Sucessão X Investimento

30 de junho de 2010

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A SuperVia, Concessionária de Transporte Ferroviário S.A, se investiu na qualidade de concessionária de serviços de transporte ferroviário em 1998, em decorrência de rigorosa licitação. Sua investidura foi, portanto, originária e não por efeito de cessão, de forma que, exceto se previsto contratualmente, não cabe a ela responder por danos ocasionados pela antiga exploradora.

Apesar de estar escrito no contrato que a SuperVia não tem responsabilidade sobre passivos anteriores à data em que assumiu a concessão, em 1998, a grande preocupação que se apresenta hoje diz respeito à responsabilidade da concessão em confronto com uma pseudossucessão de empresas.

Temos hoje 342 ações cíveis e 495 ações trabalhistas. Ações essas que derivam da exploração do serviço de transporte ferroviário antes executado pela Companhia Fluminense de Trens Urbanos – Flumitrens/Companhia Estadual de Engenharia de Transporte e Logística – Central.

Ora, imagine uma concessionária que passou por uma licitação, leu o edital e previu no contrato os limites da sua responsabilidade. Essa concessionária então é surpreendida com a imputação de passivos anteriores à data em que assumiu a concessão, que são de responsabilidade de uma empresa que se encontra ativa, pois não houve extinção da pessoa jurídica originária, tendo em vista que a Flumitrens, posta em liquidação, foi cindida parcialmente, dando origem à Central Logística.

A empresa que cometeu o ilícito não deixou de existir, portanto deve permanecer como devedora, e no caso de não honrar com seus compromissos, em última análise, deve-se executar o Estado, responsável pela empresa.

É inadmissível atribuir o cumprimento de obrigação por ato ilícito contraída por empresa prestadora de serviços públicos a outra que não concorreu para o evento danoso apenas porque também é prestadora dos mesmos serviços públicos executados pela verdadeira devedora. Tal atribuição constitui um desvio do instituto da responsabilidade administrativa.  Esse desvio pode comprometer a prestação do serviço público, porque, se todas as dívidas da antiga concessionária forem repassadas à nova, que por sua vez tem a obrigação de prestar um serviço de qualidade, o que ela vai fazer? Certamente terá muitas dificuldades de pagar funcionários, de investir, de desenvolver-se. E o que fica prejudicado? Fica prejudicado o transporte ferroviário. Fica prejudicado um serviço público essencial. Fica prejudicado, em muito, o interesse público.

Transporte é infraestrutura. Os passageiros do Estado do Rio de Janeiro não podem mais suportar aquele transporte deteriorado de outrora.  A SuperVia assumiu em 1998 com 140 mil passageiros transportados. Hoje transportamos 500 mil pessoas por dia.  Precisamos de mais investimentos. E o que os investidores privados querem simplesmente é seguir o contrato.  Querem a garantia para fazer mais e novos investimentos, que trarão benefícios imensos à população do Estado do Rio de Janeiro. O contrato de concessão deve ser respeitado, reduzindo o Risco Brasil em prol da sociedade.

A SuperVia está ultimando negociações com o Estado do Rio de Janeiro com o objetivo de prorrogar o contrato de concessão por mais 25 anos, possibilitando investimentos superiores a 1 bilhão de reais. Esses investimentos possibilitarão à concessionária transportar, já em 2015, mais de 1 milhão de passageiros por dia útil.  Para que isso ocorra, torna-se imperioso que a concessionária tenha segurança jurídica para investir, que problemas pretéritos à sua existência não venham a recair sobre seu caixa, impossibilitando-lhe o desenvolvimento regular.

A imputação dessa pseudossucessão empresarial, além de não estar prevista em lei alguma — pelo contrário, afronta a Lei de Licitações e Contratos Administrativos —,  leva muitas vezes a este estado de insegurança jurídica, que é um obstáculo grandioso ao desenvolvimento do Brasil, do Estado do Rio de Janeiro, como bem ressaltou o Desembargador Marcus Faver na palestra realizada pela Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, em novembro de 2007, sobre o tema:

(…) Em sucessivas questões, os juízes se colocam ali como cidadão. E verificando que o Estado não está funcionando adequadamente, impõe às vezes decisões e condenações que não correspondem à estrutura jurídica prestada pelo país, levando muitas vezes a este estado de insegurança jurídica, que é um obstáculo grandioso ao desenvolvimento do Brasil e dos estados brasileiros como nação e como estados federados. Essa insegurança decorrente em parte dessa vontade, dessas ânsias dos juízes em fazer da prestação jurisdicional uma substituição da obrigação do Estado, leva a decisões estapafúrdias sentimentais, às vezes caridosas, mas que não correspondem a uma estrutura jurídica que se espera de uma nação civilizada.

Para haver investimentos no serviço público é necessária uma equação em que os investidores conheçam o que vão enfrentar. A jurisprudência dos nossos Tribunais já está se posicionando em sentido contrário a essas ações de sucessão.  A sociedade clama por melhores e mais abrangentes serviços público-privados e esse objetivo somente será atingido com investimentos. A população do Estado do Rio de Janeiro merece transporte público de qualidade, e a SuperVia irá cumprir o contrato, o seu contrato, e não responder pelo passado do qual não fez parte.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ já vem se consolidando na rejeição da tese da sucessão e, com certeza, esse é o caminho que leva à redução do Risco Brasil.

Neste sentido, não há como não mencionar a ementa do acórdão proferido no julgamento do Recurso Especial n. 738.026 – RJ, realizado em 26/6/2007, em que foi relator o Ministro João Otávio Noronha, do seguinte teor:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL ADMINISTRATIVA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO ESTADO.

As regras de Direito Administrativo e Constitucional dispõem que as empresas criadas pelo Governo respondem por danos segundo as regras da responsabilidade objetiva, e, na hipótese de exaurimento dos recursos da prestadora de serviços, o Estado responde subsidiariamente (art. 37, par. 6º, da Constituição Federal).

É defeso atribuir o cumprimento de obrigação por ato ilícito contraída por empresa prestadora de serviços públicos a outra que não concorreu para o evento danoso, apenas porque também é prestadora dos mesmos serviços públicos executados pela verdadeira devedora. Tal atribuição não encontra amparo no instituto da responsabilidade administrativa, assentado na responsabilidade objetiva da causadora do dano e na subsidiária do Estado, diante da impotência econômica ou financeira daquela.

Recurso Especial provido.

A Segunda Seção do STJ, em julgamento recente sobre o tema, também esposou esse posicionamento nos autos do Conflito de Competência nº 101806:

Destarte, entendo que o direito indenizatório do obreiro, quando devido, não deve ser ignorado ou mesmo não cumprido. Contudo, há normas procedimentais a serem observadas, principalmente em face do princípio constitucional do devido processo legal.

Por isso mesmo, não há de ser visto como absoluto quando em confronto com princípios constitucionais de que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal, assegurando-lhe a ampla defesa e o contraditório. (CF, art. 5°, incisos LIV e LV), certo de que em muitos casos a SuperVia tem sido incluída na lide já na fase de execução, não se lhe tendo oportunizado direito do contraditório e ao devido processo legal na fase de  conhecimento.

A execução haveria de ser imposta à pessoa jurídica que figurasse no polo passivo do título ou sentença judicial executada, jamais a terceiro estranho à relação jurídica processual em respeito ao princípio da legalidade presente no Estado Democrático de Direito, e não como vem sendo praticado pela Justiça do Trabalho seguindo elementos destes autos e conhecidos, inovando a parte passiva na execução de sentença.

Com efeito, não compreendo como se possa admitir uma sucessão de empresa em fase de execução, sendo a sucedida empresa pública capaz de honrar os seus compromissos trabalhistas.

Penhoras on-line, que se ocorrentes ou vierem a acontecer, certamente comprometerão as atividades funcionais-empresariais da SuperVia, geradora de empregos e tributos no exercício de uma atividade essencial e social de transporte coletivo de trens urbanos de passageiros na cidade do Rio de Janeiro.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem uma juris­prudência dividida. Já o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem uma jurisprudência com percepção exata de que, se não tiver nenhuma cláusula contratual obrigando a concessionária a pagar prejuízos de terceiros, ela não tem que pagar nada.

O que ocorre é que muitas vezes, na aflição de fazer justiça, o magistrado realiza justamente o contrário. Faz com que os administradores, as concessionárias, as empresas, se retraiam nas atividades que têm e que devam ser feitas, porque não suportam os ônus indevidos que lhe são atribuídos.

Seguindo os ensinamentos do Ministro do STJ Luiz Fux, expostos na palestra realizada pela Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, em novembro de 2007, “a sucessão no Direito Brasileiro não se presume. A sucessão está prevista na lei. Ou vai haver uma incorporação, uma cisão, alguma coisa tem que haver para que haja efetivamente uma sucessão. Você pode presumir uma sucessão em nome de absolutamente nenhum princípio.”

No campo do Direito Público, afronta o princípio da legalidade uma imputação graciosa de responsabilidade. E o que acontece na prática é a concessionária se deparar com um processo satisfatório de execução, uma penhora de bens da concessionária como se ela fosse responsável patrimonial por aquela dívida.

Além da sucessão ser equivocada no âmbito processual, igualmente o é no plano do direito material (obrigacional), uma vez que inexiste o nexo de causalidade. A concessionária não fez nada. O fato danoso não foi praticado por ela. Logo, não há como ter imputada essa responsabilidade objetiva.

Do que se conclui que, ainda que o fim seja satisfazer uma obrigação, achar um culpado, os meios utilizados não podem ser injustos, não podem atingir a quem não deve, sob pena de comprometer o avanço no transporte ferroviário, o desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro e o interesse geral da sociedade.