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Violência doméstica e familiar contra a mulher

30 de novembro de 2009

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A incidência da violência doméstica contra a mulher é fato que ocorre em todo o mundo e de há muito tempo. Este comportamento resulta da estratificação de uma cultura preconceituosa em relação à mulher.
Os efeitos deletérios da violência doméstica contra a mulher são impressionantes. A Organização Mundial de Saúde estima que grande parte de homicídios é cometido no âmbito doméstico tendo a mulher como vítima.
Não se trata de questão que deva ser considerada como menor ou como apenas um movimento de grupos feministas. Trata-se de questão que fundamentalmente diz respeito à dignidade da condição humana, a qual deve ser preservada, sob pena de, caso ignorada ou não respeitada, inviabilizar a própria existência humana.
A relevância do tema concernente à violência doméstica contra a mulher extravasa os limites nacionais e é objeto de preocupação mundial, tanto que a “Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher”, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 18/12/1979, e ratificada pelo Brasil em 1/2/1984, além da “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher”, pela Organização dos Estados Americanos, de 6/6/1994, ratificada pelo Brasil em 27/11/2005, demonstram os cuidados e providências a serem adotados por todos os países que ratificaram estas normativas internacionais.
A Constituição Federal Brasileira estatui que o Brasil é um Estado Democrático de Direito e tem no respeito à dignidade humana um de seus fundamentos (art. 1o, inciso III). E, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, dispõe que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (art. 5o, inciso I).
Não obstante esta dicção constitucional e as recomendações contidas nas referidas Convenções Internacionais, pouco se tinha efetivado no Brasil.
As questões envolvendo marido e mulher, caracterizadas por violência física, psicológica e de natureza sexual contra a mulher, frequentemente foram e ainda são rotuladas como assuntos que devem ser tratados e resolvidos na intimidade entre os personagens envolvidos, não se admitindo interferência de terceiros, sendo mesmo prudente e sábia a recomendação vigente em praticamente todos os estratos sociais de que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”.
A dinâmica dos fatos sociais é que dá origem às leis. Já os romanos estatuíam ex facto oritur jus.
A promulgação da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, tem a sua gênese em drama vivenciado pela farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que, em 1983, foi vítima de duas tentativas de homicídio perpetradas por seu marido, Marco Antonio Heredia Viveiros, economista. Na primeira, Maria da Penha foi atingida por um tiro de espingarda, disparado por Marco Antonio quando ela dormia. O tiro atingiu-a em suas costas e, em razão das lesões, tornou-se paraplégica. Sobrevivendo ao atentado desfechado pelo próprio marido, que alegava tratar-se o autor do disparo de um assaltante que se introduzira no quarto, afinal desmentido pela prova produzida, Marco Antonio tentou matar Maria da Penha por eletrocussão, quando ela ia tomar banho.
Marco Antonio foi submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, em 1986, e, após inúmeros percalços processuais, em 1996 foi condenado à pena de 10 anos e 6 meses de reclusão, permanecendo, no entanto, livre até 2002, quando foi finalmente preso, passados 19 anos da primeira tentativa de homicídio, e, sendo beneficiado com o regime de progressão da pena, cumpre-a em liberdade.
A demora na punição e a falta de rigor no tratamento de delitos dessa natureza, ou seja, os decorrentes de violência doméstica, levaram Maria da Penha, com o apoio de organizações feministas, a promover reclamação perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos quanto à leniência e ineficiência do Estado Brasileiro em cumprir as normativas internacionais.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos deliberou no Relatório nº 54, de 2001, que o Brasil, embora tenha tomado algumas medidas destinadas a reduzir o alcance da violência doméstica e a tolerância estatal da mesma, essas medidas, entretanto, ainda não possibilitaram reduzir consideravelmente o padrão de tolerância estatal, particularmente em virtude da falta de efetividade da ação policial e judicial, com respeito à violência contra a mulher.
Dentre as recomendações, o Relatório nº 54 preconizou a continuidade e o aprofundamento do processo reformatório do sistema legislativo nacional, a fim de mitigar a tolerância estatal à violência doméstica contra a mulher no Brasil e, em especial, recomendou “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e as garantias do devido processo e o estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às consequências penais que gera”.
A promulgação da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, é a resultante não só de regular processo legislativo, expressando a vontade popular, mas, sem dúvida, é o resultado da força e eficácia de convenções internacionais, ratificadas pelo Brasil.
Esta lei foi gerada pelo inconformismo e pela dor, física e moral, de uma vítima de violência doméstica que buscava a aplicação da lei e sua efetiva execução.
A Lei 11.340/2006 representa a presença brasileira no concerto das nações, na efetividade do primado da liberdade, da igualdade e da solidariedade, pilares em que se assenta a dignidade humana.
E, por isso, foi batizada como “Lei Maria da Penha”.
A Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, tem o escopo de  criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher; altera o Código  de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.
Vê-se, assim, que a Lei 11.340/2006 não só tem o propósito de dar concreção ao comando constitucional de proteção à mulher como, também, o de atender às recomendações da Resolução nº 54, de 2001, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Os propósitos da Lei 11.340/2006 são abrangentes e multidisciplinares, dispondo sobre matérias cíveis e penais, as quais são analisadas e julgadas por um mesmo juiz, numa visão integrativa do Direito, não se circunscrevendo apenas ao âmbito de proteção da mulher como vítima, mas também resguardando a pessoa do agressor por necessitar de tratamentos especiais. E, também, as pessoas dos filhos, especialmente os menores que sofrem os efeitos e consequências da desagregação de seus pais.

Pontos relevantes da Lei Maria da Penha
Configura-se violência doméstica e familiar contra a mulher, para os efeitos da Lei 11.340/2006, qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral e patrimonial, ocorridas no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (art. 5°), independentemente de orientação sexual (par. único).
Por âmbito da unidade doméstica, entenda-se como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas.
E, por âmbito da família, entenda-se como a comunidade formada de indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.
A abrangência de situações configuradoras de violência doméstica e familiar contra a mulher também é repetida ao dispor, em seu artigo 7°, exemplificativamente, configurar-se:

I –    violência física, qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II –    violência psicológica, qualquer conduta que lhe cause dano emocional  e diminuição da autoestima, ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento, ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III –    violência sexual, qualquer conduta que a constranja a presenciar ou manter, ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV –    violência patrimonial, como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V – violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Os elevados objetivos da Lei 11.340/2006, por seu aspecto multifacetário e multidisciplinar, não poderiam ser alcançados se não por meio de políticas públicas que articulem ações integradas de todos os entes estatais — União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios —, em conjunto com a sociedade civil, em geral, e com organizações não-governamentais.
Estas ações abrangem a integração do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação.
Na pauta de ações integradas, inserem-se campanhas educativas de prevenção à violência doméstica e familiar contra a mulher; a inserção nos currículos escolares, de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, não só com relação à violência doméstica e familiar contra a mulher, mas também à equidade de gênero e de raça ou etnia.
Para a adequada aplicação e execução desta novel lei, é necessária a formação de quadros preparados  profissionalmente para o atendimento de ocorrências e situações de violência doméstica e familiar contra a mulher, como a criação e instalação de Delegacias Especializadas e de Juizados Especiais.
Por seu caráter multidisciplinar, uma vez que a caracterização de violência doméstica e familiar contra a mulher envolve aspectos penais e aspectos cíveis, ao processo, julgamento e execução de causas cíveis e criminais aplicam-se as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança e ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com a Lei 11.340/2006.
No referente às ações penais públicas condicionadas à representação de que trata a Lei 11.340/2006, dispõe o artigo 16 que só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 1995; ou seja, os delitos desta natureza não são considerados como delitos de menor potencial ofensivo.
Na aplicação de penas, é vedada a condenação em obrigação de fornecer cestas básicas ou de outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.
Ao tomar conhecimento da ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher, medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor e medidas protetivas de urgência que protegem a ofendida poderão ser determinadas pelo juiz, de imediato, como tutelas de urgência.
Dentre as medidas que obrigam o agressor, ressaltam-se as que determinam o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência do agressor com a ofendida; a de proibição de aproximação do agressor em relação à ofendida ou de seus familiares e de testemunhas, fixando-se o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; a proibição de frequentar deteminados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; a de prestar alimentos provisionais ou provisórios.
Também, no resguardo da ofendida, poderá o juiz determinar a separação de corpos, ou determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos.
Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, poderá o juiz determinar, liminarmente, a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; de proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher são competentes para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher e, enquanto não estruturadas, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal de causas decorrentes de infração à Lei 11.340/2006.

Quebra de padrão cultural
Ao instituir proteção à mulher contra a violência doméstica e familiar, em qualquer das modalidades que afrontem sua dignidade humana, não só decorrentes de agressões físicas, psicológicas ou patrimoniais, e, ao atribuir aos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar competência jurisdicional, em matéria cível e penal,  para aplicar a Lei Maria da Penha, não só o corpo social, integrado por todos os membros da sociedade brasileira, como também e, principalmente, os operadores do Direito hão de adaptar-se a esta nova realidade cultural para compreender que o respeito à mulher, aos seus direitos e às suas necessidades, frequentemente obnubilados por comportamentos preconceituosos, hão de ser restituídos. E que a concentração jurisdicional em um único órgão julgador, com competência cumulativa em matéria cível e penal, em nada diminui a jurisdição, como emanação da soberania do Estado.

 Sensibilização e conscientização
O êxito e o sucesso para a aceitação da Lei Maria da Penha, não obstante seu caráter cogente, há de ser objeto de política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Nesse sentido, as medidas e práticas integrativas contempladas no artigo 8° e seus inciso I a IX devem servir de norte permanente de orientação.

Realidade presente
Passados 3 anos de sua promulgação, indaga-se: a Lei 11.340/2006 está sendo aplicada e cumprida? Ou, como se diz em colóquio informal, a Lei Maria da Penha “pegou”?
Segundo dados da Secretaria de Políticas Especiais para as Mulheres (SPM), obtidos em pesquisa realizada no primeiro semestre de 2009, cerca de 78% da população brasileira conhece a Lei Maria da Penha.
Levantamento efetuado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indica que, até maio de 2009, haviam sido ajuizados mais de 150 mil processos com fundamento na Lei Maria da Penha.
O site “Justilex”, em seu nº 73, informa que no Mato Grosso, desde a criação da Vara Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a reincidência caiu de 60,8% para 1,48% e que o Governo Federal vai liberar R$ 37 milhões para auxiliar os Tribunais de Justiça a implantar e estruturar os juizados especiais.
O Ministério da Justiça, por meio do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), instituiu a ação de efetivação da Lei Maria da Penha, que prevê, entre outras medidas, o apoio financeiro e institucional aos Tribunais de Justiça dos Estados para a criação de Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Com o aporte financeiro federal, já se encontravam instalados no Brasil, até o final do 1º semestre de 2008, 35 juizados e, com a previsão de instalação, em 2008, de mais 15 juizados, 11 Defensorias Públicas Estaduais, a reestruturação de 16 núcleos especializados de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar e o incentivo aos Ministérios Públicos Estaduais para a vigilância e cumprimento da Lei Maria da Penha.
Estes expressivos números resultam das políticas públicas e de iniciativas da sociedade em geral, no sentido de promover a conscientização de que a questão da violência doméstica e familiar contra a mulher é do interesse de toda a sociedade.

O futuro da Lei Maria da Penha
Os resultados já obtidos pela aplicação da Lei Maria da Penha sinalizam tratar-se de eficaz instrumento para a pacificação social e a elevação do ser humano.
Veja-se o cancioneiro popular, como caixa de ressonância do cotidiano social, já consagrar:

“O bicho pegou, não tem mais a banda
De dar cesta básica, amor
Vacilou, tá na tranca
(…)
Se você me der um tapa
Da dona Maria da Penha
Você não escapa”.
(Trechos da letra da canção Maria da Penha, de Paulinho Resende e Evandro Lima, gravada pela cantora Alcione)

A despeito de resistências naturais às inovações, notadamente em trato de mudança cultural, não só o Poder Público como, também, a sociedade em geral, estão receptivos à Lei Maria da Penha; pois, ao se promover a igualdade, não só formal, mas também a material e substancial da mulher, o que se está prestigiando e consagrando é a equalização de homens e mulheres, no mesmo nível de direitos e obrigações, com o que se está respeitando a dignidade humana.
A edição da Lei Maria da Penha é uma resposta aos anseios de concretização dos princípios de “liberdade, igualdade e fraternidade”, decantados em todas as Constituições Modernas, cuja observância conduz à almejada paz e felicidade do ser humano e, por isso, há de ser saudada e festejada, como uma das grandes conquistas do Direito Brasileiro.