“Transparência, inclusão e defesa do Estado Democrático de Direito”

1 de março de 2025

Da Redação

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Eleita para a Presidência do STM, a ministra Maria Elizabeth Rocha destaca o uso da inteligência artificial generativa, a inclusão da Justiça Militar no CNJ e a adoção de políticas de gestão inclusiva como pilares da gestão

Ao longo de mais de dois séculos de existência, o Superior Tribunal Militar (STM) consolidou-
 se como uma das instituições mais sólidas do Judiciário brasileiro. No entanto, por 116 anos, a Corte trabalhou sem nenhuma magistrada na composição. Foi somente em 2007 que essa realidade começou a mudar, com a nomeação da ministra Maria Elizabeth Rocha, a primeira mulher a integrar o Tribunal. Agora, ela assume a Presidência da instituição para o biênio 2025-2027 com compromissos claros: fortalecer a transparência, promover a inclusão e garantir a defesa do Estado Democrático de Direito. 

Em entrevista exclusiva, a ministra detalha os pilares de sua gestão, discute os desafios da Justiça Militar – incluindo a necessidade de desmistificar a ideia de um tribunal corporativista – e apresenta projetos inovadores, como a aplicação da inteligência artificial na preservação do acervo histórico da Corte. Além disso, aborda o impacto da transformação digital no Judiciário e destaca a importância da ampliação da participação feminina nos espaços de poder, especialmente no meio militar.

Com uma trajetória marcada pela defesa dos direitos fundamentais, a ministra Maria Elizabeth Rocha reforça ainda que a gestão será pautada pela modernização da Justiça Militar e pelo fortalecimento da imagem da instituição perante a sociedade. Confira:

Revista Justiça & Cidadania – Entre os projetos para a gestão, quais são suas prioridades?

Ministra Maria Elizabeth Rocha – Minha gestão se estruturará sobre três pilares que considero fundamentais para uma boa governança: transparência, inclusão e defesa do Estado democrático de direito. Accountability é hoje sinônimo de boas práticas de governança e se traduz na prestação de contas à sociedade dos atos praticados, responsabilidade na gestão da coisa pública e fiscalização. Evidentemente, tais preceitos já são adotados pela atual Presidência e eu pretendo preservá-
los e, se possível, adensá-los ainda mais.

Quanto à inclusão e à diversidade, para mim, são palavras de ordem. Como feminista e mulher do meu tempo, é inaceitável a estigmatização entre seres humanos e o confinamento em lugares preestabelecidos por força de critérios identitários. Buscarei, ao longo do meu mandato, conjugar as dimensões da cidadania às reivindicações fidedignas e combater arquétipos opressivos. Para isso, vou instituir uma Assessoria de Gênero, Raça e Minorias com o fim de gestar opções alternativas, contrárias e críticas, na linha do que recomenda o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Por fim, zelar pela legitimidade da República é dever cívico de todos nós, cidadãos, mais ainda, daqueles que vestem a toga e dizem o direito. Estou convicta de que a democracia e a Constituição são projetos inacabados e intergeracionais. Por isso os atores civis e políticos têm por obrigação preservá-las e cultivá-las.

Outra questão que me preocupa é a correta utilização da Inteligência Artificial, principalmente pelo fato de o Brasil não possuir regramento legal sobre a matéria. Há recomendações da Unesco sobre o disciplinamento e tramitam no Congresso Nacional os PLs 21/2020 e 2338/2023 que regulam o tema. Por certo, a IA projeta o futuro da Justiça como instrumento de celeridade e eficiência, porém, em matéria criminal, é preciso cautela, pois está-se a lidar com a liberdade, para mim, um bem jurídico maior do que a própria vida. Em se tratando da Corte Militar Federal, eminentemente penal, a atenção há de ser, portanto, redobrada.

JC – Quais são os principais desafios que a Justiça Militar enfrenta atualmente e como será sua atuação neste sentido?

MER – Extirpar o estigma de justiça corporativa é o primeiro deles. A Magna Corte Castrense foi instituída em 1o de abril de 1808, por alvará com força de lei, assinado pelo Príncipe-Regente João, com a denominação de Conselho Supremo Militar e de Justiça e constitucionalizada na Carta de 1946, uma Carta legítima, fruto de uma constituinte soberanamente eleita. É a Justiça mais antiga do Brasil. Contudo, apesar de ela ter completado mais de dois séculos de existência, profundo é o desconhecimento, por parte da sociedade brasileira e dos próprios operadores do direito, sobre sua competência e atuação. É comum atribuir-lhe a pecha de tribunal de exceção em razão da ditadura militar instaurada no Brasil em 1964. Nada mais equivocado!

Atesta a historiografia pátria a imparcialidade e a isenção em decisões memoráveis, tal qual a prolatada pelo então Supremo Tribunal Militar (STM), quando reformou sentença condenatória proferida contra João Mangabeira pelo Tribunal de Segurança Nacional do Estado Novo, concedendo-lhe a ordem de habeas corpus HC no 8.417, de 21 de junho de 1937 – ou ainda, quando deferiu medida liminar em sede deste mesmo writ; primeira Corte a fazê-lo, servindo tal decisão de precedente para o Supremo Tribunal Federal (STF) no HC no 41.296, de 14 de novembro de 1964.

Outros exemplos poderiam ser mencionados para ilustrar a trajetória dignificante da Justiça Castrense Federal. Eu rememoro o caso da incomunicabilidade dos presos, proibidos de manter contato com os advogados sob a égide da Lei de Segurança Nacional e que teve, na histórica decisão da Representação no 985, correta e precursora solução ao observar os princípios do direito de defesa. Do mesmo modo, decidiu o STM, na década de 1970, que a greve, mesmo quando declarada ilegal pelo Poder Executivo, se perseguisse objetivos de melhoria salarial, não se traduzia, segundo o R.C. no 5385-6, em crime contra a segurança nacional. Ainda, o R.C. no 38.628, no qual assentou a Corte que a mera ofensa às autoridades constituídas, embora expressa em linguagem censurável, não configurava crime contra a segurança do Estado, resguardando, dessa forma, a liberdade de imprensa e de expressão. Quando a lei de anistia – a Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, no parágrafo 2o, do artigo 1o – excetuava os agentes que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, ou seja, praticamente todos os presos políticos, foi o STM que, em interpretação extensiva da norma, ampliou a concessão do perdão aos réus condenados. As decisões aqui referidas, entre outras que poderiam ser elencadas, conferiram incensuráveis desates e exata dimensão jurídica sobre temas que constantemente se prestavam a interpretações dúbias. Indiscutível estar-se diante de jurisprudência dignificante que, ao sobrepor-se às pressões políticas do momento, deixou significativo legado às gerações futuras e ao democratismo judicial, mas, lamentavelmente, poucos a conhecem. E mais, a primeira vez que os defensores públicos federais atuaram no Judiciário Pátrio, fizeram no foro do STM. E, para que não restem dúvidas sobre o que digo, eu convido os leitores a visitarem a página virtual da revista Veja, de abril de 1977, na qual está estampada, como matéria de capa, a foto de todos os ministros do STM da época, intitulada: “A Justiça Militar e os direitos humanos: a lei respeitada”. E atentem: a revista foi publicada no mês de abril de 1977, quando foi editado o famigerado Pacote de Abril, um conjunto de leis outorgadas pelo presidente Ernesto Geisel, duríssimas, que, entre outras medidas, fechou temporariamente o Congresso Nacional. E foi por essa razão, e não outra, que os grandes e corajosos advogados que lá atuaram em defesa dos presos políticos, dos torturados, sempre teceram considerações elogiosas à Corte Militar Federal. Advogados que subiram na tribuna criminal e defenderam a liberdade dos brasileiros em um dos períodos mais árduos e obscuros da nossa História, como Heleno Cláudio Fragoso, Técio Lins e Silva, Sobral Pinto, entre outros.

É isso o que eu quero mostrar à sociedade civil: que a jurisdição penal castrense é vital para assegurar o direito e a autoridade militar na vigilância e na subordinação às ordens no interior da caserna. Afinal, está-se a lidar com valores que demandam legislação própria e jurisdição especializada, tal qual a trabalhista e a eleitoral, cujo escopo é dar efetividade às determinações magnas e garantir a boa administração da Justiça.

Eu ressalto que as Forças Armadas são essenciais à execução da política de defesa nacional e destinam-se a proteger a Pátria, sob a autoridade suprema do presidente da República. Tal como legislado pelo Poder Constituinte Originário, elas não configuram organismo alheio à sociedade política; ao revés, fazem parte dela e foram criadas em razão dela. Certo é que a especificidade da legislação das Armas, as peculiaridades da carreira e todas as implicações que a mínima interferência impertinente pode acarretar à estrutura basilar do Exército, da Força Aérea e da Naval, em um país de dimensão continental como o Brasil, alvo de ameaças e atuações criminosas das mais diversas, por si só justificaria a existência desta justiça especializada. Mas não é só. É imperioso considerar as regras de comportamento que envolvem os integrantes da caserna, bem como as características sui generis da carreira. Inolvidável serem os militares agentes administrativos distintos daqueles outros que não se encontram sobre os auspícios dos regulamentos marciais, não podendo, seus deslizes, serem apreciados sob idêntico olhar do Estado-Juiz. Ao contrário das demais profissões, nenhuma outra tem por imposição constitucional o patriotismo e a fidelidade à Nação, a demandar, em situações extremas, o sacrifício da própria vida do soldado ou de outro ser humano. Nesse contexto, a atuação e a vivência bicentenária da Justiça Militar da União (JMU), cujo processo institucional amálgama a História do Brasil, projeta a afirmação do Estado como ethos e o permanente comprometimento com o democratismo estatal. 

JC – A transformação digital tem sido uma pauta crescente no Poder Judiciário. O STM já adota alguma medida que queira destacar neste sentido? Há algum outro projeto que pretende implementar?

MER – A JMU, por meio da sua Assessoria de Tecnologia da Informação e Transformação Digital, está desenvolvendo uma série de projetos entre os quais eu destaco: a efetivação de painéis de gestão para tomada de decisão para as áreas judicante e administrativa; a implementação do aplicativo mobile da Ouvidoria; a modernização do sistema de recursos humanos e contratações; a criação do “ChatJMU”, a adoção da solução de inteligência artificial para a jurisprudência e legislação; a instalação do trabalho colaborativo com as Justiças Militares estaduais para a execução do Banco de Sentenças; a adoção do projeto “DataLake”; e a efetivação da ferramenta de transcrição.

Mas a menina dos olhos da minha gestão será a preservação da história nacional por meio de seus arquivos. Como ressaltei, a Justiça Militar Federal, sendo a primeira justiça do país, possui acervo processual histórico preciosíssimo, cujo processo de digitalização eu iniciei na minha primeira Presidência e que, agora, se encontra concluído. Foram duas iniciativas fundamentais conduzidas pela Diretoria de Documentação: a digitalização e a restauração do acervo. O objetivo era tornar a documentação acessível ao público.

Estou a falar de cerca de 145 mil processos judiciais, que abrangem momentos cruciais da historiografia nacional que vai do Período Joanino — Primeiro e Segundo Reinado, adentra na República Velha, na Revolução de 30, no tenentismo, na Intentona Comunista de 1935, na ditadura do Estado Novo de 1937, na 2a Guerra Mundial, no Golpe de 1964, entre outros períodos e acontecimentos que poderia destacar.

A próxima etapa desta transformação será impulsionada pela Inteligência Artificial Generativa (IAG), que oferece ferramentas para a transcrição automatizada e precisa da documentação, incluindo manuscritos e textos em mau estado de conservação. O propósito é preservar e democratizar o acesso ao conhecimento, e a IAG é ferramenta promissora para acelerar o processo. A adoção possibilitará a forma de manejo desse material, facilitando a pesquisa e o entendimento. Imagine-se um sistema que consiga ler e compreender automaticamente documentos antigos, sejam eles manuscritos, datilografados ou impressos, com uma precisão muito maior que os métodos tradicionais. A IAG oferece tal capacidade, transcrevendo com elevada acuidade, por meio de modelos treinados, os diferentes estilos de escrita. Ademais, poder-se-á extrair dados relevantes como nomes, datas e eventos e realizar análises semânticas para identificar temas e conexões documentais.

Diversas universidades estrangeiras estão na vanguarda de projetos semelhantes a exemplo da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, que criou um sistema que explora mapas antigos e extrai informações sobre o passado; a França, que realiza experiências de uso de IAG para decifrar textos criptografados e em línguas antigas e a Universidade de Groningen, na Holanda, que aplica a IAG para analisar manuscritos como os do Mar Morto, buscando informações sobre quem os escreveu e quando foram produzidos.

Por outras palavras, o que se pretende é o desenvolvimento de um projeto inovador de análise de documentos históricos utilizando-se a IAG, que combinará a transcrição automatizada, a extração de informações, a análise semântica e a identificação de padrões dos documentos a ela submetidos. Trata-se de um projeto inspirador, que se espelha em iniciativas semelhantes de universidades estrangeiras com vistas a superar as limitações dos sistemas digitais tradicionais.

E a nossa parceira será a prestigiosa Universidade de Brasília (UnB). A ideia é formar uma equipe multidisciplinar de historiadores, juristas, linguistas, cientistas da computação, para desenvolver sistemas de inteligência artificial que reconheçam tipos diversos de escrita (manuscrita, impressa, datilografada) e identifiquem automaticamente dados importantes tais como nomes, datas, lugares e acontecimentos acima mencionados. Agregue-se a possibilidade de a IAG ser capaz de analisar o significado desses dados e encontrar padrões e relações entre eles, o que tornará a investigação mais rápida e eficiente.

Para tanto, pretendemos criar uma plataforma on-line de pesquisa com um sistema de busca inteligente que autorize o encontro dos documentos de vários formatos e transformação, algo vivo e acessível. A reunião dos especialistas nomeados será coordenada pela Professora Fernanda Laje, doutora no tema e professora da UnB. Estou segura de que a construção da IAG tornará o acervo judicial pretérito e presente da JMU, que aliás já está disponível ao público, mais democrático, transparente, informativo e acessível. E isso significa preservar a memória histórica nacional para as futuras gerações!

JC – A senhora estuda alguma iniciativa para fortalecer o diálogo do Tribunal com a sociedade civil e outros órgãos do Judiciário?

MER – Estudo várias. Como ressaltei, é meu propósito descortinar a Justiça Militar Federal à sociedade e aos operadores do Direito que a desconhecem ou a conhecem mal. Para isso, realizarei parcerias com as justiças estaduais militares, nossas coirmãs, farei convênios com as universidades brasileiras e internacionais, bem como os tribunais de justiça militar estrangeiros, a exemplo do que será firmado no dia 15 de março deste ano com a Universidade de Sevilha e com o Tribunal Militar da Espanha, muito semelhante ao nosso. Chamarei sindicatos, coletivos de mulheres e de minorias para dialogarmos, como o movimento negro e o LGBTQIA+, e estarei sempre aberta à imprensa, relevantíssima para a transparência e a difusão da informação correta.

Outra pauta que é muito cara não só a mim, mas à toda a Corte, é a inclusão da JMU no CNJ por meio da aprovação de Emenda Constitucional ora em tramitação no Parlamento. Isso implicará abrir as portas da instituição a todo o Judiciário Pátrio e a sociedade como um todo. Implicará incluí-la nas discussões sobre os novos rumos da Judicatura que refletem os novos rumos do milênio e, principalmente, torná-la mais assertiva e transparente para a população e o jurisdicionado.

JC – A senhora é a primeira mulher a presidir a Corte e a primeira magistrada a ser nomeada para integrar o Tribunal, em 2007. Como enxerga a participação feminina nos espaços de poder, principalmente militar, sendo hoje não só a presidente da Corte, mas a única mulher que integrou a alta cúpula da Justiça Militar em mais de 116 anos?

MER – A falta de participação feminina no Poder Judiciário em todas as instâncias e, nomeadamente, nos tribunais superiores é antidemocrática e, diria mesmo, inconstitucional, pois desrespeita os postulados magnos da isonomia entre homens e mulheres. Compromete todos os valores principiológicos do Estado de Direito e os princípios igualitários da nossa Carta Política. Eu nunca escondi o meu empenho pela maior participação do gênero feminino nas instituições públicas e nos seus postos de comando.

Jamais seremos soberanamente democráticos enquanto as autonomias privadas se submeterem a crivos hierárquicos que, sob tal pretexto, conduzam a privilégios e restrições. Quando se fala em discriminação contra o gênero feminino, se fala em uma desigualação que não é natural, e sim proveniente de um construto social. Assim, para que grupos propositalmente isolados possam integrar plenamente a comunidade política é fundamental a “estatalidade” ditar regras e medidas de inclusão. Até porque a isonomia apresenta-se como um viés da não dominação ou da não submissão, implicando visão crítica sobre a condição humana. Ela sobrepaira as regras formais para ascender à realidade. Em um contexto de legitimidade, a concretização da igualdade e da fraternidade não pode ser considerada válida se alija e menoscaba a participação daqueles que se encontram em situação concreta de vulnerabilidade díspar, como é o caso das mulheres, dos afrodescendentes, dos indígenas, dos hipossuficientes, da população LGBTQIA+, entre outros segmentos. Nessa perspectiva, mulheres negras, mulheres pobres, mulheres vitimizadas pela violência de gênero, merecem corte analítico distinto, na medida em que suas vivências se sobrepõem e se intersectam às identidades sociais e aos sistemas de opressão e dominação diferenciados. Dito de outro modo, para se entender como a injustiça social sistêmica ocorre em uma base multidimensional, criando múltiplas formas de sufocamento, é imperioso considerar os critérios de interação identificadores das estruturas de sujeição em contextos que nada têm de neutro ou natural, ainda que cotidianos.

No tocante às Corte castrenses, é fundamental mais mulheres, tanto nas Justiças Militares estaduais quanto na federal. A última, que eu integro, em se tratando da primeira instância, o concurso público de provas e títulos possibilita o acesso meritório, pelo que a presença feminina é um pouco maior. Já no STM, a Corte Superior, cuja indicação se dá nos mesmos moldes do STF, o cenário é bastante ruim. Fui nomeada quando o tribunal completou 200 anos e veja, faz 18 anos que tomei posse. Lamentavelmente, até o momento, nenhuma outra magistrada ocupa uma cadeira. Sabido serem dez os assentos destinados aos ministros militares – generais do último posto e patente do oficialato – e só recentemente as mulheres passaram a ter reais possibilidades de ascensão ao generalato full, o tempo estimável para as promoções femininas se dará em 20 ou 30 anos. Sem embargo, cinco vagas são destinadas aos civis, cadeiras que, em tese, possibilitariam às mulheres integrarem a Corte em prazo mais curto. Ocorre que, nessa hipótese, é preciso que o presidente da República tenha sensibilidade para nomeá-las e, não só para o STM, mas para todos os tribunais superiores e tribunais federais de segunda instância.

A triste realidade é que quando o escrutínio é político, o acesso feminino é limitado. Para agravar, os homens têm muito mais facilidades e oportunidades de transitarem nos espaços de poder e fazerem interlocuções do que as mulheres. Sabemos que, além dos requisitos constitucionais e de um bom currículo, faz-se necessária uma articulação de bastidores. Relembro as listas sêxtuplas e triplas, as sabatinas na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e, posteriormente, a aprovação plenária senatorial, para ultimar a nomeação. Por consequência, é fundamental o diálogo político com os três Poderes da República e a OAB Federal. E, nesse particular, os homens possuem mais tempo, expertise e disponibilidade. Até porque, nós mulheres, temos filhos, família, casa para cuidar, nossos misteres são múltiplos e diversos e transcendem, em muito, os laborais.

JC – A senhora é referência para muitas mulheres no direito. Pretende implementar ações com foco na promoção da igualdade de gênero na Justiça Militar?

MER – Sem sombra de dúvidas! Criarei uma Assessoria de Gênero, Raça e Minorias junto à presidência do STM para a adoção de políticas e medidas de gestão inclusivas e pró-gênero que são, inclusive, objeto de Resoluções do CNJ e de observância obrigatória pelos tribunais pátrios.

Ao meu lado contarei com magistrados e magistradas maravilhosos, engajados e progressistas para me auxiliarem e darem-me suporte nesta relevante missão: a desembargadora Tânia Regina Silva Reckziegel, do TRT da 4a Região, que coordenará nossas interlocuções com o CNJ na qualidade de ex-conselheira e ouvidora nacional do órgão, tendo sido ela a primeira ouvidora nacional da mulher do CNJ e a atual presidente do Colégio de Ouvidorias Judiciais das Mulheres. A juíza de Minas Gerais Bárbara Lívio, mestre em direitos humanos e interculturalidade pela Universidade Pablo de Olavide na Espanha e doutoranda na Universidade Complutense de Madri na mesma temática. Ela, inclusive, foi a presidente do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar (Fonavid) e cuidará da Assessoria Internacional. 

A Amini Hadad, juíza em Mato Grosso, que estará à frente da Assessoria de Gênero Raça e Minorias. Uma pós-doutora em ações coletivas e direitos sociais em Salamanca, professora da Federal do Mato Grosso e coordenadora do Núcleo de Estudos Científicos sobre Vulnerabilidades da universidade e que já atuou no CNJ como juíza auxiliar na Presidência da ministra Rosa Weber. É ela a responsável pela elaboração do projeto pró-equidade para a JMU, com vistas à implementação de uma cultura organizacional mais justa e inclusiva, que reflita o compromisso do Estado Brasileiro insculpido na Constituição Federal e nos tratados e nas convenções internacionais de que o país é signatário. O planejamento proposto será iniciarmos com um diagnóstico situacional, formularmos diretrizes e protocolos, avançarmos na capacitação e na sensibilização dos agentes públicos, para ao fim, monitorarmos e avaliarmos a participação colaborativa. Sob guarda-chuva, pretendo dialogar com as Forças Armadas, já que os militares federais se encontram sob a nossa jurisdição, com o fito de promover o letramento e a conscientização, fundamentais para a prevenção de violências e agressões.

Mas não serão apenas mulheres que atuarão em prol dos direitos humanos. Meu juiz auxiliar Flávio Freitas, jurista de primeira linha, é professor universitário e formador da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), titular do 3o Juizado especial da Fazenda Pública no Amazonas, e já exerceu as funções de juiz auxiliar da Presidência do Tribunal Regional Eleitoral, da Corregedoria-Geral de Justiça e da Presidência do Tribunal de Justiça, para além de ter sido coordenador-geral da Escola Superior da Magistratura daquele Estado.

Ao lado desses jovens e capacitados magistrados, conto com os excelentes juízes federais da minha jurisdição especializada e com a minha competente assessoria jurídica e institucional que me acompanha ao longo dos meus 18 anos no tribunal.

JC – Em tempos de polarização política, são muitas as críticas à atuação da Justiça Militar. Qual será a estratégia do STM para lidar com essas questões?

MER – A transparência e a verdade. Essa é a melhor tática de convencimento e esclarecimento!

JC – A sociedade muitas vezes desconhece o papel e a importância da Justiça Militar, o que leva a preconceitos ou desinformação. Como enfrentar essa crítica, melhorar a transparência e se aproximar do cidadão?

MER – Acredito que a comunicação direta com a sociedade e a por meio da imprensa, aliada às medidas de gestão que privilegiem os postulados democráticos, em paralelo ao reconhecimento de eventuais erros e a divulgação dos acertos e das boas práticas, projetarão imagem positiva e justa da Justiça Castrense.

JC – A Justiça Militar tem características muito específicas. Como a senhora vê a relação do STM com outros ramos do Judiciário e com o Poder Legislativo e o Executivo?

MER – A interlocução da JMU com os Tribunais Superiores e os de segunda instância, bem assim com os demais poderes do Estado é respeitosa e aberta. O presidente que se despede do cargo, o ministro Francisco Joseli Parente, é um diplomata, que sabe dialogar com cortesia e firmeza. Terei a sorte de tê-lo ao meu lado como vice, em razão das especificidades do nosso Regimento Interno. Então, a despeito do tradicionalismo da Corte Militar e de suas especificidades, as relações institucionais são distensionadas e respeitosas, independentemente de ideologias e partidos políticos.

JC – A Justiça Militar tem regras e protocolos rígidos nas operações, o que às vezes é questionado por instituições de direitos humanos. Como equilibrar essa atuação?

MER – A pergunta tem a ver com as Operações de Garantia da Lei e da Ordem, comumente conhecidas como GLO, desempenhadas pelas Forças Armadas e julgadas pela JMU, cuja previsão está contida no artigo. 142 da CF e regulamentada nas Leis Complementares no 97/1999 e no 17/2004, e, também, nos Decretos no 3.897/2001 e no 10.341/2020. Está-se a falar, ao fim e ao cabo, sobre a atuação das Forças Armadas Brasileiras na segurança pública e seus impactos na democracia. O questionamento, pelo que entendi, centra-se na razoabilidade de se aceitarem os chamados “danos colaterais” em favor de um Estado de segurança. E minha resposta é: absolutamente não!

Analisando-se friamente a situação, o Brasil necessita convocar suas Forças Armadas para suprir a aspiração de seus cidadãos de viverem em paz. Diante da impossibilidade de o corpo policial dos estados federados cumprir os seus objetivos por razões as mais diversas, as Forças Armadas entraram em cena. Adicione-se as atuações militares no Rio de Janeiro contra a criminalidade em forças de pacificações, assim como em inúmeras operações desencadeadas, a partir da vigência da Constituição de 1988, a exemplo dos grandes eventos internacionais realizados no país como a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (CNUDS) no ano de 2012, a Rio+ 20, a Jornada Mundial da Juventude em 2013, que contou com a participação do Papa Francisco, a Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio em 2016, eventos que demonstraram serem às elas a última opção disponível no trato das questões internas. Relembro, ainda, a proeminência dos militares federais que culminou com a intervenção da União no estado Rio de Janeiro no ano de 2018, quando se conferiu, pela primeira vez após o término do regime militar, a responsabilidade total da missão a generais designados para postos chaves, com poder de demitir delegados e comandantes de batalhões da Polícia Militar, em uma flagrante quebra do pacto federativo.

Reconheço que o medo ocasionado pela criminalidade é preocupante, diria mesmo, desesperador! A segurança pública, por certo, é atributo exclusivo e privativo da estatalidade, a ser obtida por meio da prevenção e da punição de infrações e crimes, mas também pela reintegração social do condenado. Compete à governança combater as causas que geram a insegurança e, paralelamente, adotar programas e ações que estimulem as condutas lícitas e éticas dos cidadãos, não se limitando, apenas, à repressão penal. Lamentavelmente, a sociedade brasileira está adoecida por tanta violência e, no imaginário coletivo, a segurança passou a ser confundida erroneamente como uma questão de polícia. Predomina a ideia de que a diminuição somente se efetiva mediante o aumento da força policial e de maior severidade legal e não, com práticas legitimadoras e políticas inclusivas.

Inquestionável, no Brasil, serem os desníveis sociais imensos e grande parte da população estar privada de bens básicos como saúde e educação. Tanta opressão socioeconômica, por óbvio, dá azo ao incremento da criminalidade. Afinal, a violência reproduz a tentativa de um diálogo fracassado, incapaz de responder às frustrações dos desfavorecidos. E, nessa perspectiva, só por meio da adoção de políticas públicas que promovam a isonomia e assegurem materialmente o que a Constituição estabeleceu formalmente, poderão ser minimizadas as insatisfações que resvalam no ódio.

A ponderação a ser feita é: segurança pública e direitos humanos para quem? Para todos os cidadãos, evidentemente! No Brasil, contudo, os mais afetados, tanto com a violência real quanto a simbólica, são os vulneráveis: mulheres, crianças, adolescentes, população LGTBQIA+, os povos tradicionais e, sobretudo, os afrodescendentes. Nesse cenário, a adoção de projetos governamentais racionais e eficientes devem incorporar os padrões jus humanitários e, pari passu, estabelecer limites intransponíveis para as intervenções militares abusivas. Até porque, segurança pública e direitos humanos formam binômio indissolúvel e eventuais falhas sinalizam a fragilidade estatal.

Ao contrário do que propugnavam os regimes autoritários do passado, segundo os quais a segurança caracterizava-se, tão somente, pela manutenção da ordem como expressão do poder, o modelo hoje adotado tem como premissa básica o princípio de que a proteção dos indivíduos reflete as instituições e as leis do país, indicador relevante da ingerência cidadã. Ela está longe de reproduzir a mera repressão, porque conjuga a paz e a ordem com as conquistas civilizatórias. Por consequência, quando se fala em segurança pública, o controle dos fatores geradores de brutalidades e incertezas no interior das sociedades economicamente desequilibradas deve coibir usurpações odiosas. E, nesse enfoque, a observância da estrutura padronizada de garantias que privilegiem a dignidade humana, insculpida no artigo 5o, da Constituição Federal e nos tratados internacionais é fundamental!

Admito, novamente, o cenário é preocupante e desolador! Não tenho respostas, somente incertezas. E a principal delas é que, em uma democracia, o poder civil deveria atribuir o ônus da segurança pública à Marinha, ao Exército e à Aeronáutica, destinadas, primordialmente, à defesa da soberania nacional.

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