e à segurança dos trabalhadores.

As medidas de prevenção não podem ser consideradas como custo do emprego, mas como investimento que evitará o infortúnio laboral que poderá causar prejuízos a todos, retirando a saúde ou a vida do trabalhador, onerando eventualmente a empresa com reparações por conduta ilícita e com a reposição da mão de obra afastada e, ainda, a própria sociedade que terá maiores desembolsos com benefícios previdenciários pagos às vítimas desses sinistros.

Isso porque muitas patologias não se revelam contemporâneas às atividades que as ocasionam, mas apenas no futuro, de modo que a jurisprudência consolidou-se no sentido de que a constatação do adoecimento, após a dispensa, não representaria, por si só, entrave à proteção do trabalhador prejudicado com a redução ou perda da sua capacidade laborativa.

Há de se reconhecer ainda que o teletrabalho transfere ao empregado, muitas vezes, encargos próprios do empregador, a exemplo da estruturação adequada do local de trabalho e a adoção de procedimentos compatíveis com a preservação da sua higidez física e mental. Em que pese caber ao empregador, a teor do art. 75-E da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), instruir seus empregados quanto às medidas de precaução a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho, é inafastável a conclusão de que a ausência de contato direto entre as partes mitiga o poder diretivo do empregador quanto à necessária fiscalização das rotinas laborais no que toca a procedimentos preventivos.

Também o excesso de trabalho prestado em ambiente domiciliar, a dificuldade de desconexão e o isolamento nos afazeres podem comprometer a necessidade de efetivo descanso e a saúde mental do obreiro, notadamente porque a gestão do teletrabalho, via de regra, se dá por cobrança de metas e resultados, sem contato direto e diário nas atividades prestadas.

Por fim, há no teletrabalho um perigo acentuado relacionado com patologias ligadas à postura e à visão, sendo imperativo observar-se o quanto disposto na Norma Regulamentadora 17, editada pelo antigo Ministério do Trabalho e Emprego (hoje Secretaria Especial do Trabalho), da qual constam disposições destinadas a “estabelecer parâmetros que permitam a adaptação das condições de trabalho às características psicofisiológicas dos trabalhadores, de modo a proporcionar um máximo de conforto, segurança e desempenho eficiente”.

Em agravo a tudo isso, tem-se que o teletrabalho não admite limitação de jornada, circunstância que desonera o empregador do dever de adotar medidas voltadas a um efetivo descanso diário e semanal do teletrabalhador em seus afazeres, em manifesto prejuízo à saúde e à segurança no trabalho.

Também o trabalho prestado sob demanda de aplicativos tem sido uma realidade crescente, pois muitos serviços passaram a ser prestados unicamente por esse meio. Milhares de trabalhadores passaram a utilizar-se de motocicletas e bicicletas, quando não de carros, para transportar toda sorte de produtos para consumidores privados dos meios tradicionais de consumo.

Esses entregadores encontram-se atualmente em um limbo jurídico, pois a legislação brasileira não regulamenta essa atividade, deixando-lhes à própria sorte e sujeitos às condições impostas pelas empresas de aplicativos, com pouco ou nenhum poder de negociação. Muito se discute no Brasil e no mundo acerca da natureza desse tipo de serviço, mas pouco se tem avançado efetivamente na regulamentação do ofício com vistas à instituição de regras que assegurem condições de saúde e segurança daqueles que o elegem ou a ele se rendem por absoluta falta de opção mais vantajosa.

Como o teletrabalho, o trabalho sob demanda de aplicativos também deve permanecer sendo prestado em larga escala, a partir da pandemia da covid-19, demandando de todos maior atenção e preocupação para essa que vem sendo chamada a “nova classe operária”.

Vista por muitos como “uma nova forma de escravidão moderna”, em razão dos baixíssimos ganhos e das jornadas exaustivas, em condições de completa insegurança, o trabalho sob demanda de aplicativos constitui um desafio às sociedades modernas, pois é vista como uma forma de empreendedorismo quando, em verdade, revela a última tentativa de sobrevivência daqueles que não encontram lugar na profissão que desejaram ou escolheram.

Um ambiente de trabalho ecologicamente equilibrado permite alcançarmos um cenário de trabalho decente, mas, para tanto, não basta uma legislação protetiva, mas uma cultura de efetivo cumprimento ao ordenamento jurídico e uma fiscalização eficiente para a imposição de sanções que coíbam as infrações.

As soluções de momento, voltadas à satisfação do mercado e à preservação do emprego, conquanto respeitáveis, não podem ser vistas isoladamente, senão em conjunto com normas de saúde e segurança do trabalhador, pois essas não podem ser relegadas a segundo plano em nenhuma hipótese, devendo prevalecer sobre outras circunstâncias, já que a vida e a saúde constituem o bem maior de todo cidadão.