Segredo de Negócio – Proteção, Espionagem e Direito Comparado

16 de março de 2021

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Ministros e especialistas discutem a necessidade da criação de uma legislação específica sobre a proteção aos segredos de negócios no Brasil, a exemplo das recentes iniciativas da União Europeia e dos EUA

Segredo de negócio é a informação confidencial obtida graças a investimentos em pesquisa e desenvolvimento, ou mesmo ao acaso, que proporciona vantagem competitiva aos seus detentores. Apesar de ser antiga conhecida da Justiça em todo o mundo, a espionagem para furto de segredos de negócios só passou a ser mais amplamente debatida na década passada, quando algumas das maiores economias do planeta, incluindo União Europeia, Estados Unidos, Japão e China fizeram atualizações legislativas para acompanhar as novas formas de espionagem que surgem na esteira da evolução tecnológica.

Nos EUA, a matéria passou a ser regulada por lei federal em 2016, e na União Europeia, passou a receber tratamento uniforme em todos os 28 países do bloco também em 2016, após a promulgação da Diretiva (EU) 2016/943. No Brasil, contudo, essa discussão é ainda incipiente.

Com o objetivo de debater a necessidade ou não de uma legislação específica para combater o furto de segredos comerciais no Brasil, a Revista Justiça & Cidadania promoveu o webinar “Segredo de Negócio – Proteção, Espionagem e Direito Comparado”. Evento realizado em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Associação de Juízes Federais (Ajufe), a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público (Frentas).

Mediado pelo presidente do Conselho Editorial da Revista JC, Ministro Luis Felipe Salomão (STJ e TSE), o webinar contou com a participação do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (STJ), da Juíza Federal Caroline Somesom Tauk (titular em vara especializada em Propriedade Intelectual no TRF-2 e juíza auxiliar do STF), e do advogado Philippe Bhering, membro do Conselho Diretor da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI). Destaque para a participação internacional do professor Ansgar Ohly, titular da cátedra de Propriedade Intelectual e Direito de Concorrência da Universidade Ludwig-Maximilian, de Munique, coautor do principal comentário publicado à Lei de Proteção ao Segredo de Negócio da Alemanha, que passou a vigorar em  2017.

Gata borralheira“Há a diretiva europeia, a lei alemã e leis em diversos outros países sobre o tema. Essa experiência comparada para nós é muito relevante, sobretudo nesse momento em que assistimos invasões hackers em várias entidades públicas e privadas. É oportuníssimo que a Revista Justiça & Cidadania traga esse tema para o nosso exame. Li na palavra do próprio professor Ohly que o prejuízo anual desse tipo de violação, apenas na Alemanha, pode atingir a casa dos 25 bilhões de euros, de modo que é muito relevante do ponto de vista comercial avaliarmos a necessidade ou não de uma lei sobre esse assunto em nosso País, tendo conhecimento como as experiência de Direito comparado estão sendo aplicadas”, comentou o Ministro Luis Felipe Salomão, em suas considerações iniciais.

Em sua palestra, o professor Ansgar Ohly explicou que, de fato, apesar do enorme volume de prejuízos envolvendo as violações dos segredos comerciais, só muito recentemente os países despertaram para a importância de um melhor tratamento do tema em seus sistemas legais. O que o levou a afirmar que a proteção dos segredos de negócios sempre foi tratada como a “Cinderela” da Propriedade Intelectual: “Sabemos que ela têm grande importância econômica, mas na maioria dos países ainda é tratada apenas como um ponto lateral da legislação sobre propriedade intelectual e concorrência desleal. Existem muitos especialistas em diferentes áreas, mas ninguém está realmente acostumado a falar sobre isso”.

Segundo o professor, a virada se deu – sem baile, sapatinho de cristal ou beijo de príncipe – a partir dos debates que fundamentaram as reformas legislativas nos países acima mencionados. Por meio de novas diretivas e leis, esses países teriam buscado se harmonizar ao art. 39 do “Acordo sobre aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio”, conhecido como Acordo Trips. Antes, na União Europeia, os regimes legais sobre o assunto variavam muito entre os países antes de 2016. Em relação à Alemanha, por exemplo, as provisões legais remontavam ao ano de 1896, ou seja, estavam muito ultrapassadas. “Nós víamos uma grande necessidade da reforma. Isso não veio da Alemanha, mas da Comissão Europeia, que começou em 2011 o trabalho preparatório para a diretiva.

Firewall – Segundo Ansgar Ohly, a utilização do modelo conceitual do Acordo Trips é interessante, porque na medida em que os países tenham instrumentos jurídicos com afinidade conceitual em seus ordenamentos, isso na prática pode ampliar a cooperação internacional, algo indispensável para uma economia globalizada e digital, com intenso fluxo de informações.

O professor explicou que, à semelhança da diretiva europeia, a lei alemã tem duas partes. A primeira estabelece as condições da responsabilidade, define o que é segredo de negócio e quais são os atos de infração. A segunda é dedicada aos procedimentos e sanções. Para a determinação do segredo de negócio, são pré-condições que a informação seja de fato secreta, que tenha valor comercial e que esteja sujeita a condições de controle razoáveis. A razoabilidade é relativa, depende de parâmetros, como o porte da empresa e o valor da informação, podendo as condições de controle envolver cláusulas em contratos, etiquetagem, controle de dispositivos eletrônicos dos funcionários e medidas de proteção técnica como firewalls, senhas e gestão de visitantes.

Não há muita jurisprudência até o momento nas cortes alemãs, dada a novidade do tema, porém o professor Ansgar Ohly destacou como temas passíveis do maior número de controvérsias as cláusulas de confidencialidade nos contratos trabalhistas – na medida em que os empregados nem sempre sabem até que ponto as informações estão sob confidencialidade – e o controle do uso de dispositivos privados – porque muitas vezes o próprio funcionário pode não saber como proteger devidamente as informações em seus dispositivos. “É um grande problema, que tende a crescer muito mais no futuro”, pontuou.

Zona cinzenta – O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva admitiu que no Brasil, apesar da existência de uma legislação que tenta conter a concorrência desleal, de fato, a questão dos segredos de negócios e da guarda de know-how é uma “cinderela adormecida, esperando para ser desperta”. Para o magistrado, a forma de apuração dos danos das violações de segredos de negócios e as medidas adequadas para a cessação das condutas ilegais ainda estão em uma “zona cinzenta”. Para o ministro, o desenvolvimento de uma legislação para proteger os segredos de negócios seria um estímulo aos investimentos em pesquisa e desenvolvimento.

Uma das dificuldades hoje no Brasil para que o titular do segredo empresarial proponha uma ação indenizatória contra aquele que o viola, segundo o magistrado, é a falta de parâmetros para fixar a indenização. Outra dificuldade é a necessária proteção dos terceiros que porventura adquiram de boa fé os segredos comerciais de outrem. Nesse sentido, dentre outros questionamentos, o Ministro Cueva perguntou ao professor Ohly como ele sugere que sejam protegidos os direitos desses terceiros de boa fé. O alemão respondeu que a lei europeia estabelece que os terceiros só serão responsabilizadas caso se comprove que sabiam de antemão se tratar de segredo de negócio, o que configura negligência. Para exemplificar, salientou que muitos casos de violações acontecem na indústria alimentícia, onde mesmo quando não há regras específicas, todos sabem que as receitas dos produtos, mantidas sob forte sigilo pelas empresas, nunca são repassadas “a troco de nada”.

Outros setores que investem de maneira intensa em pesquisa e desenvolvimento e que, justamente por isso, são mais afetados pelas violações de segredos de negócios estão nas áreas de software e algoritmos, na indústria química e farmacêutica e na engenharia automobilística. A proteção do sigilo também é particularmente importante quando as patentes não estão disponíveis, por exemplo, no setor de alimentos, de cosméticos ou de outras formulações. Ansgar Ohly lembrou ainda que não apenas os segredos técnicos podem ser protegidos, mas também os econômicos, como, por exemplo, listas de clientes, planos de negócios e conceitos de marketing. Portanto, todos os setores econômicos podem ser afetados por eventuais violações.

DuPont versus Christopher – A Juíza Federal Caroline Tauk salientou que embora o Brasil não possua mecanismo específico para o tratamento das violações de segredos de negócios, isso não significa ausência de ferramentas legais, pois a Lei de Propriedade Intelectual (LPI/ Lei nº 9.279/1996), no capítulo de concorrência desleal, tem incisos que tratam da questão.

Em sua participação, a magistrada citou célebre caso de espionagem da década de 1960, quando os aviadores Rolfe e Gary Christopher, pai e filho, foram contratados para sobrevoar uma planta industrial da empresa de engenharia química DuPont, em Beaumont, no estado norte-americano do Texas. Por meio de fotografias aéreas, eles revelaram segredos de negócios envolvidos em um processo de fabricação de metanol que acabara de ser desenvolvido pela DuPont. A empresa informou ao juízo que tinha tomado todas medidas possíveis ao nível do solo para resguardar o segredo, mas que não o fizera a partir do alto, porque o custo não seria razoável. Como o tribunal colocou, “exigir que a DuPont colocasse um telhado sobre a planta inacabada para guardar seu segredo representaria uma despesa enorme para evitar nada mais do que um truque de menino de escola”.

Para Caroline Tauk, o caso demonstra o necessário equilíbrio que deve haver entre os interesses da livre concorrência com a liberdade de informação e a proteção da inovação. A espionagem aérea dos Christopher foi considerada um ato desleal justamente porque a DuPont fez o que era razoável para evitar a perda do segredo. Se a empresa tivesse que tomar mais precauções, o alto custo poderia inibir o desenvolvimento da inovação.

AED – Ao conceituar as diferenças entre o segredo de negócio e a proteção das patentes, a juíza lembrou que quem faz o registro da patente tem preferência para explorar aquele produto ou processo durante um prazo determinado, que no Brasil é de 20 anos, mas se compromete a revelar à sociedade como chegou àquela informação. Já no segredo de negócio não há compartilhamento de informações com a sociedade, porque caso contrário os empresários detentores do segredo teriam que usar medidas protetivas que, pelo alto custo, poderiam desestimular a inovação. Nesse sentido, segundo ela, por preservar os investimentos em pesquisa e desenvolvimento, a sociedade também ganha no final das contas com a proteção dos segredos comerciais. 

“A partir da Análise Econômica do Direito se percebe que não patentear, em alguns casos, pode ser vantajoso do ponto de vista econômico. Muitas vezes o custo da patente supera o lucro que o empresário terá com aquele processo ou invenção, sobretudo quando a invenção fica rapidamente obsoleta. Outras vezes, a informação divulgada no registro da patente torna sem valor a invenção, pois permite que a concorrência se utilize dela para rapidamente contornar a patente e gerar uma invenção muito parecida”, explicou a Juíza.

Aperfeiçoamento institucional – Para o advogado Philippe Bhering, o tratamento dado pela legislação brasileira para crimes envolvendo segredos de negócio ainda é tímido, o que faz com que empresas inovadoras sejam frequentemente vítimas de práticas desonestas que têm por finalidade a apropriação e a exploração indevidas de seu know-how. A ausência de instrumentos jurídicos eficazes para proteger tais segredos, segundo ele, desestimula os investimentos em inovação, essenciais ao crescimento econômico do País e à geração de empregos. Para exemplificar, ele citou o caso da Coréia do Sul, que de país agrícola na década de 1960 se transformou em uma das maiores potências industriais do mundo, com investimentos maciços em educação e proteção de dados.

 Para Bhering, a importância da matéria justifica sua melhor normatização no ordenamento jurídico. “É fundamental que a proteção ao segredo de negócio não esteja condicionada à relação de concorrência entre a parte lesada e o infrator. Afinal, aquele que se beneficia do segredo de negócio de terceiro pode não se encontrar em relação de concorrência à época da aquisição indevida. O ato desleal ocorre justamente pelo interesse do infrator em atuar em segmento ainda não explorado. Igualmente necessário é que se estabeleça, com clareza, o âmbito de proteção do segredo de negócio, incluindo-se a sua definição, as condutas ilegais, bem como aquelas consideradas legítimas. Da mesma forma, as tutelas provisórias e definitivas merecem capítulo específico. É indispensável, por exemplo, assegurar à parte lesada a possibilidade de obter a destruição dos produtos que tenham sido fabricados a partir da aquisição e utilização indevidas do segredo de negócio”.

O advogado destacou, porém, que iniciativas recentes como a do Ministério da Economia, de construir a chamada Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual, e a do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, de formular a Estratégia Nacional de Inovação, sinalizam um movimento institucional de aperfeiçoamento do sistema de Propriedade Intelectual brasileiro. “A revisão das normas que regulam o segredo de negócio se insere exatamente nesse contexto”, disse ele, que sintetizou: “As circunstâncias impõem o debate aprofundado do tema no Brasil. É preciso buscar alinhamento com a comunidade internacional na proteção ao segredo de negócio contra a sua aquisição, utilização e divulgação indevidas, de modo a garantir segurança jurídica às empresas, nacionais ou estrangeiras, que investem em inovação, e estimular o desenvolvimento econômico e social do País”.