Telecomunicações, calamidade pública e Direito Tributário

10 de maio de 2020

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Se a década que passou ficou marcada pelo fenômeno da hiperconectividade humana, sintetizado pela difusão maciça de smartphones, redes sociais, aplicativos e uma economia cada vez mais digital e menos tangível, o decênio que se inicia promete mudanças ainda mais drásticas no modo como o ser humano interage com o mundo a sua volta, especialmente os objetos, máquinas, dispositivo

No horizonte dos próximos anos, surge a implantação e disseminação da tecnologia 5G e, a reboque, da conectividade das coisas (Internet of things ou IoT), o que permitirá a utilização em larga escala da automatização, big data e inteligência artificial não só em processos industriais e científicos altamente sofisticados, como também em setores até então menos permeáveis ao uso de tecnologias da informação e comunicação, como o agronegócio. Espera-se que as novas ferramentas rapidamente sejam introduzidas também em nossas tarefas cotidianas mais banais, como dirigir ou fazer compras, revolucionando o modo como vivemos.

Em comum, todas as inovações citadas, já consolidadas ou em ainda em fase embrionária, revelam o papel central que os serviços de telecomunicações ocupam na sociedade contemporânea, fomentando o surgimento constante de novas formas de organização econômica e social.

Tal afirmação parece beirar o truísmo e poderia ser facilmente constatada por cada um de nós através de nossas experiências pessoais, bem como por diversos indicadores econômicos, dispensando maiores justificativas. Contudo, a imprescindibilidade dos serviços de telecomunicações torna-se ainda mais perceptível em cenários de anormalidade, como o enfrentado neste início de 2020, em que o combate à terrível pandemia do covid-19 exige o engajamento de toda a sociedade nos esforços para conter a doença, suportando grandes sacrifícios e observando as medidas extremas impostas pelas autoridades competentes.

O experimento sem precedentes na história humana de submeter repentinamente quase 1,7 bilhão de indivíduos a medidas de isolamento por tempo ainda desconhecido altera profundamente a dinâmica das nossas relações sociais e econômicas, exigindo, mais do que nunca, um setor de telecomunicações capaz de prover, de modo estável, serviços de boa qualidade. Mesmo dispondo de prazos ínfimos para adaptar a arquitetura de suas redes à nova dinâmica imposta pelas medidas de isolamento social, as empresas do setor vêm agindo para absorver o aumento repentino do tráfego causado pela adoção maciça do teletrabalho por empresas e órgãos públicos, bem como pela utilização da Internet em uma intensidade jamais vista antes, por parte dos mais de 140 milhões de brasileiros conectados à rede, que a ela recorrem na busca por informações confiáveis relativas à pandemia, entretenimento e, claro, para manter a comunicação com os entes e amigos queridos de quem estão momentaneamente separados.

Porém, a despeito do aparente consenso acerca da relevância do setor e do papel primordial que exerce tanto em tempos de normalidade quanto em períodos atípicos, um olhar detido sobre o tratamento dispensado às telecomunicações pelo sistema tributário brasileiro indica que, até hoje, o Poder Público não assimilou tais premissas, colocando sob ameaça a expansão do acesso aos serviços e a competitividade do setor produtivo nacional.

A hipertributação dos serviços de telecomunicações no Brasil é fato notório e reconhecido pelas autoridades responsáveis pela elaboração e execução das políticas públicas relacionadas ao setor. Nesse sentido, basta mencionar que a própria Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) aponta, com base em dados coletados pela União Internacional de Telecomunicações (UIT), agência especializada da Organização das Nações Unidas (ONU), que o País ocupa o primeiro lugar no ranking dos que mais tributam o serviço de banda larga, alcançando a quarta posição quando analisada a telefonia móvel. A título comparativo, a carga tributária brasileira sobre tais serviços é mais do que o dobro da praticada em países como Alemanha, França, Reino Unido, México e Rússia, podendo ser quatro vezes maior do que a observada nos Estados Unidos, Coréia do Sul e Japão.

Estudo recente e ainda não divulgado elaborado pela LCA Consultores aponta que a carga tributária efetiva da cadeia produtiva dos serviços de banda larga fixa e telefonia móvel alcança quase 50% do faturamento líquido das empresas. Considerada a carga tributária brasileira total, de cerca de 33% do Produto Interno Bruto, constata-se um tratamento significativamente mais gravoso sobre o setor.

De modo geral, os estudos sobre o tema centram-se no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), previsto no art. 155, inciso II, da Constituição Federal de 1988, o principal mecanismo de tributação sobre as telecomunicações. Com o formidável desenvolvimento experimentado pelo setor desde a promulgação da Constituição, a tributação da prestação de serviços de comunicação rapidamente tornou-se uma das principais fontes de arrecadação dos estados e do Distrito Federal.

O presente artigo, no entanto, pretende trazer para o debate a carga tributária setorial imposta pela União Federal que, ao lado do ICMS, asfixia o setor de telecomunicações, tão essencial e carente de investimentos.

O fenômeno da tributação setorial diz respeito, basicamente, a um vasto e complexo sistema de tributos federais voltados especificamente às atividades de telecomunicações, formado por taxas e Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (CIDEs). Quando foram instituídos, esses tributos tiveram suas receitas vinculadas às mais variadas e nobres finalidades, sob a promessa de que seriam relevantes instrumentos de mudança da realidade socioeconômica. As boas intenções propaladas, contudo, não resistiram ao teste da realidade.

Tome-se como exemplo a contribuição ao Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), instituído pela Lei nº 9.998/2000. Vinculado legalmente à universalização dos serviços de telefonia fixa, algo que fazia todo sentido à época em que foi criado, o Fundo tem como principal fonte de receita a contribuição de 1% sobre as receitas das prestadoras de serviços de telecomunicações.

Apesar da situação precária desses serviços no começo da década de 2000, dos mais de R$ 20 bilhões arrecadados pelo FUST desde a sua criação, apenas R$ 340 mil tiveram a destinação imposta na lei. Atualmente, mesmo diante da obsolescência dos serviços de telefonia fixa, da impossibilidade legal de se destinar os recursos a outras finalidades vinculadas ao setor e da aparente falta de interesse político em se buscar uma solução para o lamentável quadro, a contribuição segue sendo exigida mensalmente das prestadoras, a despeito da iniciativa do setor de buscar o seu questionamento judicial.

Não se pode deixar de mencionar, ainda, as taxas de fiscalização a cargo da Anatel, cuja arrecadação é vinculada ao Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel), que deveria, na forma da Lei nº 5.070/1966, se limitar a prover os recursos necessários ao custeio das atividades fiscalizatórias do ente regulador. É importante que se saiba que, em apertada síntese, para cada chip de telefonia móvel ativado no País, recolhe-se R$ 26,83 a título de Taxa de Fiscalização de Instalação (TFI) e, anualmente, enquanto o dispositivo for mantido em operação, outros R$ 8,85 a título de Taxa de Fiscalização de Funcionamento (TFF).

Basta recordar que o País possui, hoje, 226,7 milhões de dispositivos móveis em operação para se ter ideia das cifras significativas arrecadadas pela União através da TFI e da TFF. Como é peculiar a essa espécie tributária, as taxas precisam ser calibradas para gerar montante que corresponda razoavelmente ao custo das atividades estatais que se destinam a custear – no caso específico, a estrutura de fiscalização da Anatel – o que, diga-se, foi recentemente reiterado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 6.221, ocorrido em dezembro de 2019.

Não é o que se observa, contudo, no caso das taxas vinculadas ao Fistel. De acordo com o Tribunal de Contas da União, entre 1997 e 2016, a arrecadação conjunta da TFI e da TFF atingiu quase R$ 35 bilhões em valores nominais, alçando a arrecadação total do Fistel a patamar superior a R$ 85 bilhões. Somadas, as despesas em fiscalização incorridas no mesmo período pela Anatel não chegaram sequer a R$ 4 bilhões. Ainda assim, também a despeito das discussões judiciais intentadas pelas empresas do setor, ambas as taxas seguem sendo regularmente exigidas, havendo, por parte da União, a expectativa de arrecadar em dia 31 de março, data do vencimento anual da TFF, quase R$ 2 bilhões apenas com essa taxa.

Provavelmente, porém, o fato que mais surpreenderá o leitor deste breve artigo será a descoberta de que, além dos fundos setoriais esvaziados e desvirtuados mencionados nos parágrafos anteriores, os serviços de telecomunicações são onerados também por CIDEs destinadas a financiar a indústria cinematográfica nacional e as atividades da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a emissora pública que corre o risco de desaparecer sob o Governo atual, sem nunca ter dito a que veio.

É que, também no dia 31 de março, as operadoras de telecomunicações recolhem as duas insólitas contribuições –  as quais, assim como a TFF, incidem anualmente sobre o total de estações de serviços de telecomunicações em operação – ao valor de R$ 4,14 para a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) e R$ 1,34 para a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP).

Os tributos citados, cuja existência é desconhecida até por grande parte dos estudiosos do Direito Tributário, encarecem o custo da prestação dos serviços de telecomunicações sem que o consumidor seja adequadamente informado sobre a sua existência, a ordem de grandeza dos valores arrecadados e a absoluta falta de pertinência entre os serviços que lhe são prestados e as finalidades legais a que vinculados os valores arrecadados.

Espera-se, enfim, que os momentos difíceis ora enfrentados possam, ao menos, alertar a classe política, opinião pública e sociedade acerca da necessidade de se dispensar aos serviços de telecomunicações tratamento tributário compatível com sua essencialidade.

NOTAS____________________________

1 Segundo o IBGE, o setor de comunicação e informação responde por cerca de 5% do PIB e emprega mais de 985 mil trabalhadores.

2 Mencione-se, contudo, que, em recente decisão, a Desembargadora Federal Ângela Catão, da 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, entendeu por bem em suspender a exigibilidade dos créditos tributários de TFF a vencer em 31/03/2020, em face da absoluta ausência de equivalência razoável entre o recolhido e aplicado na atividade de fiscalização da Anatel.