“Temos que achatar a curva das demandas”

10 de maio de 2020

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Entrevista com o Ministro do STJ e do TSE Luis Felipe Salomão, novo Presidente do Conselho Editorial da Revista Justiça & Cidadania 

Nessa edição destacamos a entrevista com o Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, que marca o início de sua gestão na presidência do Conselho Editorial de Justiça & Cidadania. Além de falar sobre seus planos à frente da Revista, o magistrado analisa as Recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para enfrentar a pandemia e comenta a expectativa de uma “enxurrada de processos” quando acabar a quarentena. Membro efetivo do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) até o ano que vem e cotado para assumir a Corregedoria Eleitoral no segundo semestre, Salomão avalia ainda a possibilidade de adiamento das próximas eleições municipais e a estratégia para conter a disseminação de notícias falsas durante o pleito.

Revista Justiça & Cidadania – Qual contribuição o senhor pretende dar ao Conselho Editorial?

Luis Felipe Salomão – É uma honra participar desse trabalho que foi construído tijolo a tijolo pelo idealista Orpheu Salles, que pensava a Revista e o Prêmio Dom Quixote como um verdadeiro Quixote. Era assim que nós o víamos no Judiciário. Por conta do trabalho do fundador Orpheu e também do personagem que me antecedeu na presidência do Conselho – o Senador Bernardo Cabral, nosso Presidente de Honra – a história da Revista se confunde com a da redemocratização do País. Dar continuidade a esse trabalho, prosseguir com esse espírito do Quixote, é um desafio e uma oportunidade. O nome da Revista é muito simbólico nesse sentido. É como aquela utopia da qual fala Eduardo Galeano, uma estrela a nos guiar mesmo que nunca possamos tocá-la. É o desafio que perseguimos, contribuir com passos decisivos para a democracia, a Justiça e a cidadania. Ao longo desses 21 anos foram muitas reportagens, eventos e atividades que a Revista e o Instituto JC desenvolveram nesse sentido. Portanto, a história da Revista se cruza com a evolução da democracia em nosso País.  

RJC – Enxerga riscos à estabilidade democrática nos dias de hoje?

LFS – O Judiciário brasileiro é um dos mais independentes do mundo, o que é reconhecido pelos mais sérios estudiosos e pesquisas sobre o funcionamento do Judiciário. Desde a nossa primeira constituição, ainda no Império, os juízes já contavam com alguns dos predicamentos da magistratura, como as garantias de inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, por exemplo, mantidas pelas constituições republicanas. Nossa tradição sempre foi a de um Judiciário independente, o que nos destaca na América Latina, onde a formação dos Estados foi avessa a essa funcionalidade do Poder Judiciário. Outros avanços que tivemos posteriormente, como a independência administrativa e a independência orçamentária – essa uma conquista da Constituição de 1988 – contribuíram para que tenhamos hoje um Judiciário realmente autônomo, independente, que deve colaborar e contribuir com os outros Poderes. É um orgulho para todos que o integramos. Os juízes têm absoluta independência para decidir com base na lei e no seu convencimento, o que nos coloca em posição de muito destaque no cenário internacional. Quero dizer com isso que esses embates, típicos da democracia, em que ora o Executivo está mais forte, ora o Legislativo, fazem parte da história da democracia no mundo. Essas fricções são absolutamente normais e temos hoje instituições muito sólidas para superá-las. Peremptoriamente, não há o menor risco de retrocesso institucional no Brasil.

RJC – Vivemos simultaneamente transformações tecnológicas e uma pandemia sem precedentes na história recente. O Judiciário está preparado para as mudanças?

LFS – O impacto da tecnologia já era o grande motor para as mudanças que estão acontecendo interna e externamente ao Judiciário. Com a pandemia isso se acelerou, ganhou dinâmica própria. O Judiciário teve que adaptar seus serviços e seu funcionamento, e teve que fazê-lo com extrema velocidade para não deixar a bicicleta cair. (…) No Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário, que temos no âmbito da Fundação Getúlio Vargas (Ebape/FGV), desde meados do ano passado estamos desenvolvendo, em parceria com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pesquisa sobre a extensão da inteligência artificial aplicada ao Poder Judiciário.

RJC – Qual é sua posição a respeito do plenário virtual, dos julgamentos por videoconferência e de outros mecanismos criados em resposta à crise?

LFS – A pandemia acelerou medidas que já teriam que ser adotadas e trouxe algumas inovações repentinas – sobre essas, vamos ter que pensar bem. Os julgamentos por videoconferência, por exemplo, devem ser utilizados em caráter absolutamente excepcional e temporário, não podem ser permanentes. Não é aversão ao novo, misoneísmo. Ao contrário, quero que o novo sempre venha, mas, para algumas atividades, os atos presenciais ainda são fundamentais para a boa qualidade. Exemplos disso são as reuniões e seminários. Você pode fazer centenas de seminários virtuais, com expositores e debatedores, mas tão eficiente e importante quanto a troca de informações é a interação humana, é o que se faz no cafezinho, nos ambientes de convivência, onde o ser humano interage e se manifesta mais livremente, sem os freios da Internet. Esse tipo de evento vai sempre existir, porque não se pode fazer isso virtualmente. 

Outro exemplo é o do próprio julgamento. Nos julgamentos por videoconferência os advogados não conseguem se encontrar pessoalmente com os juízes para entregar os memoriais ou para fazer as explicações, situações em que a tela do vídeo não substitui o olho no olho. Vejo também que os julgadores, na véspera ou na entrada do julgamento, trocam impressões entre si que são importantes para a formação da convicção do colegiado. O julgamento por videoconferência fica pobre, deve ser usado apenas para questões momentâneas que não podem esperar o retorno das sessões presenciais. É claro que serão criados alguns aperfeiçoamentos ao julgamento. Talvez se possa permitir que o advogado faça a sustentação por videoconferência, para evitar deslocamentos, mas apenas em situações excepcionais que precisarão ser reguladas no futuro. (…)

Tão logo possa haver sessões presenciais, elas deverão retornar. Mas há também o chamado plenário virtual, em que o processo fica uma semana com o julgador para que ele possa examinar, normalmente, casos já muito batidos. Essas sessões funcionam bem, são decisões repetidas, votos já sabidos, em que a participação das partes, advogados e julgadores é mais difícil de acontecer. O plenário virtual acelera bastante esses julgamentos, como uma válvula de escape. Quem não estiver satisfeito pode retirar e ir ao julgamento no plenário físico, sem nenhum problema. 

RJC – Mas o que o senhor acha do funcionamento remoto dos cartórios e do uso de documentos digitais? 

LFS – Nesse particular da atividade extrajudicial, que não depende do Judiciário, quanto mais facilidade para o cidadão, melhor. Tudo o que puder ser feito sem a necessidade de presença física e filas, desde que não comprometa a segurança jurídica e a validade dos negócios jurídicos será excelente. Já havia vários avanços nessa linha, a pandemia os tornou prementes, iminentes. O que foi antecipado veio para ficar, não tenha dúvida, mas nada disso vai poder tirar a oportunidade de você ir até o cartório, questionar um ato, conversar com o servidor. Isso vai ter que permanecer, mas o que puder ser feito à distância e com rapidez para o cidadão será bem-vindo.    

RJC – O CNJ editou orientações aos julgadores, inclusive a Recomendação nº 63, da qual o senhor foi o relator. Elas serão suficientes para o Judiciário lidar adequadamente com os desdobramentos da pandemia? 

LFS – São inúmeros desdobramentos e consequências, é impossível prever todas e quais serão. Há implicações de ordem econômica, tributária, administrativa, contratual, de responsabilidade civil, penal… estamos ainda tateando. O que o CNJ fez em boa hora e em muito boa medida foi organizar um mínimo para o funcionamento dos tribunais e também algumas recomendações para os juízes, mas ainda é muito cedo para avaliar esses impactos. Uma coisa é certa, nós juízes precisamos ter muito cuidado para separar o joio do trigo. Haverá alguns de má fé tentando se aproveitar desse momento para obter moratórias indevidas, porque já estavam devendo antes. Por outro lado, haverá muitos de boa fé que vão precisar de fôlego e algum calço para sair da situação em que se encontram. Vamos ter que calibrar bem as revisões de contratos, para que o remédio não mate o doente. Será preciso cautela. Se traçarmos um paralelo entre a curva da doença e a curva das demandas, vamos perceber nitidamente que é preciso investir em mecanismos fortes para achatar a curva também no Judiciário.

Quando retomarmos os prazos processuais e reabrirmos o funcionamento dos tribunais, haverá uma avalanche de novas demandas. Precisamos ter uma medida profilática, como o investimento em conciliação prévia. Será preciso refletir bastante, mas talvez devamos recomendar aos juízes que, antes de dar segmento às demandas, especialmente quando se tratar de revisão de contratos, submetam a questão à mediação prévia. Será preciso tentar que um lado entenda o outro, ou não vai dar certo, haverá uma enchente de demandas que ninguém vai conseguir resolver.

RJC – Tramitam no Congresso projetos de lei para dar suporte às empresas em dificuldades ou em recuperação durante e após o estado de calamidade pública. Novas leis são de fato necessárias?

LFS – Legislar sob o impacto do momento, com o coração e com o fígado, não costuma funcionar bem, mas outra coisa são as legislações excepcionais e temporárias que regulam fatos jurídicos para enfrentar situações determinadas. Essas, diante dos desdobramentos que possam gerar, talvez sejam úteis para nós operadores do Direito. Volto a dizer, porém, que ainda estamos distantes dos desdobramentos que isso possa gerar. (…) Diferentemente do que acontece em gravíssimas crises, guerras e calamidades, a estrutura física e material está funcionando, não foram afetados o maquinário, o chão da fábrica e as lojas. Temos agora que saber se a volta da atividade humana será suficiente para a retomada e em que tempo. Nos shoppings centers, por exemplo, que dependem da circulação, enquanto não houver cura ou vacina será que as pessoas vão voltar a frequentar, mesmo com as lojas abertas? É imprevisível. São variáveis que farão com que essas situações talvez demandem um tempo ainda maior do Judiciário, porque vamos ter que observar diversos fenômenos. Não pode ser em tempo tão longo, que as deixe sem resposta, mas não pode ser tão rápido, a ponto das questões serem decididas com o fígado.  

A pandemia está exigindo forte atuação do Estado para conter os efeitos sobre a saúde pública e a economia. O “Estado mínimo” está em xeque?

LFS – Os economistas muito liberais acreditam que a saída é o mercado. Outros que flexibilizam essa regra, mesmo que ainda liberais, acham que sem a intervenção do Estado não vamos retomar a atividade econômica. Se olharmos para as crises pretéritas, o maior exemplo talvez seja o new deal dos Estados Unidos, que seguiu a crise de 1929, em que o Estado teve uma presença muito forte, tanto na regulação de determinadas produções, quanto no forte intervencionismo na construção de infraestrutura. O Estado atuou muito para dar emprego, e isso na meca do capitalismo, nos EUA. Mas ainda é difícil dizer, não há clareza.

As medidas que o Governo Federal já adotou na distribuição de renda, que vão atingir uma gama muito grande de trabalhadores informais e de baixa renda, já caracterizam uma atuação forte do Estado. Não sei se será suficiente, mas também acredito muito no mercado em um sistema como o nosso. Nosso empresariado está doido para crescer, é empreendedor, temos muitas atividades econômicas que são admiradas pelo mundo todo, como o agronegócio, a construção civil, a incorporação imobiliária e outras atividades na área de serviços. Tão logo haja a retomada, com investimento e empreendedorismo, essas atividades têm tudo para voltar a crescer, independentemente do Estado.

O Governo pode ajudar muito na hora de sentar com os bancos, porque o setor financeiro tem o papel central de financiar a recuperação. Para isso, as políticas públicas precisam estar muito bem delineadas. O setor público pode ajudar muito ao estabelecer regras claras para que as instituições financeiras possam alavancar a retomada. Tenho certeza que, com a garra que é típica dos brasileiros, a gente retoma isso.

RJC – Como enxerga o Judiciário pós-pandemia?  

LFS – Vamos ter que trabalhar muito para achatar a curva das demandas. No começo haverá uma corrida ao Judiciário para resolver todo tipo de problema: locação, responsabilidade civil, contratual, questões de família, problemas de Previdência, problemas afetos à Saúde, seguros. É até difícil imaginar a gama de problemas que vamos ter. (…) Trabalhar para achatar essa curva, para usar a expressão do momento, é fazer com que haja grande procura pelas soluções extrajudiciais, das mais variadas, como mediação, mediação online, arbitragem, dispute board, terceiro neutro, tudo o que se possa utilizar. A advocacia terá um papel muito relevante nisso, porque os advogados são os primeiros juízes das causas. Quando eles receberem uma questão, procurados pelos clientes, vão precisar desde o primeiro momento sentar à mesa com a outra parte para tentar encontrar um denominador comum, só recorrendo à Justiça quando a negociação for realmente insuperável. Caso contrário, será um caos, porque já temos 80 milhões de demandas em tramitação, 30 milhões por ano, isso segundo o relatório CNJ em Números do ano passado. Se essa curva subir demasiado, vamos chegar ao limite de atuação dos juízes.

Em um segundo momento, vamos precisar ter muita rapidez na utilização das novas tecnologias, inteligência artificial, otimização do trabalho, realização de atos por videoconferências, algoritmos e outras ferramentas tecnológicas para auxiliar a debelar a grande quantidade de processos que, certamente, vai chegar ao Poder Judiciário.

No terceiro momento, visualizo o Judiciário atuando no sentido macro, como grande moderador das situações extremas, seja para a democracia, seja para a vida de cada um de nós. Temos três visões, uma para a atuação mais imediata do Judiciário; outra na qual as ferramentas são destinadas à gestão da Justiça; e uma terceira, que é uma visão mais amplificada, do Judiciário realmente guardião da paz social, viabilizando a resolução dos conflitos, sem perder de vista que isso demanda planejamento e estratégia, sobre os quais o CNJ já se debruça nesse momento.

RJC – Como ministro efetivo do TSE, o senhor enxerga risco à realização das eleições municipais desse ano? 

LFS – Tenho acompanhado passo a passo essa questão no TSE, até porque, pelo rodízio, a partir de agosto devo assumir a Corregedoria Eleitoral. Se for escolhido pelos meus pares, terei essa responsabilidade relevante quando se trata das eleições municipais. Salvo engano, é a maior eleição do mundo, com a maior quantidade de candidatos e a maior participação popular. Há um cronograma a ser seguido. O próximo presidente será o Ministro Luís Roberto Barroso, com posse já marcada para o mês de maio. Ele tem dito que a ideia é não adiar, mas se tivermos que adiar, e essa decisão terá que ser tomada até o mês de junho, seria por um mês e meio, para que até meados de dezembro a eleição esteja terminada. Vamos precisar de alguns ajustes, claro, mas esse adiamento não implicará na maior duração dos mandatos já existentes, o que feriria bastante a democracia, porque o candidato é escolhido para determinado período. Estender em uma canetada o mandato seria uma violência à democracia. Agora, tudo isso tem que ser combinado com quem faz a regulação da eleição, que é o parlamento. Embora a Justiça Eleitoral realize as eleições, quem fixa os prazos é a Constituição. Talvez uma regra transitória possa ser pensada diante dessas circunstâncias. Não acredito que as eleições passem desse ano.   

RJC – Como Corregedor, o senhor terá que enfrentar a influência das fake news no processo eleitoral. O que planeja fazer a esse respeito?

LFS – Realmente é um complicador, porque ao mesmo tempo em que o juiz eleitoral não pode e não deve deixar propalar as notícias falsas, a Justiça Eleitoral não pode cercear o debate entre os candidatos, que é o próprio  alimento da democracia. Hoje o debate eleitoral não acontece mais na televisão ou nos comícios, acontece nas redes sociais. O que precisamos fazer é uma regulação mínima, em que os próprios partidos e a imprensa séria participem do controle das notícias falsas. Essa tarefa não pode caber aos juízes, não sou eu que vou dizer se a notícia é falsa ou verdadeira. O que a Justiça Eleitoral pode fazer são intervenções quando houver assaque à honra dos candidatos ou desequilíbrio entre as forças no debate eleitoral. Fora isso é questão dos partidos políticos e dos candidatos, faz parte da democracia.

O que o Tribunal tem procurado fazer são os convênios com a imprensa séria, reconhecida, para que as notícias falsas sejam imediatamente detectadas e automaticamente desmentidas. É como usar o próprio veneno contra a cobra, utilizar da tecnologia para rastrear e desfazer as notícias falsas. O que deve ser entregue à imprensa, que tem um papel fundamental, e aos próprios candidatos e partidos, que têm que exercer séria e serena responsabilidade nesse momento. Será difícil encontrar o equilíbrio, mas as maiores democracias do mundo estão fazendo experimentos sobre como fazer essa detecção e controle. Em nosso caso é um pouco mais difícil porque essas empresas estão todas situadas em território estrangeiro, é mais difícil obter dados e responsabilizar quem comete os ilícitos, mas tenho certeza de que os mesmos avanços de tecnologia que facilitam o debate virtual serão importantes no controle das notícias falsas. É o veneno criando a vacina.