Um patriota inesquecível e um amigo leal

9 de agosto de 2021

Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP Membro do Conselho Editorial

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Conheci Orpheu Salles antes da convocação da Constituinte pela Emenda nº 26/1986, do Presidente José Sarney. Um idealista, dedicado a ver o País à luz do Direito, foi um dos defensores, com seu amigo de mais longo tempo, Bernardo Cabral, de um Brasil amplamente democrático.

Ao fundar a Revista Justiça & Cidadania, realizou um sonho. A democracia tem seu alicerce no Direito e o Direito na “Justiça justa”. E a Revista foi ganhando uma dimensão nacional, sendo hoje o grande veículo para o Judiciário, Advocacia e Parquet, do que eu denominaria de “doutrina pragmática”. 

Tinha Orpheu sonhos de cavaleiros andantes descritos nas sagas medievais, em fazer um País melhor e, ainda em vida, pode ver em parte o reconhecimento desta luta na esplêndida aceitação que a Revista teve na área jurídica.

Hoje, seu filho completou seu sonho, tornando um magnífico veículo de atualização profissional para professores, magistrados, advogados, membros do Ministério Público, delegados e servidores públicos atuantes no segmento.

Um dos ideais porque lutou Orfeu foi o da harmonia e independência dos Poderes, sendo que a criação da Ordem de Dom Quixote e Sancho Pança para expoentes do pensamento jurídico apenas exteriorizou a luta por seus nobres ideais e o reconhecimento dos obstáculos que o cavaleiro da Mancha, no seus devaneios e desvarios, enfrentou, sempre acompanhado pelo bom senso de seu fiel e prático escudeiro.

Orpheu foi um patriota inesquecível e um amigo leal e prestativo que marcou sua geração e sua época.

Alegra-me, pois, seu amigo de longa data e que tem a certeza que se encontra junto do Pai, por ter sido um homem de virtudes, poder homenageá-lo em sua Revista, a que fui por ele guindado como Conselheiro, também há muito tempo.

Sempre desejou, como eu, que os poderes fossem harmônicos e independentes, cada um seguindo as atribuições que lhe pertencem. Ao Legislativo, que representa todo o povo, isto é, situação e oposição, com tais funções definidas nos artigos 44 a 69, com a participação em casos especiais do Tribunal de Contas, pelos artigos 70 a 75, visto que ligado está a este Poder e não ao Judiciário. 

Ao Executivo, as claras atribuições dos artigos 76 a 91. Aparece, em segundo lugar, no texto Supremo, pois sua representação não é da totalidade do povo, mas apenas da maioria (situação). Por fim, com função técnica e não como poder representativo do povo, mas da Lei, que não faz, mas que deve fazer ser respeitada, o Poder Judiciário, com o acompanhamento de instituições essenciais à administração da Justiça, que são o Ministério Público e a Advocacia (artigos 92 a 135).

Tendo o constituinte definido bem as atribuições de cada Poder, permitindo ao Poder Legislativo zelar por sua competência legislativa, sem permitir que o Judiciário ou o Executivo a invadam (art. 49 inciso XI) e retirando ao Poder Judiciário qualquer tentação de ser Legislativo, nem mesmo admitindo que nas ações diretas por inconstitucionalidade por omissão legislasse em lugar do Parlamento (art. 103 § 2º), o constituinte de 1988 assegurou na Carta a harmonia e independência dos Poderes (Art. 2º), com dois Poderes representativos do povo, em nome de quem exercem o poder, à luz do Art. 1°, e um Poder técnico assecuratório da Lei, que repito, não a faz, mas a faz respeitar.

A corrente consequencialista do pensamento constitucional, que não foi hospedada pela Lei Maior, tem, todavia, admitido que o Judiciário invada a competência de atribuições dos outros Poderes. Tal invasão, sobre gerar insegurança jurídica, tem sido um permanente foco de crise entre os poderes, com inequívoco prejuízo para a paz social e o desenvolvimento nacional.

Não se discute o valor individual e a idoneidade moral de cada um dos guardiões da Constituição. A verdade, todavia, é que a oposição eleita pelo povo, hoje prefere levar todo e qualquer assunto, em que não tem condições de fazer prosperar no Congresso, para a Suprema Corte, onde quase sempre encontra guarida, transformando a Casa da Justiça, na Casa da Oposição Política.

Tenho para mim que o melhor dos Supremos é pior que o pior dos Congressos quando se transforma num poder político, porque este representa o povo que o quis e o Supremo representa a Lei que não faz, pois quem a faz é quem o povo quer.

Na minha “senectude”, militando como solicitador e advogado nos tribunais, desde 1957, alegrava-me ver, até 2002, a Suprema Corte como legisladora negativa, com julgamentos exclusivamente jurídicos, com debates históricos e respeitosos entre seus integrantes, principalmente na “Era Moreira Alves”, quando se dizia que o Supremo era “O Guardião da Constituição” e o ministro “O Guardião do Supremo”. Hoje, os debates assemelham-se aqueles, muitas vezes ideológicos, candentes e com agressões verbais que se processam no Poder Legislativo, pois o Pretório Excelso tornou-se a última instância política dos políticos derrotados na arena em que deveriam debater suas teses, ou seja, o Parlamento.

Pela qualidade dos onze ministros da Suprema Corte, tenho –sou, apesar da idade, sempre otimista em relação ao futuro do meu País – a esperança que voltem, um dia, a ser como eram os seus esplêndidos antecessores que colocaram a Suprema Corte como a instituição mais respeitada do País e que me levou, sempre que sustentava perante os membros do Sodalício, desde os inícios da década de 1960, a sentir profunda emoção de falar perante os onze maiores representantes do Direito no País.

Orpheu, como eu, sempre desejamos a harmonia e independência dos Poderes e ele,  junto ao pai, e eu, nestes anos trôpegos da velhice, temos ainda a fundada esperança que o Brasil voltará a ter o cumprimento integral de tão relevante princípio constitucional.