Edição

O Projeto de Lei nº 9 de 2010 e a Responsabilidade Civil dos Administradores de Entidades Desportivas Profissionais

11 de julho de 2012

Compartilhe:

Tanto as empresas quanto os empresários individuais são uníssonos em constatar que a veiculação, divulgação, de suas marcas pelas práticas desportivas, seja através dos esportes coletivos ou dos atletas individuais, se mostra um bom negócio[1]. Como consequência lógica, os clubes de práticas desportivas, precipuamente as profissionais, possuem um potencial incrível de atração de investimentos.

Mas o investidor hodierno, além de lucro, neste caso com o retorno da publicidade, já não prescinde da segurança no investimento para “patrocinar” o clube, principalmente de saber onde seu capital está sendo aplicado e de que forma.

Logicamente que neste tipo de investimento existe risco, como o de o clube patrocinado ou o atleta não terem um bom desempenho na competição (o que fatalmente diminuirá sua projeção na mídia), mas o investidor quer exatamente ter a segurança de que o capital aportado está sendo utilizado no aperfeiçoamento da prática desportiva investida, para que este seja minimizado.

Conhecemos casos célebres de parcerias, no sentido latu (incluindo licenciamentos, co-gestão etc.), que não deram certo, onde na grande maioria das vezes, este fracasso está ligado a atos de má gestão, e o dinheiro do investidor sendo jogado “pelo ralo” (fica a cargo do leitor elucubrar onde este desemboca).

A contabilidade dos clubes se mostra comumente como uma verdadeira “caixa-preta”, muitas vezes de difícil ou impossível decodificação. Esse e outros fatores, quando somados, geram a certeza da impunidade, que é a mola propulsora dessas práticas, e, ao final, o prejudicado é o esporte nacional.

Não é que o regramento das associações tenha deixado de introduzir mecanismos de responsabilização pessoal de seus administradores por atos de má gestão, a verdade é que esses não se mostram plenamente eficazes. A regra geral é que, em se tratando de associação, a responsabilidade de seus integrantes é bastante restrita, haja vista que não há entre eles direitos e obrigações recíprocas, nos termos do artigo 53 do Código Civil vigente[2].

Em relação nomeadamente ao desporto, a Lei no 10.672/2003, alcunhada como “Lei de Moralização do Futebol” alterou e incluiu disposições na Lei no 9.615/1998, a tão conhecida “Lei Pelé”, para que ficasse previsto que as entidades de prática desportiva participantes de competições profissionais, independentemente da forma jurídica adotada, sujeitam os bens particulares de seus dirigentes no caso de abuso da personalidade jurídica, além destes terem a obrigação de restituir todos os créditos indevidamente utilizados em proveito próprio ou de terceiros[3].

Vemos que esse regramento em nada inovou. Limitou-se de forma despicienda a reescrever o que já estava previsto em nossa legislação, em relação à responsabilização pessoal dos administradores das associações.

Estreme de dúvidas que todo este cenário foi sopesado pelos nossos legisladores, que, através da citada “Lei de Moralização do Futebol”, reputaram que “a exploração e a gestão do desporto profissional constituem exercício de atividade econômica”[4], sedimentando a faculdade de as “entidades desportivas profissionais constituírem-se regularmente em sociedade empresária”[5].

Sabe-se que a sistematização que rege as sociedades empresárias introduz meios mais eficazes de responsabilização pessoal de seus administradores (v.g., quando não agirem com o cuidado e diligência que todo o homem probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios, ou quando agirem com culpa no desempenho de suas funções)[6].

Com base nestas premissas, a mens legis do regramento referente ao clube-empresa, ao que parece, é a facilitação da captação de investimentos, seja trazendo segurança para o investidor, ou uma formatação de organização dos clubes em um modelo que permita explorar a atividade de forma mais otimizada e transparente.

Mas podemos ousar dizer que inicialmente, como diz a expressão popular: “o tiro saiu pela culatra”. Em relação à organização societária, vemos uma regulamentação desportiva ineficaz, injusta e, muitas vezes, inaplicável sob o ponto de vista prático, senão vejamos.

Com a redação dada pela Lei no 9.981/2000, a “Lei Pelé” facultou às entidades de prática das atividades relacionadas a competições de atletas profissionais a organização em sociedades civis de fins econômicos, em sociedades comerciais, ou que constituíssem sociedades comerciais para a gestão das atividades relacionadas[7].

E esta nova Lei de 2000 foi além, ao alterar a redação do artigo 94 da “Lei Pelé” para delimitar que as normas insertas, referentes à organização e constituição das entidades de prática desportiva, seriam obrigatórias exclusivamente para atletas e entidades de prática profissional da modalidade de futebol, sendo facultado às demais modalidades desportivas adotar os preceitos constantes nos referidos dispositivos[8].

Já a Lei no 10.672/2003, dentre outras providências, incluiu os parágrafos 9 e 11 ao artigo 27 também da “Lei Pelé”, que preveem ser facultado às entidades desportivas profissionais constituírem-se regularmente em sociedade empresária, segundo um dos tipos regulados nos artigos 1.039 a 1.092 do Código Civil vigente, porém apenas as entidades desportivas profissionais da modalidade de futebol profissional, que se constituírem regularmente em sociedade empresária, não ficam sujeitas ao regime das sociedades em comum[9].

Isso quer dizer que as entidades de prática desportiva profissional da modalidade de futebol que não optarem pela faculdade de se organizarem em sociedades empresárias serão consideradas sociedades em comum, irregulares. A consequência prática desta disposição é a de que você, na qualidade de associado de clube, poderá ter seus bens particulares excutidos para o pagamento das obrigações sociais, ficando ainda excluído do benefício de ordem, aquele que contratou em nome da sociedade (art. 1.024 do Código Civil[10]).

Portanto, pelo regramento em vigor, não existe alternativa, os clubes de futebol que explorarem a modalidade profissional ficam praticamente obrigados a adotar a faculdade, pois as consequências advindas da sua não aceitação, principalmente em virtude da responsabilidade ilimitada dos “sócios” pelas obrigações sociais, são graves.

A título exemplificativo, podemos mencionar que, caso o clube aquiesça à “transformação”, adotando um tipo empresarial, dificilmente verá seus sócios sendo responsabilizados pessoalmente pelas dívidas da empresa, mesmo que não levasse a feito seu novo estatuto social, pois se sabe que a desconsideração da personalidade jurídica só é autorizada em casos específicos (v.g, artigo 50 do Código Civil vigente[11] e 28 do Código de Defesa do Consumidor[12]) e mediante o devido processo legal.

O Projeto de Lei da Câmara dos Deputados, no 9 de 2010, que altera a Lei no 9.615/1998, está vindo à tona para tentar terminar com esta celeuma[13]. Percebe-se uma positiva mudança, pois se está substituindo a disposição de que o clube que não optar pela “faculdade” de se organizar em um dos tipos de sociedade empresária, fica sujeito ao regime das sociedades em comum, irregulares, pela previsão de que os administradores de entidades desportivas profissionais respondem solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados, de gestão temerária ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto.

Dada sua percuciência, vale transcrever trecho do Parecer da Comissão Especial de relatoria do Exmo. Sr. Deputado José Rocha, que trata especificamente da alteração do parágrafo 11 do artigo 27 da Lei no 9.615/1998[14], emitido quando da apreciação do Substitutivo do Projeto de Lei no 5.186/2005 da Câmara dos Deputados, in verbis:

“Ainda sobre as mudanças no art. 27, chama-nos a atenção o fato de a nova redação sugerida para o § 11 não ter qualquer conexão com o texto atual. São matérias completamente diferentes. O novo texto acaba por revogar tacitamente o antigo.

No âmbito do Direito Desportivo, não concordamos com a revogação do § 11 do art. 27, que seria um retrocesso em relação à responsabilização incluída na Lei Pelé pela Lei no 10.672/2003, também conhecida como Lei Moralizadora do Futebol. Entendemos que o texto atual deve ser preservado, com, no entanto, uma única mudança, que tem por objetivo preservar os sócios comuns da responsabilização pelos atos com desvio de finalidade dos administradores das associações desportivas. Propomos nova redação, que está em consonância com o entendimento da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça – STJ, nos termos do Enunciado 59, aprovado na “I Jornada de Direito Civil” do STJ, para determinar que os administradores de entidades desportivas profissionais respondam solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados, de má gestão ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto, nos termos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.

(…)”.

Segundo nossa ótica, a novel disposição atende melhor ao desígnio maior do legislador, ao sedimentar a responsabilização dos gestores dos clubes, trazendo, em consequência, maior segurança aos fomentadores do desporto, sem, no entanto, a previsão de “soluções” normativas draconianas para seus associados. Mas muito ainda tem que ser feito. A alteração, no nosso sentir, carece de regulamentação complementar específica com vias a garantir a sua plena efetividade.


[1] No que tange ao custo da publicidade para o investidor, dado interessante foi trazido por PEDRO TRENGOUSE L. DE SOUZA, ao efetuar comparação entre a despesa para a veiculação de marca através da prática desportiva e diretamente, mediante a inserção de comerciais na TV(…) Por exemplo, a LG teria que pagar R$ 108 milhões para  obter a mesma exposição de mídia que obteve em 2004 patrocinando o São Paulo Futebol Clube, que teve 77 jogos transmitidos pela TV, por 7 milhões (…), in TRENGOUSE L. DE SOUZA, Pedro. Curso de Direito Desportivo Sistêmico. São Paulo: Quartier Latin, 2007.p.201, citando dados do relatório de 2004 do Informídia.

[2] Art. 53 da Lei no 10.406/2002: “ Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos.

Parágrafo único. Não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos”.

[3] Art. 27.da Lei no 9.615/1998: “As entidades de prática desportiva participantes de competições profissionais e as entidades de administração de desporto ou ligas em que se organizarem, independentemente da forma jurídica adotada, sujeitam os bens particulares de seus dirigentes ao disposto no art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, além das sanções e responsabilidades previstas no caput do art. 1.017 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, na hipótese de aplicarem créditos ou bens sociais da entidade desportiva em proveito próprio ou de terceiros”. (Redação dada  pela Lei no 10.672, de 2003)

[4] Art. 2o  da Lei nº9.615/1998: “O desporto, como direito individual, tem como base os princípios:

(…)

Parágrafo único. A exploração e a gestão do desporto profissional constituem exercício de atividade econômica sujeitando-se, especificamente, à observância dos princípios: (Incluído pela Lei no 10.672, de 2003)

(…)”.

[5] Artigo 27, parágrafo 9o da Lei nº 9.615/1998: “É facultado às entidades desportivas profissionais constituírem-se regularmente em sociedade empresária, segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil”.(Incluído pela Lei nº 10.672, de 2003)

[6] GUSMÃO, “Mônica. Lições de Direito Empresarial”. Rio de Janeiro: Editora Lumem Júris, 2007.p.155

[7] Art. 27. da Lei nº9.615/1998 (Redação dada pela Lei no 9.981, de 2000): “ É facultado à entidade de prática desportiva participante de competições profissionais:

I – transformar-se em sociedade civil de fins econômicos;

II  –  transformar-se em sociedade comercial;

III – constituir ou contratar sociedade comercial para administrar suas atividades profissionais”.

[8] Art. 94 da Lei no 9.615/1998:  “Os artigos 27, 27-A, 28, 29, 30, 39, 43, 45 e o § 1o do art. 41 desta Lei serão obrigatórios exclusivamente para atletas e entidades de prática profissional da modalidade de futebol”. (Redação dada pela Lei no 9.981, de 2000)

[9] Artigo 27, parágrafo 11o da Lei no 9.615/1998: “Apenas as entidades desportivas profissionais que se constituírem regularmente em sociedade empresária na forma do § 9o não ficam sujeitas ao regime da sociedade em comum e, em especial, ao disposto no art. 990 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil”. (Incluído pela Lei no 10.672, de 2003).

[10] Art. 1.024 da Lei no10.406/2002: “Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais”.

[11] Art. 50 da Lei no 10.406/2002: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

[12] Art. 28 da Lei no 8.078/1990: “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.

[13] Artigo 27 parágrafo 11o, com a redação dada pelo Projeto de Lei no 09/2010: “Os administradores de entidades desportivas profissionais respondem solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados, de gestão temerária ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto, nos termos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil”.

[14] Fonte:www.camara.gov.br: Parecer da COMISSÃO ESPECIAL publicado no DCD de 09/05/09, PÁG 18184 COL 02, Letra B.