Edição

Uma nova visão sobre a recuperação de empresas

3 de agosto de 2020

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Introdução

O mundo está vivendo momentos únicos, não há mais tempo de se construir uma solução ideal, teses não resolvem. Talvez até mesmo modelos importados encontrarão dificuldades para uma realidade tão peculiar como a nossa. Portanto, a partir de um modelo positivado como é a Lei nº 11.101/2005, que nos traz no momento a única solução dos problemas das empresas sem liquidez, com segurança jurídica, devemos ante a inocuidade das demais medidas tomadas, buscar aplica-la de forma harmônica junto ao ordenamento jurídico, para garantia eficaz da resolução das lides. Essa é a intenção desse texto, refletir sobre o possível, dentro de uma conjuntura existente.

Desenvolvimento

O segregamento oriundo da crise de saúde desencadeada, suscitou também uma crise econômica com consequências jurídicas a nos desafiar. O processo hoje já atesta lides decorrentes da pandemia. O que preocupa não é só a quantidade de demandas, mas a qualidade da jurisdição a ser prestada. Para isso, necessário reconhecer o cenário emergencial que se configura, sem precedentes e por hora imprevisível.

Uma jurisdição de guerra.

Os economistas falam em descompasso entre o tempo econômico financeiro e o jurídico. Dificuldades em pagamentos diversos, aluguéis, obrigações vencidas e falta de dinheiro, liquidez. Explicam com muita clareza que estamos diante de uma crise sistêmica, que atinge uma cadeia de suprimentos em elos do fornecedor até o desemprego, que há um reflexo  imediato nas empresas e em suas cadeias produtivas, que por falta de liquidez acabarão insolventes, levando ao flagelo toda a sociedade.

A incerteza dificulta saber qual é a melhor decisão a tomar, quais critérios, técnicas justas, para a aplicação da lei.

Diz o Professor Cassio Cavalli em seu texto:

“Essas ações judiciais serão propostas por milhões de pessoas e empresas, e muitas vezes será uma ação judicial para cada obrigação que se pretende prorrogar, o que multiplicará acentuadamente os números de processos judiciais. Da mesma forma, serão milhares de ações de recuperação judicial, com as suas milhares ou milhões de ações incidentais, que serão ajuizadas. Como consequência, a ausência de adoção de regras coordenadas de alívio financeiro (a) não assegurará que credores recebam pagamentos; (b) fará com que credores tenham que gastar recursos para promover a cobrança de seus créditos; e (c) sobrecarregará significativamente o Poder Judiciário, que poderá levar anos ou décadas para normalizar o número de processos”.

A reportagem da jornalista Talita Moreira, no jornal Valor Econômico contribui com dados que revelam que:

“A onda inicial atinge principalmente empresas que já vinham em dificuldade, dado o crescimento econômico pífio nos últimos anos. Porém os indícios da crise do coronavírus se fazem notar pela prevalência de empresas pequenas (94,8%) e do setor de serviços (55,6%) nos pedidos de recuperação judicial”.

O comércio é o setor que mais concentra microempresa e empresa de pequeno porte, tendo como primazia o comércio varejista de vestuários e acessórios, seguido pelo comércio de produtos alimentícios, de acordo com estudos do Sebrae.

O estudo de impacto alega que 78% das microempresas não têm caixa suficiente para honrar suas obrigações por mais de um mês. Por conta disso, 82% delas necessitarão de crédito para capital de giro nos próximos três meses.  A necessidade média de crédito para capital de giro das microempresas é de 47% do faturamento e deve ser usado por 87% das microempresas para pagamento de salário de funcionários. As despesas com aluguel ocupam lugar de destaque nos usos do crédito de capital de giro das microempresas, 61% das microempresas pretendem utilizar o crédito de capital de giro para esse fim, diferentemente dos demais portes.

Para lidar com o impacto da crise, entre as principais medidas a serem adotadas pelas microempresas destacam-se a suspensão temporária de contratos de trabalho (46%) e a renegociação de aluguéis (46%). Além disso, as microempresas são as que mais pretendem utilizar capital próprio na empresa para lidar com os impactos da crise e pretendem buscar financiamento especialmente com bancos públicos, além de ajustar o fluxo de caixa.

Foram pinçados os referidos dados, de fontes sobre o tema, apenas para demonstrar a importância que o Direito empresarial, mais especificamente o instituto de Recuperação de Empresas, assume nesse momento em que o instrumento de justiça social perpassa pela Lei nº 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.

Trata-se de uma lei que ao regular cada elo da reestruturação da cadeia empresarial irá se revelar como ferramenta de enfrentamento, para albergar as mazelas sociais advindas da desigualdade gerada pela crise. Uma lei que, ao seu tempo, já significou a quebra de paradigma da vetusta concordata, e que hoje traz, como visto, a preservação da empresa reconhecendo, sobretudo, que dela advém fundamental função social. Embora negocial e com intervenção mínima do Judiciário, trouxe caráter empreendedor e é baseada em princípios que proporcionam embasamento a uma justa decisão.

Hoje, no entanto, carente de elementos que viabilizem a necessidade da recuperação de empresas em crises, é necessário para o suprimento de seu entendimento a algumas recuperações a hermenêutica, que, junto ao sistema jurídico vigente, passa a ser a essência dos princípios que subsidiam a atividade empresarial, propiciando a chegada do subsidio recuperador, ao fim da cadeia empresarial em crise, atingindo o emprego.

O impacto sem dúvida se dá no emprego, como verificamos, e não simplesmente no binômio empresário-empresa. A microempresa e a empresa de pequeno porte são as que mais são atingidas com a crise, concluindo-se sem dúvidas que tão só a Lei posta não lhes socorre. Impõe-se para essas reestruturações um sistema de composição de conflitos, tal qual recomendado pelo acordo com a Política Judiciaria Nacional de Tratamento Adequado de Conflitos, instituída pela Resolução n° 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que objetiva o incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução, pacificação social e prevenção de litígios. Adequados a composição, com os ditames do Código Civil atual, da Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996), da Lei de Mediação e Conciliação (Lei nº 13.140/2015) e, sobretudo, compatível com o Direito posto na Lei de Recuperação Judicial.

A gestão de consensualidade, devolvendo as próprias partes a condução dos negócios.

Os dados estão postos e entendo coadunarem-se com a recuperação o método alternativo, pela composição consensual dos conflitos. Um sistema híbrido que pode evitar o uso do Judiciário nas negociações apenas para homologar, ou não, o acordo. Um volume de processos a serem solucionados em uma sala de reunião com mediadores para tanto preparados. Litígios genuínos que se resolvem em diálogos através de uma técnica legislativa responsável. Uma não judicialização, quando pré-processual, ou até mesmo a desjudicialização, dependendo da fase do processo em que ocorra.

Cabe a escolha a cada um de nós, aplicadores da Lei, a identificação da real condição da empresa em crise para aplicação da lei. Uma mudança de cultura, entendendo que hoje o capital tem um caráter humano, de sobrevivência. Dessa forma, temos que o Direito posto aliado à tendência legislativa dos países desenvolvidos, adotando em certas reorganizações empresariais métodos alternativos compositivos, trará a celeridade e a eficácia necessária a prestação jurisdicional.

A sensibilidade aguçada dos aplicadores do Direito, diante desse desafiador panorama, a análise de caso a caso, para que possamos proporcionar de forma segura uma digna retomada através dos processos que nos são levados, cumprindo dessa forma com êxito uma missão.

Conclusão

Costumo dizer que não se trata de um garantismo empresarial. Mas fato, esse é o futuro. Não se concebe mais um Direito sem formas alternativas, por ser mais adequada a realidade. Devolver à sociedade a condução dos negócios, diante do decréscimo da atividade econômica das empresas de menor porte, é o caminho.

Não fossem as alternativas legais seguras, haverá o desaparecimento dos agentes econômicos do cenário, aqueles que geram empregos. Em situações criticas a imprecisão se agrava e o consenso evita a paralisia, a morte das pequenas empresas, dando-as como destino apenas fechar as portas.

Não importa se for um ou se forem milhões de processos. O protagonismo do Judiciário está agora na resolução de um trauma coletivo, e não em números. A resolução através dos métodos consensuais diante do cenário posto, nos parece, a sensibilidade de quem vai aplicá-lo, um efetivo mecanismo que resolve as agruras de um povo traduzido em pequenas empresas em crise.

Daí essas reflexões.

Notas________________________

1 CAVALLI, Cássio. O Brasil deve ou não adotar novas regras para enfrentar a crise econômica? Cássio Cavalli Advogados. Disponível: https://www.cassiocavalli.com.br/o-brasil-deve-ou-nao-adotar-novas-regras-para-enfrentar-a-crise-economica. Acesso: 11/6/2020.

2 Pedidos de recuperação judicial disparam em maio. Valor Econômico, São Paulo, 5/6/2020. Disponível: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/06/05/pedidos-de-recuperacao-judicial-disparam-em-maio.ghtml. Acesso: 5/5/2020.

3 SEBRAE. Perfil das microempresas e empresas de pequeno porte 2018. Disponível: https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/ro/artigos/perfil-das-microempresas-e-empresas-de-pequeno-porte-2018,a2fb479851b33610VgnVCM1000004c00210aRCRD. Acesso: 5/5/2020.

4 BRASIL. Lei nº 11.101/2005. Planalto. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso: 5/6/2020.

5 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=156. Acesso em: 5 jun. 2020.

6 BRASIL. Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/l9307.htm. Acesso em: 5 jun. 2020.

7 BRASIL. Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13140.htm. Acesso em: 5 jun. 2020.