Severino não tem nada de engraçado

5 de maio de 2005

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Severino Cavalcanti perdeu a graça. É uma insensatez continuar a achá-lo divertido por ter escancarado certos usos e costumes -todos afrontosos a brasileiros honestos-   historicamente praticados nas sombras. É essencial deter o oportunista sem vestígios de pudor antes que a Câmara, uma casa crescentemente ameaçada por rachaduras, seja reduzida a escombros por sucessivos atentados à ética e à moral. E não existe democracia sem Legislativo.

Foi difícil evitar o riso quando o velho ator, no papel de presidente da Câmara, invadiu o picadeiro. Foi impossível engolir a indignação provocada pela constatação de que, enquanto a platéia gargalha, o clown que virou dono do circo faz negócios no trailer.

Na estréia, berrou sem pudores que deputados ganham pouco, merece muito mais: se cuidam do povo, é natural que o povo pague a conta. As risadas de parte da platéia o animaram a seguir em frente.

Não via nada demais, avisou, na nomeação de pencas de parentes, sem concurso, para cargos no Legislativo. “Isso só ajuda a família”, explicou. Então o público perdeu a paciência e explodiu em apupos. Era muito cinismo para um deputado só.

A reação irada inibiu até os muito doidos por dinheiro. Os pais da Pátria acharam perigoso conceder-se ostensivamente um aumento que elevaria seus ganhos mensais para cerca de R$ 100 mil, somados salários, gratificações, verbas de gabinete e outras trucagens. O aumento ficou no picadeiro. Seria compensado no trailer a meia-luz.

Baixada a poeira, a Mesa da Câmara anexou às verbas de gabinete uma quantia equivalente ao acréscimo salarial rechaçado. Bloqueado o acesso pela estrada principal, o chefão da Câmara chegou aos cofres públicos pela trilha do pântano. Poucos deputados protestaram. Raríssimos prometeram devolver a diferença. E os contribuintes capitularam diante ao fato consumado.

Eufórico com a promoção a nº 3 na linha de sucessão presidencial exagerou nas piruetas. Sofreu tombos que lhe causariam ligeiras escoriações. O cínico elogio do nepotismo ajudou a apressar o andamento no projeto de lei que, se não encerra a farra de vez, ao menos reduz a multidão de parentes que vêem o tempo passar na Praça dos Três Poderes.

De bobo Severino não tem nada. Desconfiado de que ficará complicado empregar a parentela nos gabinetes do Legislativo, vai montando o plano de retirada. A filha Ana já estava na Assembléia pernambucana. Do cacho de sobrinhos, netos, primos e agregados poderá cuidar mais tarde. Faltava acertar com urgência a vida do filho José Maurício.

A solução do problema convenceu o deputado de que a mão divina resolveu favorecê-lo. Estremecido com o presidente Lula depois do desastrado ultimato em que exigiu a nomeação de um ministro, Severino foi socorrido pela morte do papa. Convidado a integrar a comitiva presidencial, primeiro rezou o Pai-Nosso ao lado de Lula. Em seguida, fechou o acordo no céu.

Há dias, por determinação do dono do Aerolula, José Maurício Cavalcanti, aos 49 anos, assumiu com pompa e circunstância o cargo de superintendente do Ministério da Agricultura em Pernambuco. O currículo do premiado não é lá essas coisas. Formado em Direito por uma faculdade que escapou por pouco ao pelotão de fuzilamento do Provão, candidato derrotado a prefeito de João Alfredo, sempre garantiu a sobrevivência financeira como assessor de Severino. É um filho amoroso e agradecido.

“Honrarei os ensinamentos recebidos do meu querido pai”, prometeu na posse. Tradução: ajudará o patriarca a encontrar vagas menos vigiadas para alojar os Cavalcantis sob risco de perder a boca na Câmara. A desfaçatez é a marca do clã.”