Edição 295
TJSP e OAB-SP firmam acordo para combater a litigância abusiva
1 de março de 2025
Da Redação

O compromisso prevê a criação de um grupo de trabalho para melhorar a comunicação institucional e iniciativas para prevenir e combater a prática
A Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo (OAB-SP) e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) firmaram um acordo inédito para fortalecer o combate à litigância abusiva, prática que compromete a eficiência do sistema judiciário e gera impactos econômicos significativos. O compromisso prevê a criação de um grupo de trabalho para melhorar a comunicação institucional e iniciativas para prevenir e combater a prática.
Caracterizada pela distribuição massiva e atípica de ações judiciais em um curto intervalo de tempo, o ato prejudica a organização do Judiciário e gera custos elevados para diversos segmentos dos setores público e privado, afetando diretamente toda a sociedade.
Em entrevista à Revista Justiça & Cidadania, a juíza assessora da Corregedoria-Geral da Justiça (CGJ) do TJSP Maria Rita Rebello destacou que o acordo surge da necessidade de enfrentar o problema de maneira coordenada. Na prática, o grupo de trabalho terá como principal função tornar as comunicações entre as instituições mais assertivas e ágeis, permitindo que providências sejam adotadas com maior rapidez e efetividade. A atuação conjunta permitirá identificar padrões de litigância abusiva e tomar medidas disciplinares quando necessário, garantindo que o sistema judiciário possa operar com mais segurança e previsibilidade.
Por ser uma iniciativa de aprimoramento institucional contínuo, não há prazos ou metas específicas para os trabalhos do grupo. No entanto, a expectativa é que o fortalecimento do diálogo entre a OAB-SP e o TJSP contribua para o enfrentamento da prática.
Revista Justiça & Cidadania – Qual foi a principal motivação para a celebração deste acordo entre a Ordem do Advogados do Brasil Secional São Paulo (OAB-SP) e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP)?
Maria Rita Rebello – O Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demanda (NUMOPEDE) foi criado, em 2016, pela Corregedoria-Geral da Justiça (CGJ) do TJSP para monitorar novos fenômenos processuais como a litigiosidade em massa, demandas repetitivas, grandes litigantes, e, também, a litigância predatória. O objetivo é centralizar a atuação da CGJ nessas questões, difundindo boas práticas e adotando medidas de organização judiciária para melhorar a prestação jurisdicional.
Em regra, essa má prática está associada à maciça distribuição de ações em curtíssimo intervalo de tempo, sobrecarregando o Judiciário e prejudicando a eficiência dos serviços à população. Além do comprometimento inestimável da capacidade de prestação de serviço público essencial de forma eficiente e célere à população, em razão da desorganização provocada pela súbita e inesperada distribuição de um tsunami de feitos em fóruns específicos, essa má prática importa, também, enormes prejuízos econômicos ao Poder Judiciário e, em especial, para a sociedade como um todo. Desenvolvida por número ínfimo de pessoas, a litigância abusiva importa em alto custo social que é assumido e subsidiado pela sociedade como um todo.
Especificamente quanto ao fenômeno da litigância predatória, a atuação da CGJ sempre se pautou pelo objetivo de rápida identificação de distribuições atípicas, que pudessem evidenciar mal uso do sistema de Justiça e das regras legais protetivas de vulneráveis e hipossuficientes, com o objetivo de alertar magistrados, divulgando boas práticas detectadas para o melhor enfrentamento. Tais orientações permitem atuação padronizada e individualizada de magistrados na esfera de processos. Contudo, as diversas iniciativas da CGJ para enfrentamento da litigância predatória sempre estiveram circunscritas à sua esfera de atuação, a qual está restrita às unidades judiciais e aos magistrados.
Com relação a advogados que adotavam práticas abusivas e ilícitas, a atuação da CGJ do TJSP limitava-se a comunicar essa situação à OAB/SP e, se fosse o caso, ao Ministério Público do Estado de São Paulo, encaminhando documentos e informações pertinentes, uma vez que essas instituições detêm a competência para, respectivamente, adotar medidas administrativas punitivas em caso de violação do Código de Ética e dos deveres profissionais de advogados, ou para adotar procedimentos investigativos no âmbito criminal.
Desse modo, o aprimoramento do diálogo institucional entre a CGJ do TJSP e a OAB/SP, mediante a criação de grupo de trabalho, mostra-se medida extremamente salutar e que, certamente, contribuirá para a maior eficiência das medidas adotadas para o combate à prática da litigância predatória, e, consequentemente, para uso mais racional e adequado do sistema brasileiro de Justiça.
JC – Como funcionará, na prática, o grupo criado para combater a litigância abusiva ou predatória? Existem metas ou prazos específicos para que o grupo apresente resultados concretos?
MRR – O objetivo será aprimorar canais institucionais de comunicação, permitindo que as comunicações encaminhadas entre as duas instituições sejam mais assertivas e céleres, e, com isso, otimizar as medidas adotadas por cada uma dessas instituições, no âmbito de cada atuação, no combate à litigância abusiva. Assim, considerando que o objetivo do grupo de trabalho consiste em aprimoramento constante de diálogo institucional, não há que se falar em prazos específicos ou metas a serem perseguidos.
JC – Há um consenso entre as duas instituições de que a litigância predatória precisa ser combatida?
MRR – A formação do grupo de trabalho, focado no enfrentamento da litigância abusiva, indica a preocupação das duas instituições envolvidas com essa questão.
JC – Que tipos de ações práticas serão adotadas para identificar e combater a litigância predatória?
MRR – No entender desta CGJ, as práticas associadas ao fenômeno da litigância predatória envolvem a utilização indevida de regras legais protetivas de hipossuficientes e vulneráveis que seriam aplicáveis em benefício exclusivo da parte litigante (consumidor e beneficiário da justiça gratuita, por exemplo), para permitir a distribuição atípica de feitos sem qualquer custo, resultando na injustificada captura da capacidade de prestação jurisdicional das unidades judiciais sem qualquer explicação processual racional aparente para a parte, exceto a potencialização dos honorários sucumbenciais devidos ao advogado.
Há, portanto, distorção de regras protetivas das partes e utilização indevida da estrutura pública destinada à prestação jurisdicional para potencialização de ganhos pessoais do advogado. Tais características denotam atuação que não se justifica em prol da defesa do interesse das partes litigantes, mas, sim, que evidenciam sua apreensão em novo modelo de negócio privado do advogado, com o único intuito de potencializar ganhos pessoais com o litígio e, não, a tutela em si dos direitos do constituinte. A litigância predatória, desse modo, não se confunde com a litigância de má-fé, que é disciplinada no artigo 77 do CPC, o qual estipula os deveres das partes do processo. A litigância predatória pode, portanto, envolver também a litigância de má-fé, mas não se restringe a ela.
Desse modo, ao contrário do que ocorre com a litigância de má-fé, o que define a litigância abusiva não é conduta específica, mas, ao contrário, a forma específica de litigar de determinado advogado, a qual, compreendida globalmente, terá, por resultado final, a potencialização dos ganhos privados do mencionado profissional em detrimento da capacidade estatal de prestar jurisdição à coletividade como um todo. Há, portanto, utilização abusiva de diversas normas legais processuais e protetivas de vulneráveis e hipossuficientes por tal profissional, excedendo, claramente, os limites impostos pelo seu fim econômico e/ou social, ou mesmo pela boa-fé, resultando, assim, em prática ilícita.
Consequentemente, não é uma conduta específica que permite identificar uma lide como predatória, mas, sim, um conjunto de características que evidencia, justamente, estratagema para potencialização de ganhos privados do advogado com honorários advocatícios ou multas fixadas no processo, em novo modelo de negócio privado.
Considerando tais particularidades, é comum verificar a litigância abusiva quando se analisa um conjunto de feitos distribuídos por um único advogado, com características que resultam na redução do custo do processo e do risco de sucumbência do constituinte, e têm, por resultado, potencializar os ganhos privados do advogado de forma injustificada sob a perspectiva do processo. Assim, havendo a identificação, pela CGJ, dessa prática, preservada sua independência para adotar, dentro de sua esfera de atuação, as medidas que julgar necessárias para seu enfrentamento, pretende-se utilizar canal institucional a ser aprimorado pelo grupo de trabalho para permitir que a OAB/SP tenha acesso a informações e documentos necessários para que possa adotar, com igual independência, as medidas que reputar cabíveis.
JC – Que tipos de ações práticas serão adotadas para identificar e combater a litigância abusiva?
MRR – A criação do canal institucional pelo grupo de trabalho, assim como as medidas que porventura venham a ser adotadas, preserva a independência de cada uma das instituições dentro da esfera exclusiva de atuação. Consequentemente, a CGJ, por meio do NUMOPEDE, continuará adotando as atuais medidas de monitoramento e orientação aos magistrados que já vinham empregando no combate à litigância abusiva.
JC – Como será feita a integração entre o TJSP e a OAB-
SP para garantir a eficácia das medidas propostas?
MRR – Pretende-se, com a realização de reuniões periódicas do grupo de trabalho, aprimorar o diálogo entre as instituições.
JC – De que maneira vocês esperam que esse acordo afete o volume de processos no Judiciário paulista?
MRR – O objetivo do grupo de trabalho não é o enfrentamento de volume de processos do Poder Judiciário paulista, mas, ao contrário, o combate à má prática adotada por pouquíssimos profissionais, com enorme potencial de comprometer a capacidade de prestação de serviço público essencial à população paulista – que é a jurisdição –, além de evitar que haja dispêndio injustificado de recursos públicos com esses feitos, os quais objetivam, apenas, potencializar modelo de negócio privado de poucos.
JC – Há estimativas sobre o impacto econômico de litígios abusivos?
MRR – É estimado que, no âmbito do estado de São Paulo, a litigância abusiva resulte em prejuízo anual de R$ 2,7 bilhões. Espera-se que medidas como essa possam contribuir para redução desse montante.
JC – Como esse combate à litigância abusiva pode influenciar a percepção pública sobre a eficiência do Judiciário?
MRR – Em estudo realizado pelo NUMOPEDE do TJSP, analisando a distribuição, na capital do estado de São Paulo, de apenas um único assunto da Tabela do CNJ – “Práticas Abusivas”, durante o período de 2021 a agosto/2024, identificou-se que, dos cerca de 73.600 casos novos distribuídos nesse assunto/período, 38% tinham como patrono número ínfimo de profissionais (cerca de 0,22% do total) – grande parte dos quais era ou já havia sido monitorada pelo NUMOPEDE.
O estudo revela a capacidade de prestação jurisdicional pelo Poder Judiciário, indicando que grupo ínfimo de profissionais – cerca de 0,22% – é responsável pela distribuição de quase 40% dos feitos – e isso apenas no único assunto pesquisado. Revela, ainda, comportamento processual completamente distinto entre os dois grupos: enquanto o grupo representado por 99,7% dos profissionais que atuaram nesse assunto manteve média estável de distribuição ao longo do tempo (três casos novos/mês), o outro grupo, composto por cerca de 0,22% dos profissionais, apurou média de distribuição de 50 casos novos/mês no período, com picos e curva ascendente, sem estabilidade.
Essas evidências indicam que um assertivo combate à litigância abusiva permitirá evitar que haja uso injustificado e abusivo da estrutura judiciária disponibilizada para prestação jurisdicional à população, certamente contribuindo para sua utilização mais eficiente.
JC – Para o TJSP, como a OAB-SP deve agir para orientar os advogados para evitar práticas que possam ser consideradas litigância abusiva?
MRR – Conforme mencionado, o objetivo do grupo de trabalho é obter o aprimoramento dos diálogos institucionais, preservando-se a independência de cada uma das instituições na sua esfera de atuação. A CGJ preocupa-se, assim, exclusivamente com a orientação de magistrados e servidores quanto às boas práticas a serem adotadas para enfrentamento da litigância abusiva.
JC – O acordo prevê algum tipo de sanção para advogados que insistirem em práticas de litigância abusiva?
MRR – Eventual punição por litigância abusiva, por magistrados em processo judicial, caso seja possível enquadramento como litigância de má-fé ou abuso de direito, é questão exclusivamente jurisdicional, com relação à qual, em atenção à garantia constitucional de independência dos magistrados, a CGJ não detém qualquer grau de ingerência. Assim, preservada a independência constitucional de magistrados, a CGJ limita-se a orientar boas práticas, não exercendo qualquer sugestão sobre exercício de jurisdição. Por outro lado, o processo administrativo de eventual punição de advogado que adotar práticas de litigância abusiva é questão que afeta, exclusivamente, a competência da OAB/SP, não detendo esta CGJ qualquer tipo de ingerência sobre eventual sanção que venha a ser aplicada.
JC – Como os integrantes do grupo de trabalho pretendem dialogar com os advogados que representam interesses legítimos, mas que possam ser confundidos com litigância abusiva?
MRR – A atuação da Corregedoria-Geral da Justiça está circunscrita à orientação de magistrados e servidores quanto a boas práticas a serem adotadas para enfrentamento da litigância predatória, incluindo, também, a emissão de alertas sempre que se identificarem situações indicativas da ocorrência desse fenômeno por um profissional específico. Consequentemente, preservada a independência constitucional de magistrados, a adoção ou não dessas boas práticas em cada processo é questão que deverá ser avaliada por cada juiz, à luz do caso concreto, no regular exercício de sua competência jurisdicional. Eventuais equívocos devem ser combatidos pelas vias processuais adequadas, notoriamente a interposição de recursos.
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