
Desembargador Ricardo Couto de Castro, presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Foto: Brunno Dantas/TJRJ
Presidente do TJRJ, desembargador Ricardo Couto de Castro, faz balanço dos avanços e desafios iniciais de uma gestão marcada por inovação e compromisso social
À frente do segundo maior tribunal do país, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, desembargador Ricardo Couto de Castro, conduz uma gestão marcada por inovação tecnológica, valorização humana e compromisso com a cidadania. Nesta entrevista, ele compartilha os principais avanços institucionais desde que assumiu o cargo em fevereiro, destacando a expansão do sistema de inteligência artificial ASSIS, o fortalecimento da mediação como forma de pacificação social e o combate rigoroso à litigância predatória.
Com mais de três décadas de magistratura, o presidente revela, em tom direto e reflexivo, que sua maior ambição é deixar como legado um Judiciário moderno, acessível e profundamente conectado às reais necessidades da população fluminense. “A toga não nos torna superiores: ela nos torna responsáveis”, resume ele, em uma das falas mais emblemáticas da conversa.
Revista Justiça & Cidadania – Vamos começar falando sobre sua gestão na presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Quais foram as principais diretrizes adotadas quando assumiu o cargo?
Desembargador Ricardo Couto de Castro –Quando assumi a Presidência do TJRJ, em fevereiro deste ano, minha prioridade foi clara: transformar o Judiciário em uma instituição mais aberta, democrática e acessível à população. A sociedade pode esperar de nós uma Justiça mais eficiente, mais próxima e que realmente funcione para quem mais precisa. Nossa gestão tem o compromisso de ouvir diferentes correntes de pensamento, acolher sugestões e seguir na busca constante pela excelência na prestação jurisdicional.
JC – Na visão do senhor, qual é a sua maior prioridade na gestão do TJRJ?
RCC – Sem dúvida, a maior prioridade é garantir que o Judiciário seja, de fato, de todos e para todos. Isso vai muito além de modernizar estruturas e processos – passa, principalmente, por humanizar nossos serviços, tornar a Justiça mais próxima do cidadão e fazer que ele se sinta acolhido, compreendido e representado.
JC – Até o momento, quais têm sido os principais desafios e as soluções encontradas?
RCC – Um dos grandes desafios tem sido equilibrar a modernização com a garantia de qualidade e segurança nos serviços prestados. A tecnologia, especialmente a inteligência artificial, traz avanços importantes, mas precisa ser implementada com muito cuidado para não deixar de lado o fator humano que é essencial no ato de julgar. Por isso, temos adotado uma postura responsável, como no desenvolvimento do ASSIS, que está sendo implantado por etapas, com avaliação constante dos resultados. Outro ponto crítico é o enfrentamento das demandas repetitivas e da litigância predatória. Criamos notas técnicas e protocolos específicos para coibir abusos sem jamais restringir o legítimo direito de acesso à Justiça. A ideia é proteger o sistema, mas sem fechar as portas para quem realmente precisa dele.
JC – No contexto socioeconômico do Rio de Janeiro, quais têm sido as principais demandas do Judiciário estadual nos últimos anos?
RCC – O contexto socioeconômico do Rio de Janeiro tem gerado demandas muito específicas que exigem do Judiciário resposta mais sensível e adaptada à realidade da população. Temos visto aumento expressivo na judicialização de políticas públicas – especialmente nas áreas de saúde, educação e assistência social –, porque, muitas vezes, é no Judiciário que o cidadão encontra a garantia de seus direitos fundamentais. Diante desse cenário, reorganizamos as câmaras para especializá-las em Direito Público e Direito Privado, o que permite tratamento mais técnico e eficaz das questões que envolvem a Administração Pública. Ao mesmo tempo, estamos apostando cada vez mais nos métodos alternativos de resolução de conflitos, porque entendemos que nem toda demanda precisa virar um processo judicial tradicional. E, claro, seguimos atentos ao avanço da litigância predatória – esse ajuizamento em massa de ações repetitivas, que sobrecarrega o sistema sem, de fato, atender quem precisa. Criamos mecanismos para identificar e conter esses abusos, preservando a Justiça para os que realmente precisam dela.
JC – Como o senhor avalia a atual situação orçamentária e administrativa do Tribunal? Houve avanços em relação à valorização de servidores e magistrados?
RCC – A situação orçamentária do TJRJ para 2025 mostra com clareza o nosso compromisso com duas frentes fundamentais: valorizar as pessoas e modernizar a instituição. Nossa proposta, aprovada pelo Órgão Especial e incluída na Lei Orçamentária Anual, é fruto de uma gestão fiscal responsável, com foco em investimentos estratégicos, em tecnologia e, principalmente, em gente. E valorização não é só salário, embora isso também seja importante. Estamos investindo forte em capacitação, como o mestrado profissional em Direito para magistrados e programas de formação continuada. Queremos um Judiciário tecnicamente excelente, com ambiente de trabalho moderno, atualizado e intelectualmente desafiador.
JC – Como o senhor lida com a pressão e a responsabilidade de presidir um dos maiores tribunais do país?
RCC – Presidir o segundo maior tribunal de Justiça do país é uma responsabilidade enorme, que exige não só preparo técnico, mas também equilíbrio emocional e liderança serena. Com mais de 32 anos de magistratura, posso dizer que a experiência faz toda a diferença. Minha trajetória, que começou como juiz substituto e passou por várias áreas do Direito e funções administrativas, me deu a bagagem necessária para lidar com os desafios que o cargo impõe. A pressão é constante, claro, mas ela se torna mais leve quando há diálogo aberto com todos os segmentos do Tribunal – e é assim que tenho buscado conduzir a gestão.
JC – Quais são os projetos futuros que o senhor ainda pretende implementar até o final de sua gestão?
RCC – Até o fim da nossa gestão, em 2026, queremos entregar um TJRJ completamente transformado do ponto de vista digital – e, mais do que isso, uma Justiça mais próxima e eficiente. A expansão do ASSIS, nosso sistema de inteligência artificial, para além dos juizados especiais, é uma das prioridades. A ideia é levar essa tecnologia para áreas como Direito Empresarial, Fazendário e Criminal, sempre com o controle humano garantido nas decisões. Também estamos avançando na modernização total do parque tecnológico e na estabilização de todos os sistemas, para que magistrados e servidores tenham, de fato, ferramentas modernas e funcionais no dia a dia. Na governança, o foco é concluir a implementação de políticas estruturadas em todo o tribunal, criando um modelo de gestão sólido, que possa servir de referência. Seguimos apostando firme na mediação e na conciliação, porque acreditamos que pacificar é tão importante quanto julgar. E, acima de tudo, queremos deixar como legado um Judiciário que converse com a sociedade – em que a tecnologia sirva para humanizar, e não para afastar. Um TJRJ que seja, de fato, espaço de proteção de direitos e promoção da dignidade humana.
JC – Falando agora sobre temas do Judiciário de modo geral, como o TJRJ tem promovido a prática da mediação e de outros métodos alternativos de resolução de conflitos, que ganham cada vez mais espaço?
RCC – O TJRJ tem apostado fortemente na mediação, não apenas como uma forma de aliviar a sobrecarga do Judiciário, mas como verdadeiro instrumento de pacificação social. Por meio do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec), estamos ampliando e qualificando os métodos consensuais de resolução de conflitos com uma visão clara: mais do que resolver processos, queremos reconstruir relações e promover soluções duradouras. A mediação traz ganhos inegáveis – é mais rápida, mais econômica e, sobretudo, mais legítima, porque é construída pelas próprias partes. Não há recurso, não há vencidos: há acordos. Nossa atuação é baseada em três frentes: mediação processual, para ações já em curso; pré-processual, para conflitos que ainda não viraram processos; e capacitação contínua dos mediadores. O procedimento é guiado por princípios como imparcialidade, isonomia, informalidade, oralidade e autonomia das partes – tudo pensado para criar um ambiente que favoreça o diálogo. Nosso objetivo é claro: trocar a cultura do litígio pela cultura do diálogo. Sabemos que muitos conflitos têm raízes emocionais profundas, e é justamente nesse ponto que os métodos consensuais mostram seu maior valor, ao permitir que as partes encontrem juntas soluções que realmente façam sentido para suas vidas.
JC – Falar em gestão, nos dias de hoje, implica também abordar a questão da digitalização do Judiciário, que vem avançando muito nos últimos anos, e também das novas ferramentas, como a inteligência artificial. Quais investimentos tecnológicos o TJRJ tem feito nessa seara e quais os impactos esperados?
RCC – A digitalização do Judiciário fluminense talvez seja uma das maiores transformações da nossa história institucional – e estamos vivendo isso com muito senso de responsabilidade. A inteligência artificial não veio para substituir o juiz, mas para apoiá-lo de forma efetiva. É com esse espírito que desenvolvemos o ASSIS, ferramenta pioneira no sistema de Justiça brasileiro, que auxilia magistrados na elaboração de minutas de sentenças e decisões. Hoje, o ASSIS já está em funcionamento nos juizados especiais cíveis e fazendários e tem se mostrado realmente revolucionário ao aprender o estilo de redação e o perfil decisório de cada magistrado. Os resultados que esperamos são transformadores: aumento expressivo da produtividade, decisões mais ágeis, menos erros operacionais e, o mais importante, mais tempo para que o julgador se concentre naquilo que é essencial: a análise do direito e a busca da justiça no caso concreto. Tudo isso, claro, sempre guiado por valores que consideramos inegociáveis: ética, segurança, transparência e responsabilidade no uso da tecnologia.
JC – O combate à litigância predatória e à judicialização excessiva de políticas públicas tem sido muito debatido e é um ponto focal do CNJ. Como o TJRJ tem atuado nesse sentido?
RCC – O TJRJ tem se posicionado na linha de frente do combate à litigância predatória, adotando uma série de medidas concretas e articuladas para enfrentar esse fenômeno que ameaça a efetividade da Justiça. Publicamos diversas notas técnicas com critérios objetivos para identificar e coibir o ajuizamento em massa de ações com pedidos e fundamentos repetitivos, muitas vezes utilizados de forma abusiva. Nossa estratégia é multifacetada: criamos mecanismos de consolidação de dados, elencamos condutas que indicam possível abuso, desenvolvemos boas práticas de gestão processual e propomos providências institucionais e interinstitucionais para tornar esse combate ainda mais eficaz. Já no que diz respeito à judicialização excessiva de políticas públicas, nosso olhar é técnico e equilibrado. O foco é sempre o mesmo: garantir direitos, mas com responsabilidade e visão sistêmica, contribuindo para o aperfeiçoamento das políticas públicas sem prejudicar o todo.
JC – Quais são as ações do TJRJ para a proteção dos direitos das mulheres e quais são as metas da gestão interna para a promoção da igualdade de gênero?
RCC –O TJRJ tem construído uma agenda sólida de proteção aos direitos das mulheres e promoção da igualdade de gênero, porque entendemos que essa é uma pauta de direitos humanos e de justiça social. Nossa atuação segue as diretrizes do CNJ, especialmente a Resolução no 492/2023, que determina a adoção da perspectiva de gênero nos julgamentos. Nesse sentido, implementamos o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, ferramenta que orienta os magistrados na eliminação de estereótipos e preconceitos que ainda resistem no campo jurídico. Também mantemos o Observatório Judicial de Violência contra a Mulher e outras estruturas dedicadas ao enfrentamento das desigualdades e à construção de políticas efetivas de proteção. Essas iniciativas se traduzem em ações concretas de capacitação, conscientização e proposição de medidas que promovam igualdade real no acesso à Justiça. Internamente, temos trabalhado com ações afirmativas para que nossos quadros reflitam a diversidade da sociedade que atendemos. A presença de mulheres em posições de liderança é fundamental não só para a representatividade, mas para enriquecer a tomada de decisões com olhares mais sensíveis e plurais.
JC – Como o senhor equilibra o rigor técnico das decisões com a sensibilidade necessária diante dos dramas humanos que chegam ao Judiciário?
RCC – Quando fui promovido a desembargador, em 2008, o Judiciário era outro – ainda mergulhado em pilhas de papel, com processos físicos que tomavam salas inteiras. A digitalização transformou tudo: não só a forma de trabalhar, mas a dinâmica da Justiça em si. Saímos de um modelo analógico para um ambiente eletrônico que exige agilidade, domínio da tecnologia e uma nova mentalidade. Além disso, o papel do desembargador também mudou. Hoje, não basta julgar casos individuais: somos chamados a pensar estrategicamente, a avaliar o impacto social de nossas decisões, a participar ativamente da gestão institucional e a contribuir para o aperfeiçoamento do sistema como um todo. A especialização das câmaras reflete isso: deixamos de ser julgadores generalistas para atuar com foco e profundidade em áreas específicas do Direito. E há ainda a revolução trazida pelos precedentes obrigatórios. O sistema exige agora decisões mais coerentes, previsíveis e alinhadas com a jurisprudência, o que amplia nossa responsabilidade. Cada voto precisa ser pensado não só para o caso concreto, mas como uma referência para futuras decisões – é uma Justiça mais conectada, mais consciente e, acima de tudo, mais comprometida com a segurança jurídica.
JC – O que o senhor aprendeu na vida e na magistratura que gostaria de deixar como conselho às novas gerações de juízes e juízas?
RCC – Depois de mais de 30 anos na magistratura, se eu pudesse deixar alguns conselhos às novas gerações, destacaria princípios que considero essenciais para exercer a jurisdição com dignidade e eficácia. Primeiro: nunca se esqueçam de que vocês são servidores da Justiça, não seus donos. A toga não é símbolo de superioridade, mas de responsabilidade — a responsabilidade de proteger direitos e promover a paz social. Humildade é indispensável: reconheçam seus limites, estejam abertos ao aprendizado constante. Segundo: equilibrem sempre o rigor técnico com a sensibilidade humana. O Direito não é uma equação fria – por trás de cada processo há uma vida, uma história. Estudem, se atualizem, mas jamais percam de vista que a finalidade maior do Direito é servir à dignidade humana. Terceiro: protejam sua independência com zelo, mas exerçam-na com responsabilidade. A independência do juiz não é um privilégio pessoal – é uma garantia institucional para que a Justiça não se curve a pressões políticas, econômicas ou midiáticas. Quarto: abracem a tecnologia, mas sem abdicar da essência humana da magistratura. A inteligência artificial pode – e deve – ser uma aliada, mas jamais substituirá o julgamento humano, a intuição moral e a empatia. Por fim, invistam em uma formação que vá além do Direito. Leiam literatura, estudem história, entendam de economia, sociologia, psicologia. Um juiz culto enxerga mais longe, compreende melhor a realidade e decide com mais justiça.
JC – Para concluir, qual legado o senhor espera deixar ao final da presidência
do Tribunal?
RCC – Ao final desta gestão espero deixar um TJRJ verdadeiramente moderno, eficiente e humanizado, ou seja, um tribunal em que a tecnologia de ponta caminhe lado a lado com a sensibilidade social, em que o rigor técnico encontre, na linguagem acessível, um instrumento de inclusão e em que a eficiência administrativa se equilibra com a transparência e o diálogo com a sociedade. Um Judiciário não apenas preparado para os desafios do futuro, mas comprometido, desde já, em ser um espaço de escuta, acolhimento e proteção real dos direitos de cada cidadão fluminense. Algo que não se mede apenas por números ou sistemas implementados, mas pela confiança que a população deposita em sua Justiça.