José Celso de Mello Filho ingressou no Ministério Público de São Paulo em 1970, aprovado em primeiro lugar no concurso de provas e títulos, dentre 1.118 candidatos inscritos. O que aconteceu apenas um ano após graduar-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – a tradicional “Arcadas” do Largo de São Francisco.
Em consonância com o espírito daquela geração de advogados, que exerceu o Direito como instrumento de resistência aos arbítrios da ditadura, desde o início da carreira, quando atuou como Promotor de Justiça e Curador Geral em várias comarcas, Celso de Mello sempre dedicou especial atenção às garantias individuais e aos direitos humanos.
Uma passagem marcante nesse sentido ocorreu na solenidade de inauguração do Fórum de Osasco, em 1979, quando Celso de Mello denunciou as condições desumanas as quais eram submetidos os detentos na cadeia local. O discurso lhe rendeu bem mais do que os aplausos das 600 pessoas presentes. A partir de então, o então Promotor de Justiça passou a ser monitorado de perto pelos serviços de informações dos militares.
Congelamento – “Por causa do discurso em Osasco, tive minha carreira congelada no MP. Hoje é fácil fazer críticas ao regime de então. Difícil era enfrentar os riscos quando estava vigente o AI-5. Estou em paz com minha consciência. Cumpria meu dever”, comentou anos mais tarde, em 2012, o já Ministro Celso de Mello, quando foram revelados os arquivos do Serviço Nacional de Informação e do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (Dops) que confirmaram que ao menos cinco dos atuais ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) haviam sido monitorados. Em relatórios enviados ao Dops, delegados reclamavam do “promotor subversivo” que aparecia de surpresa nas delegacias para verificar as condições dos presos.
Apesar da vigilância, por seu profundo conhecimento jurídico, Celso de Mello foi chamado a colaborar em inúmeras tarefas fora do Ministério Publico, tanto no Poder Executivo quanto no Legislativo. Foi assistente jurídico da Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo; integrou o Grupo de Trabalho da Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo que apresentou conclusões sobre a então nova Lei de Acidentes do Trabalho; foi assessor para assuntos constitucionais da Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo; assessorou o grupo de trabalho (GT) da Reforma da Constituição Paulista, constituído pela Mesa Diretora da Assembleia.
Nova República – Veio o fim da ditadura e com ela a designação pelo então Presidente da República, José Sarney, para compor, entre 1985 e 1986, o Conselho de Administração da “Fundação Petrônio Portela”, com sede no Distrito Federal. Naqueles mesmos anos, Celso de Mello integrou o GT para elaborar o anteprojeto da Lei Orgânica do Ministério Público da União, trabalho liderado pelo então Procurador-geral da República, Sepúlveda Pertence, que mais tarde viria a ser seu antecessor na Presidência do Supremo Tribunal Federal.
Ainda entre 1985 e 1986, Celso de Mello foi assessor jurídico do Gabinete Civil da Presidência da República, então chefiado pelo Ministro José Hugo Castelo Branco. Nos anos seguintes, foi secretário-geral da Consultoria-Geral da República, na gestão do ilustre jurista Saulo Ramos, tendo assumido interinamente como consultor-geral, em diversas ocasiões. Até que finalmente, em 1989, coordenou o GT constituído pela Presidência da República para elaborar o anteprojeto de lei sobre normas gerais de organização dos Ministérios Públicos dos estados, Distrito Federal e territórios.
Papel do juiz – Por decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e do Conselho Superior da Magistratura, Celso de Mello integrou por três vezes, entre 1988 e 1989, a lista do quinto constitucional para preenchimento da vaga reservada ao Ministério Público nos tribunais paulistas. Titular do cargo de Procurador de Justiça no Estado de São Paulo, pediu exoneração quando foi nomeado pelo Presidente José Sarney para compor o Supremo Tribunal Federal, no qual tomou posse em agosto de 1989, aos 43 anos de idade, em vaga decorrente da aposentadoria do Ministro Luiz Rafael Mayer.
Em abril de 1997, eleito por seus pares, tornou-se aos 51 anos o mais jovem Presidente do STF desde a fundação da Corte, em 1829, ainda no Império, como Supremo Tribunal de Justiça.
Dez anos mais tarde, com a aposentadoria do Ministro Sepúlveda Pertence, em agosto de 2007, Celso de Mello viria a se tornar o mais antigo juiz do Supremo. A passagem do decano pelo Tribunal, encerrada no mês passado, é a segunda mais longa da história do STF, ficando atrás apenas, por menos de um mês de diferença, de José Paulo Figueirôa, que foi ministro nos tempos do Império. Celso de Mello foi também um dos juízes mais produtivos da Corte, tendo proferido, em 31 anos de judicatura, nada menos do que 224.075 decisões.
Votos marcantes
Por ter assumido a vaga de Ministro do Supremo em 1989, Celso de Mello teve a oportunidade de atuar ativamente pela afirmação dos direitos, liberdades e garantias positivadas na Constituição Cidadã. “Nomeado à Corte menos de um ano após a promulgação da Carta Constitucional, o Ministro Celso exerceu papel-chave em nossa recém instalada democracia, que, ainda permeada pela herança autoritária dos tempos ditatoriais, pouco estava acostumada ao estrito respeito às garantias e aos direitos fundamentais. É possível dizer que parcela rica do que hoje se conhece na doutrina e na jurisprudência brasileira sobre o tema possui a marca inconfundível do Ministro Celso de Mello”, sublinhou o Ministro Gilmar Mendes ao saudar o colega magistrado pela aposentadoria.
Ao lado da erudição, a defesa irrestrita da garantia ao contraditório, da ampla defesa e das demais garantias contitucionais sempre marcaram os votos do Ministro Celso de Mello, alguns controversos, desde seus primeiros anos no STF. Confira algumas das suas principais decisões a seguir:
Negativa de extradição – Em 1996, Celso de Mello negou pedido do governo chinês para extraditar um estelionatário, pelo fato da legislação brasileira vedar a extradição de quem possa vir a ser condenado à morte no país de origem. Na ocasião, a Embaixada da China garantiu que estelionato não era crime punível com a morte. Porém, após estudar as leis chinesas, o Ministro descobriu que o criminoso corria sim o risco de ser executado, e por isso negou o pedido de extradição.
Medicamentos gratuitos para HIV – Em 2000, uma decisão do Ministro Celso de Mello estabeleceu a obrigação do Estado fornecer gratuitamente o coquetel de medicamentos para o tratamento da aids aos portadoras do vírus HIV.
Insignificância – Em 2004, Celso de Mello usou o princípio da insignificância para conceder habeas corpus a condenado pelo crime de furto de uma fita de videogame. Paradigmático, o acórdão consolidou a jurisprudência a respeito do tema: “O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos”.
Infidelidade partidária – Em 2007, Celso de Mello foi relator do mandado de segurança que definiu que o parlamentar que deixa o partido sem justa causa perde o mandato eletivo, reduzindo com isso o intenso troca-troca partidário praticado até então. “A ruptura dos vínculos de caráter partidário e de índole popular, provocada por atos de infidelidade do representante eleito, subverte o sentido das instituições, ofende o senso de responsabilidade política, traduz gesto de deslealdade para com as agremiações partidárias de origem, compromete o modelo de representação popular e frauda, de modo acintoso e reprovável, a vontade soberana dos cidadãos eleitores”, pontuou.
Células-tronco – “Em quase 40 anos de carreira na área jurídica, nunca participei de um processo que se revestisse da magnitude que assume o presente julgamento”, declarou o Ministro no julgamento da ADI 3510, em 2008, que discutia a realização de pesquisas com células-tronco embrionárias previstas pela Lei de Biossegurança. Celso de Mello acompanhou o voto favorável às pesquisas do relator, Ministro Carlos Ayres Britto, ressaltando ser vedado ao Estado o exercício de sua atividade com apoio em princípios teológicos “ou ainda em artigos de fé”.
Cotas raciais – Em 2010, Celso de Mello votou favoravelmente ao reconhecimento da constitucionalidade das cotas raciais nas universidades públicas, considerando a necessidade de aplicação de políticas de ação afirmativa para superar o racismo e a discriminação racial no País. Posição que manteve em 2017, por ocasião do julgamento da constitucionalidade das cotas no serviço público.
Marcha da Maconha – Em 2011, Celso de Mello considerou legais e legítimas as manifestações públicas a favor da descriminalização da maconha. No voto, demarcou que a mera proposta de descriminalização não poderia ser confundida com o crime de apologia ao consumo de drogas.
Ficha limpa – O Ministro foi voto vencido na decisão que atestou a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, em 2012. Para Celso de Mello, a inelegibilidade é uma forma de pena imposta ao réu, o que não deveria acontecer caso sua condenação ainda seja passível de recurso.
Tortura – Em 2013, a partir do julgamento do processo movido contra um policial militar, Celso de Mello entendeu que o crime de tortura não pode ser considerado “delito militar” e que cabe a perda do posto e da patente em caso de condenação. “A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos”, pontuou.
Segunda instância – Em julho de 2016, o Ministro tomou decisão contrária à jurisprudência do STF ao conceder liminar que suspendeu a execução de mandado de prisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que havia determinado o cumprimento da pena de um réu antes de esgotadas todas as chances de recurso. Em fevereiro daquele mesmo ano, por sete votos a quatro, o STF havia decidido que era possível efetuar a prisão antes do trânsito em julgado da condenação. O que foi revisto em 2019, quando a maioria dos magistrados se juntou à posição de Celso de Mello contra a prisão automática após condenação em segunda instância.
Homofobia – No ano passado, em voto histórico e paradigmático, o Ministro Celso de Mello foi o relator da ação em que o STF enquadrou a homofobia e a transfobia como comportamentos equivalentes ao racismo, declarando que a falta de legislação do Congresso Nacional sobre o tema é inconstitucional.