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A semântica como mediadora entre o fenômeno e o juízo

20 de maio de 2018

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Uma das características do ser humano é o fato de expressar grande parte dos seus pensamentos pela linguagem verbal. Desse modo, desde as mais antigas investigações de que temos notícia sobre a humanidade, encontram-se estudiosos cuja preocupação primordial se calcava justamente nessa característica humana, com todos os meandros que ela possa apresentar.

Atribuir um significado ao fenômeno em si, mas não de forma direta, e, sim, mediado pela linguagem acima mencionada: eis o objeto central da episteme filosófica nomeada de “Semântica”. Assim, desde muito cedo os filósofos começaram a perceber que o juízo e o raciocínio do ser humano sobre determinado fenômeno se formavam de modo perpassado, em toda a sua consubstanciação, pela palavra (oral ou escrita). Decorreu daí o enorme interesse em se buscarem as semelhanças e distinções havidas entre, de um lado, os fatos e as coisas por si sós (os fenômenos) e, do outro, os modos como estes eram nomeados por um ser humano específico, por um domínio discursivo, por uma célula social, pela gramática normativa que a representa, por ordenamentos jurídicos de nações que, enfim, compunham o pensamento mediado dos povos que os emanaram.

Não se julgam fenômenos com fenômenos, pois essa é uma metodologia ineficaz para que se interprete a fundo a natureza complexa de que aquele fenômeno é meramente uma consequência. Se não levarmos em consideração o edifício semântico que se ergue ao redor do aludido fenômeno, seja ele qual for, ficar-se-á numa espécie de julgamento ou interpretação por mimese, um factoide que ruborizaria até um Kafka ou um Orwell.

Em suma, o estudo da natureza significativa das fenomenologias vicejadas, sempre, pelo viés da palavra e sua consequente gama de significações variáveis de povo para povo passou a ocupar parte central na ­ontologia em seus mais variados matizes. Não se pode conceber o ser humano sem a linguagem, e tal concepção não apenas é moldada (passivamente) por seres humanos, mas também molda (ativamente) sua cognição, seu raciocínio, seu juízo em relação às teias de fenômenos de que fazemos parte.

Alexandre Chini, Juiz de Direito do TJRJ

Emerge a Semântica, portanto, como centro epistemológico fundamental na filosofia do Direito, sendo este o amálgama (ativo e passivo) da formação de um povo cuja desenvoltura ocorre ao seu redor.

O Direito, assim como a Gramática (que é um compêndio que naturalmente faz parte do ordenamento jurídico de uma nação, por representá-la como sua face linguística no concerto das nações), é um arcabouço de imensa complexidade, pois tanto um quanto a outra devem fazer constar, concretamente, de forma positiva e consuetudinária, as abstrações emanadas da realidade do domínio discursivo-jurídico que retratam, e que está em constante mudança e transformação. Uma Gramática ou um ordenamento jurídico que estejam alienados da realidade socioantropológica que os precede e amolda estão malfadados a transformar-se em “letras mortas”, isto é, num esvaziamento semântico que destoa do espaço e do tempo a que pertencem, tornando-os ineficazes e inócuos.

Bréal, professor de Saussure e de Meillet, foi o estudioso que cunhou o termo “Semântica”, em 1883, em artigo intitulado “Les lois intellectuelles du langage”, publicado em L´Annuaire de l´Association pour l´encouragement des études grecques en France (cf. ULMANN, 1964, p. 17). O pesquisador retirou a expressão, que, em 1825, Reisig nomeara como “Semasiologia”, do verbo grego σημαίειν, que também originou “Semiótica”. Dessa forma, todos eles são conceitos correlacionados (cf. BENVENISTE: 2006, p. 21).

Os estudos a que se lançavam esses pesquisadores pioneiros eram análises da linguagem humana como mediadora entre a coisa de per se e o juízo que se tece sobre a coisa. Basicamente a linguagem já era então compreendida como a comunicação humana quando ocorrida por intermédio de palavras orais ou escritas.

Roman Jakobson aceita, até certo ponto, e com justificada euforia, o entusiasmo com que o pai da cibernética, Norbert Wiener,

[…] se recusa a admitir “qualquer oposição fundamental entre os problemas que nossos engenheiros encontram na medida da comunicação e os problemas dos filólogos”1. É fato que as coincidências e convergências são notáveis entre as etapas mais recentes da análise linguística e a abordagem da linguagem na teoria matemática da comunicação. (JAKOBSON: 2010, p. 92)

Parece natural salientar que a comunicação humana que mais frutos – bons ou maus – produz, como vemos, se dá com a palavra. Por meio dela é que os maiores e mais prolongados benefícios e malefícios causados por pessoas umas às outras se consumam. Mesmo a violência física perpetrada entre duas ou mais pessoas, mesmo a violência do ser humano contra o meio ambiente, mesmo os gestos magnânimos e nobres que seres humanos edificam, mesmo a interação entre o homem e as novas tecnologias da informação, como a cibernética em geral, tudo isso é cingido e precedido pelo universo simbólico das palavras, e, por essa razão, ganha vulto – para o bem ou para o mal, repita-se – quando imposto pela espécie humana, como “locutora”, “interlocutora” ou ambas. Isso ocorre, antes de tudo, porque somos “animais simbólicos”, nas palavras de E. Cassirer. Nossa identidade simbólica, assim como nossa memória, aliás, intrinsecamente coligadas, ­impõe-nos a necessidade de interagirmos ou comunicarmos com algo que vá além da mera transmissão de mensagem.

A mensagem terá, além de sua instância racional ou meramente intelectiva, uma instância afetiva e apelativa, o que perfaz a famosa tricotomia de Bühler da língua como representação, manifestação psíquica e apelo. A transmissão da mensagem precisa, portanto, vir revestida de um conjunto de perspectivas simbólicas que a palavra consegue encerrar em suas sutilezas cognitivas com muito maior desenvoltura que outros significantes.

A simbolização, o fato de que justamente a língua é o domínio do sentido. E, no fundo, todo o mecanismo da cultura é um mecanismo de caráter simbólico. Damos um sentido a certos gestos, não damos ­nenhum sentido a outros, no interior da nossa cultura. […] Ver-se-ia, então, que há como uma semântica que atravessa todos estes elementos de cultura e que os reorganiza – que os organiza em vários níveis. (BENVENISTE: 2006, p. 25)

A palavra não é um simples “envelope” contendo um significado em seu interior. Essa é uma das causas pelas quais há tantas palavras que se tornam tabus (como os “palavrões”, também conhecidos exatamente como tabuísmos) em certos contextos e situações. Ora, se nos restringíssemos a reconhecer palavras como aglomerados fonéticos-gráficos físicos (acústicos/gráficos) ou fisiológicos (perceptuais ou articulatórios/visuais ou táteis) de sons ou como sequências de letras ou de outras maneiras de escrita que devessem exclusivamente, e em qualquer contexto ou situação, emitir mensagens e mais nada, não haveria diferença alguma quando se utilizasse um “palavrão” ou uma palavra qualquer indiscriminadamente para referir-se, por exemplo, a uma pessoa, coisa ou fato, um fenômeno, em resumo.

Também não haveria diferença em se usar, para darmos um exemplo, a palavra “coração” para nos referirmos a alguém de quem gostamos, em vez de fazermos menção ao órgão do corpo que bombeia sangue etc. Isso mostra que a própria denotação/conotação (a que o dinamarquês Hjelmslev conferiu tanta justificável importância) ou a relação de palavras por similaridade/contiguidade, paradigma/ sintagma (metáfora/metonímia) (como as estudadas por Freud e Lacan), entre outras relações que pode a palavra alcançar, dependem do contexto comunicativo, e constroem-se com o intercâmbio de mundos simbólicos e memorialistas que aqueles que interagem devem compartilhar de algum modo, o que engendra as competências textual-­discursiva e léxico-gramatical, que englobam a competência pragmática, entre outras.

O nosso juízo cria, assim, um universo ou paradigma de significações que atribui valores melhorativos ou ­pejorativos em decorrência de um sem-número de elementos intelectuais e também afetivos, sendo a nossa cognição construída no âmago de uma rede indissociável de comunicações e sentenças discursivas concretas que, por sua vez, encontram-se espelhadas em compêndios de sentenças abstratas que as refletem, como um ordenamento jurídico específico (em dado espaço e tempo) e uma gramática também específica.

A pluralidade de interesses, que muitas vezes esbarra em divergências, como as controvérsias, as tensões, as incertezas (difusas) e os conflitos, os riscos (concretos), necessita de um elemento que a sintetize de forma abstrata, mas que se volte à concretude de onde partiu a fim de encontrar eficácia em sua gerência. Eis a dupla função articulatória de códigos reguladores, como ordenamentos jurídicos/gramáticas normativas.

Esse duplo movimento de compêndios reguladores, como o Direito e a Gramática, aqui pesquisados, torna­-se ainda mais complexo em função justamente do caráter suplementar simbólico de que a comunicação humana se reveste (cf. GUIRAUD: 1972, p. 17-18).

O estudo das significações das palavras – abarcando essa sua natureza simbólica, memorialista e inevitavelmente viva pela prática dos usos interativos – é satisfatoriamente empreendido pela Semântica, que se vale de outras disciplinas para angariar pujança às suas conclusões.

Observando a palavra pelo viés antropológico, sob a noção de ideologia, Leandro Konder, em sua obra A questão da ideologia, no capítulo 15, “Ideologia e linguagem”, evoca o caráter simbólico e revestido de memória que, nessa obra, é evidenciado pela questão ideológica, de poder, de hierarquia. Assim, o autor inicia seu capítulo reconhecendo que “Um dos campos de observação mais ricos para o observador dos fenômenos ideológicos é, com certeza, o da linguagem” (KONDER, 2004, p. 151).

Em seguida, observando acuradamente a etimologia de certas palavras, percebe que se trata de elementos cuja raiz aponta para as relações de poder e hierarquias socioculturais e socioeconômicas. Ainda que muitas dessas raízes não sejam mais sincronicamente transparentes, a opacidade contemporânea não deixa, contudo, de evidenciar o aspecto simbólico e memorialista que as palavras carregam;

O povo sempre foi olhado com desprezo e com receio pelos de cima. As palavras que a elite usava para designá-lo deixam transparecer a avaliação negativa: em latim, povo era vulgus, termo do qual deriva o adjetivo vulgar. Juntos, os homens do povo constituíam uma turba e a partir dessa palavra se formou o verbo perturbare e o substantivo turbulência. O próprio número dos elementos populares os tornava assustadores: o termo multi (muitos), que deu multidão, deu também tumulto. Quando se deixavam ensinar (docere) e aprendiam as normas de conduta que lhes eram recomendadas pelos detentores do poder, os homens do povo eram elogiados, eram considerados dóceis. […]

Se, por acaso, pediam algo (pedir em latim era rogare), os pobres eram tolerados, desde que se expressassem com humildade. Se, porém, ousavam reivindicar algo (em latim, reivindicar era arrogare), passavam a ser vistos como arrogantes. (KONDER: 2004, p. 154-155)

São exemplos simples, mas que mostram que a palavra, além de seu estrato material (o significante, fônico/oral ou escrito), é dotada de caráter simbólico, que perpassa a memória de um grupo (memória ­coletiva) e se consubstancia no uso que um indivíduo faz dela (memória individual) para comunicar-se com o grupo de indivíduos de que faz parte, por meio (privilegiado) da língua.

Hjelmslev abre seus Prolegômenos a uma teoria da linguagem, verdadeiro arquitexto, refletindo sobre a natureza imantada ou imanente da palavra em relação ao ser humano.

É de salientar também que Hjelmslev, assim como Saussure, observa a linguagem (manifestada por meio de uma língua) tanto em seu aspecto de troca social, funcionalista (“o homem influencia e é influenciado”) quanto em seu aspecto de cognição em seu sentido mais restrito e puro, formalista (“seu refúgio em horas solitárias”), isto é, a importância dialógica, mas também monológica da linguagem (cf. HJELMSLEV: 1966, p. 10-11).

As palavras são o meio mais privilegiado da comunicação humana. Isso ocorre porque elas partem do discurso vivo, e compõem, com essa liberdade, o que se chama “léxico” de uma língua. Levando-a em consideração, a fenomenologia social (dialógica) e individual (monológica) é interpretada e deve, portanto, ser julgada. Essa característica (pertencer a um discurso vivo e dinâmico) torna as palavras dotadas de significação, que só pode ser compreendida quando se levam em conta os aspectos simbólico e memorialista que elas possuem. Uma vez consagradas no uso dos utentes de uma célula social, as palavras começam a formar regras (fonológicas, morfológicas, sintáticas) numa língua, o que compõe sua gramática (ou suas gramáticas) e seus organismos reguladores, como um ordenamento jurídico, que não se restringem a uma gramática normativa ou a códigos estáticos quaisquer, mas expandem-se, por uma técnica de síntese, basicamente, a todos os usos que permitem que aquela linguagem e seus valores emanados possuam regras compartilhadas e respeitadas pelos interagentes.

Aquele que julga ou interpreta, assim sendo, não deve ater-se meramente ao que já é, mas também ao que pode ser, ao que respeita os valores semânticos plenos de uma comunidade. Em outros termos, o juízo acerca dos fenômenos ocorre sob um sofisticado e sutil exercício de intelectualidade que interpreta a mediação já consagrada dos fatos, mas também as mediações possíveis (ou até prováveis) que ainda não se positivaram de modo cabal, mas que nem por isso inexistem como realidades concretas.


Nota

1 Journal of the Acoustical Society of America, vol. 22 (1957), p. 697


Referências bibliográficas

BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral. Volume I. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Editora da USP, 1976

______. Problemas de linguística geral. Volume II. São Paulo: Pontes, 2006. BRÉAL. Michel. Essai de sémantique. Science des significations. Paris, 1897 [1987]

______. Ensaio de Semântica. Ciência das significações. São Paulo: EDUC/ PONTES, 1992

GUIRAUD, Pierre. Semântica. Tradução e adaptação de Maria Elisa Mascarenhas. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1972.

HJELMSLEV, L. Prolegomena to a theory of language. Madison: The University of Wisconsin Press, [1943], 1963 JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Trad. De Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. 22. ed. São Paulo, Cultrix, 2010

KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004

ULMANN, Stephen. Semântica. Uma introdução à ciência do significado. Tradução de J. A. Osório Mateus. 3. edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1964