Reforma Política ou Reforma eleitoral?

5 de setembro de 2005

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Entrevista realizada por Rossana Fisciletti, para Revista Mural julho/2005 OAB/RJ, e por Tiago Salles, da Revista Justiça & Cidadania.

Justiça & Cidadania – A reforma política visa alterar o regime político-eleitoral. Qual seria o principal problema que “alavancou” esta reforma?

Aurélio Wander Bastos – A Reforma Política no Brasil não pode ser discutida independentemente de uma profunda avaliação do pacto federativo e do regime político presidencial, da mesma forma que as reformas da ordem econômica não deveriam se realizar sem um diagnóstico preliminar sobre o modelo econômico. De outra forma, não podemos falar em reforma política, mas em reforma eleitoral assim como não podemos falar em reforma econômica, mas em reajustes cojunturais da economia. Assim, o principal problema político brasileiro é a questão federativa, combinadamente com o modelo do regime político: presidencialista ou parlamentarista, ou numa fórmula mista. O pacto federativo pode ser trabalhado de uma perspectiva geo-econômica, alcançando índices mais altos de descentralização ou de uma perspectiva eleitoral, também procurando alcançar índices mais altos de descentralização política, ampliando a força dos municípios, das meso-regiões e das comunidades sociais, evoluindo para o fortalecimento dos Estados enquanto articulação de suas diferentes unidades políticas descentralizadas.

JC – O senhor defende o voto distrital. A adoção deste sistema, puro ou misto, exigia uma significativa modificação na CF. Não parece que estamos distante desta possibilidade? Qual a diferença do voto distrital em relação ao sistema de voto vigente?

AWB – A tradição republicana brasileira, que sucedeu aos anos de 1930, encaminhou-se decisivamente para fortalecer os estados federados, através da criação, em 1932, do voto proporcional para a eleição de representantes legislativos, fugindo da tradição do Império e da primeira República, que se apoiava no voto distrital ou de círculos eleitorais. A corrupção endógena deste sistema é que viabilizou a aprovação do voto proporcional para as eleições legislativas, depois de uma fracassada experiência de votações corporativas ou profissionais. Por outro lado, a própria tradição republicana fortaleceu o voto majoritário como modelo eleitoral exclusivo para eleição de senadores e Presidente da República, permitindo nos afirmar que a República federativa moderna sobrevive eleitoralmente na forma de um sistema misto de eleições proporcionais e eleições majoritárias. A leitura dos processos eleitorais no Brasil, no entanto, indicam que o sistema proporcional para eleição de deputados federais e representantes legislativos quase nunca esteve sintonizada com os processos de eleições majoritárias para Presidente da República e senadores. Esta desconexão eleitoral cria uma profunda instabilidade institucional que significativamente se amplia à medida que o nosso regime presidencial, como tantos outros, não incentiva mecanismos de autocrítica, sobrevivendo com um forte viés autoritário, assim como o nosso poder legislativo. Também não incentiva qualquer mecanismo de auto-dissolução, ficando tudo mais complexo à medida que os poderes executivo e legislativo cultivam mecanismos rígidos de auto-proteção, evitando sempre que um poder tenha qualquer influência constitutiva ou dissolutiva sobre o outro. Por conseguinte, o nosso modelo político não tem mecanismos institucionais para a superação de crises institucionais e, paradoxalmente, e por isto mesmo, um poder alimenta a crise do outro, até que ocorram soluções ruptivas nunca aconselháveis.

JC – Então as crises políticas são as razões da aparente urgência dessa reforma?

AWB – As reformas políticas no Brasil têm sido reformas que evoluem de crises ruptivas, fazendo com que as nossas reformas eleitorais, sejam, em período autoritário ou democrático, reformas ou adaptações eleitorais casuístas. Nenhum legislador em qualquer das situações apóia reformas que visem diminuir o seu poder ou retirá-lo do poder. Por isso, as reformas eleitorais, impropriamente denominadas reformas políticas, somente saem da gaveta e assumem regime de urgência nos momentos de crise, como se milagrosamente elas sintonizassem a relação de equilíbrio entre os poderes. Daí as propostas de urgência para votações eleitorais e as sujestões de modificação da natura política dos institutos eleitorais: fidelidade partidária, coligação partidária, financiamento público das campanhas, cláusulas de barreira etc. Estas soluções conjunturais e emergenciais, lembremo-nos das tantas promovidas pelo regime autoritário, são sempre casuístas e circunstâncias, não estão comprometidas com a proposta democrática, enquanto proposta de ampliação dos poderes da população eleitora controlar o eleito, o seu representante delegado. Estas legislações têm propósitos continuístas, comprometidos com a reprodução das elites no poder ou com a sustentação de interesses pessoais ou de grupos.

JC – A reforma política seria a solução para estes impasses?

AWB – A superação desse impasse exigirá uma efetiva reforma política e não apenas eleitoral, embora também eleitoral. Não teremos resultados visíveis se qualquer reforma eleitoral se fizesse fora do contexto da redefinição federativa. Não podemos esquecer que o Brasil moderno evoluiu para consolidar, constitucionalmente, os municípios e politicamente as micro e meso regiões. Estes três novos “entes” políticos, na verdade, são as novas bases da federação, deixando de avaliar é claro a questão das regiões metropolitanas e da divisão dos estados, porque dentro deles estão estes novos “entes” de poder.

Neste sentido, o voto de natureza distrital para o legislativo, teria, neste momento, mais alcance representativo, ampliando o pacto de fidelidade entre o eleito e o eleitor, e inclusive de controle do mandato. Nosso estudo de doutorado (Formação Eleitoral do Estado Brasileiro USP. 1987) evoluiu nesta orientação, demonstrando que o indicador mais eficiente para a classificação eleitoral é o voto distrital majoritário.

Todo e qualquer sistema de proporcionalização de resultados eleitorais, exceto para o equilíbrio de representação nacional, desloca o sistema de poder, ou para a esquerda ou para a direita, geralmente para onde pende o poder econômico.

JC – O Senhor entende então que estamos na eminência de um novo pacto federativo com influencias sobre a estrutura eleitoraL?

AWB – Esta leitura demonstra que se a federação politicamente está condicionada por novos “entes” políticos, de direito ou de fato, que precisam adquirir expressão representativa, exatamente porque a representação proporcional estadual ficou corroída pelos longos exercícios de captação de voto.

Por outro lado, o sistema político precisa buscar as formas possíveis de articular os interesses perenes e continuados do Estado com a flexibilidade aberta dos agentes executivos de governo. Neste sentido, precisamos rediscutir a questão da articulação política entre o presidencialismo majoritário e o parlamentarismo distrital majoritário. Esta é a fórmula possível da estabilidade democrática no Brasil. Pode-se questionar é claro o meio para se alcançar este resultado, principalmente porque é muito difícil mudanças endógenas no Estado, muito embora elas sempre evitem mudanças exógenas.

Nos momentos de crise estrutural do poder, o mais conveniente é que o poder se convença que é melhor mudar o poder para que sobreavivam as instituições, do que resistir no poder, evitando desta forma o esclerosamento próprio das constituições rígidas. A flexibilização da rigidez constitucional neste momento, paradoxalmente, pode fortalecer o papel das instituições e ampliar a sua capacidade de autoreformar-se. Este é um caminho que a intelligênsia brasileira facilmente pode reconhecer, muito embora, ou, quem sabe por esta mesma razão, porque as forças ruptivas estão adormecidas com baixíssimo poder de fogo. Esta é a hora da reforma institucional.

JC – O Senhor acredita então que a crise política do governo é uma crise do modelo eleitoral e dos seus reflexos federativos?

AWB – Afirmativas em questões que envolvem relações entre direito (leis)e política (poder) são sempre muito frágeis devido à própria natureza flexível do direito político, sempre aberto a acomodações de sobrevivência. Todavia, não vejo muitas dificuldades analíticas em relacionar a crise do modelo eleitoral com a crise do governo eleito por este mesmo modelo. Não estivesse o modelo eleitoral vigente profundamente desgastado, os mecanismos informais de sobrevivência política (contabilidade informal, fraudes em prestações de contas, influxo de recursos inidentificáveis etc.) não teriam dominado o processo eleitoral de 2002, assim como os mecanismos alternativos não teriam se reproduzido para viabilizar a eficácia, não propriamente do programa do governo eleito, mas do que poderíamos denominar programa de Estado.

Na verdade estamos diante de uma situação simbiotica e paradoxal: os governantes eleitos foram eleitos porque posicionaram-se contra o programa (econômico e financeiro) de Estado, em implementação no Brasil desde 1990/92, com as adaptações cabíveis, no entanto, o sistema eleitoral dominante, com seus diferentes desvios, permitiu que a oposição ao programa de Estado vencesse as eleições utilizando os mecanismos eleitorais formais viciados e os mecanismos informais. É claro que os pactos com os titulares dos mecanismos informais converteu a proposta crítica do governo eleito em execução do programa (econômico) de Estado.

Não cabe aqui discutir a qualidade desse programa, mas cabe afirmar que este programa de Estado exigiu na continuação de sua execução pactos políticos e partidários. O PT, por conseguinte, partido minoritário na Câmara (90 deputados), teve que buscar aliança com outros partidos minoritários que historicamente não tinham qualquer identidade com o seu programa crítico de governo, mas com ele se identificaram à medida que a proposta do Presidente eleito majoritariamente transmudou-se no programa (econômico) de Estado.

JC – Não seria então mais razoável que o PT viesse a se aliar com os patronos históricos do programa de Estado, o PFL e o PSDB?

AWB – Esta pergunta precisa ser desdobrada em três vertentes. Historicamente e eleitoralmente no Brasil após a Constituição de 1946, as maiorias naturais na Câmara dos Deputados nunca foram exatamente constituídas pelo partido majoritário governante. Este desvio de representação precisa ser resolvido e o voto proporcional para a Câmara dos Deputados nunca confere em tendências com o voto majoritário para a Presidência da Republica.

Por isso que já afirmamos que o voto distrital majoritário seria o agente estabilizados da vida política brasileira, em primeiro lugar porque aumenta a proximidade entre o eleito e o eleitor, sem prejuízo de um projeto nacional devido às concentrações urbanas nos centros metropolitanos e em segundo lugar porque ficaria sintonizado a forma de se eleger o Presidente da República com a forma de verificação dos deputados eleitos. Neste senário, o PT teria feito maioria na Câmara ou vice-versa em relação ao PFL ou PSDB.

A segunda vertente nos obriga a reconhecer que não há propriamente um programa de Estado influenciado originariamente por estes dois partidos, mas um projeto de reordenação da economia global que reservou ao Brasil o modelo em execução, onde sinteticamente os juros altos têm um alto poder de controle sobre os investimento, o consumo e a inflação, fortalecendo,todavia, enormemente o poder do sistema bancário.

No fundo o programa (econômico) de Estado é um programa dos bancos e são estes bancos que mais se interessam pela continuidade das reformas iniciadas em 90/92 e ao mesmo tempo também se interessam para manter em funcionamento os seus mecanismos de sustentação.

A economia vai bem porque a política vai mal. Há um sistema informal garantindo a estabilidade econômica. Lamentavelmente, esta é a terceira vertente, o PT não se apercebeu das conseqüências dos pactos eleitorais casuísticos. Foram estes pactos eleitorais que se desdobraram em pactos casuísticos para a captação de votos institucionais. Não vamos discutir aqui a origem remuneratória da captação de votos, mas se discutirmos a quem interessa os votos captados facilmente responderemos que são os titulares do programa (econômico financeiro) de Estado.

JC – Quais as alternativas que nos restam para sobreviver à crise?

AWB – Com certeza sobreviveremos como Estado e como governo. Mas o risco do PT e dos seus partidos aliados (excetuada a flácida conjunção com o PMDB) sucumbirem é muito alta. O Presidente da Republica precisará de uma alternativa partidária, que complica muito a continuação de sua história sem a história do seu próprio partido, mesmo porque o PT é um partido local que nasceu num ambiente histórico superado. A sua única chance é abraçar a bandeira das minorias, mas o curto prazo é fatal num projeto de remodelação.

Para superarmos esta crise não basta que as bruxas sejam cassadas porque a sobrevivência do sistema procriará novas bruxas. O caminho alternativo possível significa exatamente o projeto original do texto constitucional imediatamente anterior a promulgação da Constituição: o presidencialismo parlamentarista. Este todavia, é um ato de grandeza que os deputados eleitos no modelo proporcional não terão, porque seria a cassação deles próprios.

O único caminho possível passa pelo único poder que tem poderes para provocar mudanças políticas restaurando a imagem de sua própria história: o poder executivo. Está nas mãos do Presidente da Republica (ainda) a recuperação e a sobrevivência das instituições nacionais. Para alcançar este objetivo é absolutamente dispensável qualquer ato de força trágica, mas é imprescindível que o Presidente da Republica tenha força para superar os seus próprios limites, provocando ao custo de suas próprias expectativas a restauração das expectativas que antecederam à sua própria eleição, que poderá refletir positivamente na sua própria sobrevivência e na reconstrução eleitoral e política. O Presidente da República precisa ser maior que ele próprio, superar as expectativas de seus próprios direitos para abrir espaços legais da nova legitimidade.