
Dom Quixote e Sancho Pança, uma lição de otimismo
A festividade de outorga dos troféus D. Quixote e Sancho Pança aconteceu pela segunda vez neste ano de 2004, no dia 25 de outubro, tendo como palco o auditório da EMERJ, no prédio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Foram homenageadas personalidades do cenário jurídico e político, entre as quais, o Embaixador da Espanha José Coderch, o Ministro Francisco Peçanha Martins, os presidentes do Tribunal de Justiça e do Tribunal Regional Eleitoral, os Desembargadores Miguel Pachá e Marcus Faver, e o Diretor da EMERJ, Desembargador Sérgio Cavalieri.
Dom Quixote, do imortal Miguel de Cervantes tem sido apontado como o melhor livro de ficção de todos os tempos. Realmente, a história do ingênuo senhor rural que confunde o mundo em que vive com o mundo dos romances de cavalaria, e a partir daí dá vida até aos moinhos de vento, é excepcional.
Pode parecer um delírio extravagante, daquele alto e magro cavalheiro sonhar em recriar o mundo para livrá-lo das injustiças cavalgando Rocinante, seu maltratado pangaré, empunhando aquelas velhas armas e tendo como companheiro de jornada apenas o patético Sancho Pança.
É um engano ver as aventuras de Quixote por esse ângulo. Essa é a superfície, a visão das aparências. Dos 126 capítulos da admirável prosa castelhana “El engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha” transpiram sabedoria e amizade, encantamento e poesia.
Há, em todos os movimentos um fervoroso otimismo, cujo significado é a vontade de mudar, a inquebrantável disposição para agir e fazer do presente um passo coerente na direção do futuro.
Cervantes, poucos sabem, foi soldado e como todos o conhecem, escritor. Conheceu a utopia e a frustração. Soube transformar sua visão de mundo numa mensagem de afirmação das possibilidades de mudança. Soube ver além das aparências.
Uma das características essenciais de Quixote é a vontade de fazer, essa qualidade única das personalidades que não cedem aos revezes da existência e que estão sempre a olhar para frente na busca de horizontes amplos.
Cervantes viveu numa época como a nossa de grandes transformações. O século XVII é o marco do nascimento do Estado moderno com a vigorosa emergência do poder da ciência e dos primeiros esboços dos movimentos políticos que iriam dominar os séculos seguintes.
As grandes democracias européias surgiriam nesse contexto como obras de juristas de visão, responsáveis que foram pelo balizamento dos direitos e deveres dos cidadãos e principalmente da organização do Estado.
Os ecos desses tempos permanecem vivos na nossa memória.
Faço tais observações para chegar ao Brasil dos nossos dias. Guardadas as proporções no tempo e na história, percorremos caminhos semelhantes àqueles dos europeus, pois somos seus filhos e herdeiros.
O que não conseguimos, e é impossível escapar à realidade, foi encontrar o caminho seguro para superar os graves desequilíbrios sociais que estão na raiz de todos os nossos dramas.
Hoje, a tentação ao pessimismo é muito forte. Precisamos rejeitá-la. Precisamos olhar o lado positivo das coisas.
Vivemos num saudável ambiente democrático. A história se move a favor da justiça e do bem estar individual e coletivo. A cada momento é fácil constatar que iniciamos uma era de grandes ambigüidades, mas que é também uma era de grande participação social. Tanto que esses tempos de mudança estão começando pela base da sociedade, ao contrário do passado.
O papel da Justiça, de qualquer ângulo que se olhe, tem sido preponderante. Fonte de aplicação da grandeza da lei é o ponto de partida e de chegada para a correção das desigualdades e a semeadura da educação para a liberdade e principalmente para a inserção autêntica no cotidiano das práticas da ética e do direito.
Todo o processo de mudança será alicerçado pela Justiça. O verdadeiro propósito da democracia é a liberdade, mas são as leis que asseguram o seu exercício e promovem a igualdade entre os cidadãos.
A distinção entre o Brasil do passado, dos idos do ciclo autoritário, e o Brasil do presente é exatamente esta: a legitimidade da lei. Seu aprimoramento é que fará de nós uma sociedade moderna economicamente e socialmente justa.
O apego ao progresso faz parte das nossas melhores vocações.
Embora estejamos vivendo um momento complexo, vincado por desafios colossais, temos a clara noção da nossa capacidade para superar expectativas e crescer. Tem sido assim desde o princípio, quando não passávamos apenas de uma colônia. É assim no presente, quando há um verdadeiro clamor coletivo pela retomada do desenvolvimento.
O Cavaleiro incompreendido, Dom Quixote, trazia consigo as necessidades pautadas em louvar a beleza, o romantismo, a bondade e a Justiça, que no mundo de hoje nem sempre são consideradas qualidades de valor maior.
Sua incessante luta até seu último momento foi buscar por ideais como estes.
E isto me faz pensar que suas sementes brotaram e se multiplicam ao longo dos séculos porque hoje existem mais e mais pessoas preocupadas com tais qualidades.
Pessoas de justiça e de paz, de ética e moral elevadas que colocam sempre à frente o dever de um cidadão de bem. Que se tornam espelhos e exemplos a serem seguidos, pessoas como todos aqui presentes. E que por toda parte estão empenhadas na desafiadora e inadiável missão de construir um novo Brasil.
Dom Quixote é um elo entre otimismo realizador do passado e o otimismo transformador do presente. Um símbolo maior da vitória e da perseverança.
Chamo, portanto todos a fazer de Dom Quixote de La Mancha mais do que uma bandeira, mas um referencial de ações práticas e construtivas”.