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Whistleblower

16 de julho de 2020

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Especialistas discutem uso do “informante do bem” na investigação de casos de corrupção

Em 2006, no âmbito a CPI dos Bingos, que investigava a influência dos contraventores do jogo do bicho na política, o caseiro Francenildo Costa denunciou que o ex-Ministro Antonio Palocci frequentava uma casa em Brasília (DF) utilizada por lobistas interessados em fechar negócios com o Governo Federal. Nas semanas seguintes, Costa perdeu o emprego, teve a vida devassada e o sigilo bancário quebrado sem autorização judicial. Apenas no ano passado, 13 anos após ter denunciado o esquema que levou à queda do então Ministro da Fazenda, o trabalhador viu ser confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) a sentença da ação de reparação de danos que moveu contra o banco público pela quebra indevida do seu sigilo.

 “Este é um exemplo claro, que ainda circula na memória de alguns, do que seria um típico ‘reportante do bem’ e de quais proteções ele mereceria”, exemplificou o Deputado Federal Hugo Leal (PSD-RJ) durante o webinarWhistleblower: A Lei Anticrime e o papel da testemunha informante na fiscalização da administração pública”, realizado em 15/7..

Promovido pelo Instituto Justiça & Cidadania e pelo Instituto Brasileiro de Rastreamento de Ativos (IBRA), com apoio do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), o webinar contou ainda com a participação do Promotor Eronides Santos (MPSP) e dos advogados Manoel Peixinho e Rodrigo Kaysserlian.

Incluída no ordenamento jurídico nacional apenas no ano passado pela Lei Anticrime (Lei nº 13.964/2019), a figura do whistleblower ainda é muito confundida no Brasil com a do delator. Porém, enquanto o delator ou colaborador premiado é a pessoa inserida na organização criminosa que denuncia seus cúmplices em busca de benefícios legais, o “informante do bem” ou “testemunha denunciante” é aquele que embora não participe da suposta prática ilícita, compartilha informações capazes de revelar o modo de atuação da organização criminosa.

Diz o art. 4º da Lei Anticrime que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios deverão manter unidades de ouvidoria ou correição para “assegurar a qualquer pessoa o direito de relatar informações sobre crimes contra a administração pública”. E que os informantes terão o direito de preservar suas identidades, bem como receber proteção contra eventuais retaliações, inclusive com a possibilidade de inclusão em programas de proteção de testemunhas.

“É um tema que ainda gera muitas dúvidas e algumas controvérsias dentro e fora da comunidade jurídica. Por exemplo: Estarão os órgãos públicos de todas as esferas preparados para lidar com informações tão sensíveis, capazes de colocar em risco a integridade dos denunciantes? É adequado o tratamento de dados sigilosos desta natureza por indicados políticos, em órgãos de governo, como são as ouvidorias estaduais e municipais? Aprofundar essas discussões foi o que motivou o webinar”, afirmou o Presidente do Instituto Justiça & Cidadania, Tiago Salles, que mediou o debate.

Novos instrumentos – Mestre pela Academia Internacional de Combate à Corrupção de Viena, com atuação em vários processos de rastreamento de ativos em litígios transnacionais, Rodrigo Kaysserlian explicou que a figura do whistleblower está prevista na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, de 2003, da qual o Brasil é signatário. A UNCAC, na sigla em inglês, prevê que os países implementem políticas contra a corrupção que promovam a participação da sociedade e reflitam os princípios do Estado Democrático de Direito, tais como a integridade e a transparência. A Convenção reforça que os denunciantes precisam de fortes mecanismos de proteção legal para protegê-los de retaliações e permitir que denunciem com segurança e liberdade.

“A corrupção acontece em qualquer lugar, geralmente revestida de formalidades legais. De longe, o ato parece lícito, o que dificulta muito identificar quando o errado acontece. Daí começamos a compreender a importância do whistleblower. (…) No combate à corrupção, temos que depositar nossos esforços em maior quantidade em melhorar o sistema, pontuou Kaysserlian, ressaltando que apenas na última década, com a inclusão de novos instrumentos como a delação premiada, à qual o whistleblowing se equipara, houve avanços nas condenações de grupos políticos que agem à margem da lei. “Tendo em mente que o custo da corrupção no mundo é estimado em US$ 3,6 trilhões por ano, o tema realmente merece total atenção”, acrescentou. 

Estados e municípios – Confrontado com o fato de que a Lei Anticrime conferiu aos estados e municípios a responsabilidade pelo tratamento das denúncias dos whistleblowers, e questionado se esses órgãos teriam a isenção necessária para esse tipo de atuação, o Deputado Hugo leal respondeu que não. Para ele, as ouvidorias governamentais estão encarregadas de dar tratamento às questões rotineiras, para promover a melhoria dos serviços públicos, não estando aptas a receber ou investigar denúncias de crimes. Por isso, segundo o parlamentar, o debate sobre o estímulo às denúncias em âmbito estadual e municipal ainda precisa ser aprofundado, o que não foi possível devido à “agilidade” com que a Lei Anticrime tramitou no Congresso Nacional

Também questionado se acredita que o whistleblower será adequadamente implantado pelos estados e municípios com estruturas institucionais mais limitadas, o advogado Manoel Peixinho admitiu que de fato existe “fragilidade” no sistema de proteção ao servidor público em grande parte do País. O que, para o Presidente da Comissão de Direito Administrativo do IAB, inibe os servidores públicos de delatar ou confessar crimes. 

Alterações sistêmicas – Nesse sentido, Manoel Peixinho defendeu alterações sistêmicas na legislação, como uma reforma da Lei nº 8.112/1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores federais. As diretrizes da lei federal, segundo ele, seriam seguidas pelos estados e municípios para definir quais benefícios e garantias poderiam ser oferecidas ao servidor que decida reportar ilícitos contra a administração pública. Indo além, considerou a possibilidade de uma emenda constitucional: “Por se tratar de tema tão relevante, quero até forçar um pouco a barra e provocar o Deputado Hugo Leal, se talvez não fosse necessária uma alteração na Constituição para estabelecer princípios dessa delação administrativa. Porque as normas constitucionais são principiológicas e poderiam ser seguidas de lei complementar que criasse mecanismos para todos os entes federativos”.

Em resposta, ouviu do Deputado Hugo Leal que pelo fato da Lei Anticrime ter alterado a legislação de forma “difusa”, com mudanças no Código Penal (CP), no Código de Processo Penal (CPP) e em leis esparsas, o ideal será sistematizar as mudanças tanto no CP quanto no CPP. “Defendo a sistematização jurídica de todas essas figuras que nós tratamos aqui, a delação premiada, o acordo de leniência, a testemunha informante. Quanto melhor sistematizado isso estiver, melhor será a persecução penal”, apontou o parlamentar, que é o relator da reforma do Código de Processo Penal, atualmente em tramitação na Câmara.

Caça às bruxas – O Promotor Eronides Santos acrescentou que o debate sobre os mecanismos de proteção à testemunha denunciante também deve ser estendido aos funcionários de empresas privadas que mantêm contratos com a administração pública. Pois esse trabalhador, segundo ele, também precisa contar com órgãos de controle e persecução penal externos, que não tenham relação com o contrato em questão e que sejam capazes de dar adequado tratamento às denúncias. “Do contrário, vamos criar uma situação kafkiana: se reportar ao chefe não vai dar em nada e pode perder o emprego, se reportar ao ente público pode também não dar em nada e novamente correr o risco de perder o emprego”, pontuou.

O Promotor também chamou a atenção para a necessária verificação da veracidade das denúncias, pois as mesmas, quando infundadas, podem arruinar vidas e carreiras injustamente: “É preciso que a informação receba um tratamento adequado e seja verificada antes que se parta para uma caça às bruxas, sob pena de se cometer injustiças maiores”.

Assista ao webinar na íntegra: