Revisão da Lei de Drogas aguarda movimentação da Câmara

6 de maio de 2019

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Entrevista com o Ministro do STJ Rogério Schietti, membro da comissão de juristas que propôs mudanças na legislação sobre tráfico e consumo  de drogas

“A aquisição, posse, armazenamento, guarda, transporte, compartilhamento ou uso de drogas ilícitas, para consumo pessoal, em quantidade de até dez doses não constitui crime”. É o que propõe, dentre outras medidas, o anteprojeto entregue em fevereiro ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, pela comissão de juristas formada para discutir atualizações na Lei de Drogas (Lei no 11.343/2006). Ouvimos um dos seus integrantes, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogério Schietti, para conhecer seu prognóstico para a tramitação da proposta no Poder Legislativo. 

Em que pé está a proposta de atualizar a Lei de Drogas?

Ministro Rogério Schietti – Conseguimos terminar o anteprojeto e entregá-lo ao presidente da Câmara dos Deputados, que foi quem nos delegou essa incumbência, e estamos aguardando que se transforme em projeto de lei. Demos publicidade e as propostas estão disponíveis na página do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Acredito que o presidente da Câmara está aguardando o momento mais propício, da mesma forma como fez com os projetos que foram apresentados pelo ministro da Justiça, que ainda vão passar por estudo antes de ser distribuídos a um relator. Acredito que ele esteja pensando em fazer o mesmo com nosso anteprojeto, um tema muito sensível, que é discutir a liberação do uso das drogas.

Está no rol das propostas descriminalizar o consumo de drogas?

Sim. O usuário passa a ficar fora do Sistema de Justiça Criminal e vai receber proteção maior do Sistema de Saúde. Com isso, revogamos o art. 28 da atual Lei de Drogas, até certa dosagem, que são dez doses de qualquer droga. Até esse limite presume-se que seja usuário, não que eventualmente não possa ser responsabilizado. Se ele for encontrado com um grama de cocaína e for comprovado que era tráfico, ele será punido, mas em princípio, até dez doses de qualquer droga, não é responsabilizado criminalmente.

E quanto às diferenças entre tipos de traficantes?

Pegamos aquela figura complexa do art. 33 e dividimos em vários tipos penais, porque ali você tinha desde o que observa a aproximação da polícia para avisar aos comparsas até aquele outro que efetivamente trafica, com a mesma pena. Criamos tipos penais de acordo com a gravidade das condutas, dando penas correspondentes. O traficante continuou com uma pena parecida com a atual, elevamos a pena para o tráfico internacional, que passou a ser a pena mais alta, se não me engano de 10 a 30 anos, e definimos algumas causas de aumento e diminuição de pena. A lei ficou bem minudente quanto à separação de funções para não colocar tudo no mesmo núcleo penal.

Essas distinções não abrem brechas para que grandes traficantes consigam se passar por meros “operários” do tráfico?

Pelo contrário. Pune com maior rigor e deixa sempre ao juiz a liberdade de avaliar o caso concreto, para não permitir que o grande traficante se faça passar por uma mula. Também passamos a prever pena ainda maior para o financiador da droga. Eliminamos aquela figura do tráfico privilegiado, mas criamos tipos penais de acordo com a quantidade de drogas. Aquele que porte até cem doses vai receber uma pena, aquele que transporte de cem a mil doses vai receber outra, e assim por diante, de maneira proporcional.

É uma questão que tem muito a ver com o encarceramento feminino. Muitas mulheres são presas transportando drogas para presídios, coagidas por companheiros…

Também criamos um tipo específico, não só para mulheres, mas para quem ingresse em estabelecimento prisional para fins de comércio de drogas. Passamos a prever uma pena pequena, porque sabemos que o grande sujeito ativo desses crimes é a mulher que leva drogas para o marido. Na prática, o que fizemos foi transformar em tipos penais aquilo que hoje vem por meio das causa de redução de pena.

Com a composição atual do Congresso, nitidamente conservadora, a proposta terá dificuldades para prosperar?

O tema já é muito polêmico em qualquer grupo social. No Congresso Nacional, que reflete o pensamento da população, há setores muito importantes que ainda vêem a questão das drogas como um grande tabu e não admitem qualquer discussão a respeito, mas nós temos que discutir esse assunto. Se o anteprojeto não se transformar em lei da maneira como nós propusemos, porque o palco para as discussões é o Congresso Nacional, a ideia é que ao menos sirva de debate e estímulo para que as pessoas discutam abertamente o tema e não coloquem preconceitos e dogmas de natureza moral, religiosa ou familiar acima da ciência. É um projeto técnico, fruto de um grupo de pessoas que desempenham funções técnicas, que ouviram especialistas, inclusive em duas audiências públicas. O produto do nosso trabalho pode até ser criticado, de acordo com as convicções de cada um, mas é um trabalho técnico, de natureza científica, com lastro na literatura e em tudo o que se produziu até hoje sobre o tema. Analisamos o que se fez em outros países para ver o que era possível de se aproveitar, ou não. O que nós esperamos é que o anteprojeto seja debatido. Temos convicção de que certamente haverá resistências, que são compreensíveis e fazem parte do nosso processo de amadurecimento.   

Faz parte do papel do Judiciário ser contramajoritário…

Até acho possível que, por exemplo, na questão da descriminalização, nós avancemos por meio do Judiciário. Já temos ação em curso no Supremo que pode fazer, no que diz respeito ao art. 28, que o projeto avance por outro caminho. São avanços que vão ocorrendo no Judiciário, no Legislativo e na sociedade. Hoje o que se espera é que o tema seja debatido.

Há pontos de mais fácil assimilação?

Sim, como o uso medicinal das drogas, em especial o canabidiol, que comprovadamente é eficiente no controle de algumas enfermidades motoras e psíquicas. Isso já é hoje uma realidade, existe uma tendência mundial à regulamentação do uso terapêutico e medicinal. O que rende mais polêmica mesmo é o uso recreativo, porque aí é ligado ao prazer, e prazer é algo que nem sempre é bem aceito, ainda mais quando tem consequências.