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Uso de armas de fogo por forças policiais

8 de abril de 2019

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“A polícia vai mirar na cabecinha e … fogo.”

O autor da frase é Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro. Por cá temos assistido, na última década, ao aumento de casos de agentes de autoridade a serem julgados, disciplinar e criminalmente, pelo uso de arma de fogo em serviço, fruto de nova realidade criminal, melhor organizada e transfronteiriça, melhor apetrechada e mais violenta, caracterizada na maior parte dos casos pelo desvalor do bem jurídico mais precioso – a vida. São casos em que os agentes de autoridade têm, em frações de milésimo de segundos, de tomar uma decisão, ao bom estilo do ditado popular brasileiro: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.

Como decorre da Constituição da República Portuguesa (CRP) “A vida humana é inviolável” (art. 24); “A integridade moral e física das pessoas é inviolável” (art. 25). Simultaneamente, prevê o texto fundamental que: “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à Lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé” conforme art. 266, no 2 da CRP e ainda: “Os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não dependendo a ação ou procedimento, em qualquer fase, de autorização hierárquica”, art. 271, no 1 da CRP.

O uso de armas de fogo em ação policial é regulado pelo Decreto Lei no 457/1999. Consagra o art. 2o, no 1 do Decreto Lei, sobre a epígrafe “Princípios da necessidade e da proporcionalidade” que apenas é permitido o recurso a arma de fogo em caso de absoluta necessidade, como medida extrema, quando outros meios menos perigosos se mostrem ineficazes, e desde que proporcionado às circunstâncias, numa clara imposição, da sua subordinação aos princípios da necessidade e da proporcionalidade. Ainda que se encontrem verificadas as condições de recurso a armas de fogo o agente deve, mesmo assim, esforçar-se por reduzir ao mínimo as lesões e danos e respeitar e preservar a vida humana, vide o no 2 do art. 2o.

De vital importância para a utilização de armas de fogo em serviço estabelece o art. 3o do DL 457/99, de 5/11:

1. No respeito dos princípios constantes do artigo anterior e sem prejuízo do disposto no no 2 do presente artigo, é permitido o recurso a arma de fogo:

a) Para repelir agressão atual e ilícita dirigida contra o próprio agente;

b) Para efetuar a captura ou impedir a fuga de pessoa suspeita de ter cometido crime punível com pena de prisão superior a três anos ou que faça uso ou disponha de armas de fogo, armas brancas ou engenhos ou substâncias explosivas, radioativas ou próprias para a fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes;

2. O recurso a arma de fogo contra pessoas só é permitido desde que, cumulativamente, a respectiva finalidade não possa ser alcançada através do recurso a arma de fogo, nos termos do n.o 1 do presente artigo, e se verifique uma das circunstâncias a seguir taxativamente enumeradas: a) Para repelir a agressão atual ilícita dirigida contra o agente ou terceiros, se houver perigo iminente de morte ou ofensa grave à integridade física;

b) Para prevenir a prática de crime particularmente grave que ameace vidas humanas;

c) Para proceder à detenção de pessoa que represente essa ameaça e resista à autoridade ou impedir a sua fuga.

3. Sempre que não seja permitido o recurso a arma de fogo, ninguém pode ser objeto de intimação através de tiro de arma de fogo.

4. O recurso a arma de fogo só é permitido se for manifestamente improvável que, além do visado ou visados, alguma outra pessoa venha a ser atingida.

Fácil é de perceber e aceitar que, numa situação de extrema complexidade de análise ao milésimo de segundo, associado a descargas de elevados níveis de adrenalina por parte dos agentes de autoridade, no sentido de missão em deter os suspeitos da prática de crimes, o agente de autoridade, sentindo-se ameaçado ou sentido terceiros ameaçados e em perigo possa socorrer-se da arma de fogo e usá-la contra o(s) suspeito(s).

Falar em utilização de armas de fogo em serviço por elementos de forças policiais é, invariavelmente, falar dos processos no 250/08.1GILRS conhecido por “Processo Hugo Ernano”; do processo no 6454/13.8T3SNT, conhecido pelo “Processo Tiago Ameixinha”; e do processo no 112/13.0PHOER, também conhecido por “Processo Barroso”. A Justiça portuguesa condenou o primeiro a quatro anos de prisão e absolveu os três restantes agentes de autoridade não por se encontrarem verificados os pressupostos do Decreto Lei no 457/1999, mas porque o elemento policial agiu em erro sobre as circunstâncias de fato de uma causa de exclusão da ilicitude, qual seja a legítima defesa.

Como se sabe, constitui legítima defesa o fato praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, conforme art. 32 da Constituição da República Portuguesa. O erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa justificativa deve considerar-se erro sobre a factualidade típica, já que o erro é o limite do dolo, na medida em que este é conhecimento ou representação dos elementos do fato que formam o tipo legal. Por esse motivo, o erro sobre um elemento constitutivo de um tipo legal de crime exclui o dolo. É este o princípio geral, que resulta da própria natureza do dolo, em matéria de erro sobre a factualidade típica.

Nestas situações, o tipo incriminador é dolosamente realizado pelo agente, mas este, porque aceita erroneamente elementos que a existir excluiriam a ilicitude, atua sem culpa dolosa, não podendo por isso ser punido a título de dolo, mas eventualmente, apenas a título de negligência, se o respectivo tipo de ilícito possibilitar a previsão da punição por negligência.

Trata-se de uma posição dogmática vertida no art. 16, no 2 e no 3 do Código Penal, que consagra que:

1. O erro sobre os elementos de fato ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do fato, exclui o dolo.

2. O preceituado no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do fato ou a culpa do agente.

É peremptório a existência de fatos provados que demonstram, nos casos concretos, o elemento subjetivamente relevante de que os arguidos supuseram que estavam, naquele momento, a ser objeto de uma ameaça sobre si.

É perante este quadro de intenções resultante das diversas decisões judiciais sobre a utilização de armas de fogo em serviço nos últimos dez anos que para espanto da sociedade portuguesa a Inspeção Geral da Administração Interna proferiu despacho de arquivamento no processo disciplinar com o no PND-36/2017. Em causa os cerca de 40 disparos efetuados por uma equipa de intervenção rápida da Polícia de Segurança Pública na direção de um carro em fuga que continha, no seu interior, alegados suspeitos da prática de crimes e que desobedeceram às ordens de paragem para revista no âmbito da operação policial.

No seguimento dos disparos constatou-se que: o veículo em causa não correspondia ao veículo que havia estado momentos antes noutras artérias da cidade de Lisboa, envolto em assaltos e cujos ocupantes haviam trocado disparos de armas de fogo com outros elementos policiais e, acrescer a este fato, os ocupantes do veículo não eram os suspeitos do furto. Na sequência da desobediência à ordem de paragem efetuada pelos elementos policiais, o condutor do veículo não acatou a ordem, avançando em velocidade excessiva para o local em direção dos agentes de autoridade tendo quase todos eles (7) disparado em direção ao veículo em fuga e, no decurso de um desses disparos, veio a atingir mortalmente a ocupante da viatura em fuga, uma cidadã de nacionalidade brasileira que nada tinha a ver com os fatos. Resultado: Legítima Defesa Putativa.

Em Portugal, nenhum dirigente político irá assumir, publicamente, que as forças de segurança poderão fazer uso da arma de fogo caso verifiquem um meliante na posse de arma de guerra. Os casos citados são, portanto, a exceção nos últimos anos. Contudo, a compressão e as assimetrias sociais são potenciadoras perigosas para o surgimento de sentimentos de impunidade para os suspeitos de crimes violentos que sabem que cada vez que um agente de autoridade faz uso da arma arrisca-se, seriamente, a vir a ser condenado disciplinar e criminalmente mesmo que tenha apenas e somente como propósito o cumprimento da Lei.