Recompor o Judiciário à imagem de sua credibilidade

5 de fevereiro de 2001

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O desembargador Marcus Faver, novo presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em entrevista à Revista Justiça & Cidadania, discorrendo suas metas prioritárias para os dois anos de seu mandato, assinala que seu objetivo maior se concentra  na recuperação da imagem do Judiciário, a qual reconhece altamente desgastada nos últimos anos. Abordou, dentre diversificantes questões, a proposta da OAB sobre o horário de atendimento ao público no Fôro; a Reforma do Judiciário, a qual, afirmou, primeiro se precisa reformar a mentalidade do Governo; a Lei de Responsabilidade Fiscal, sobre a mesma se declarou favorável, mas em um ponto, na partilha  de recursos orçamentários, acoimou-a de injusta e distanciada da realidade concreta, quando destinou o Ministério Público com 2% da receita para gastos com o pessoal, e apenas 6% para o Judiciário, o qual suporta uma carga de mão-de-obra dez vezes maior do que aquela nobre instituição. Assinalou que pretende implantar todo o sistema de informatização do TJ ligando a Capital ao interior, e instalar fôros regionais no município do Rio de Janeiro, visando a desconcentração do Fôro Central. Ainda, em outro local desta edição, o memorável discurso de posse do novo presidente do TJ do Rio de Janeiro.

JC – O senhor vai cumprir um mandato de 2 anos como presidente do TJ. Quais são os seus planos?

MF – O nosso grande plano neste período de 2 anos será a recuperação da credibilidade do Judiciário que ficou abalada, não por problemas, exatamente, da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, mas, por circunstâncias externas,  por problema da CPI e essa tragédia que foi a atitude desse estranho Nicolau, injustamente chamado de juiz. Na verdade ele nunca foi juiz concursado.  Esses fatores externos provocaram uma queda de credibilidade na Justiça, e a recuperação dessa credibilidade não é apenas por amor próprio da Justiça fluminense, mas, em favor da sociedade. É porque a população, quando se sente injustiçada ou quando perde a credibilidade nas suas instituições, ela tende a ser uma população revoltada e irresignada. Isso no aspecto psicosocial da coletividade é muito ruim para o regime democrático,  quando as pessoas têm a sensação de que as suas instituições não estão funcionando. Então o primeiro passo seria  cuidar de todos os nossos problemas internos para recuperar a credibilidade da população, particularmente da população fluminense com a instituição chamada Poder Judiciário.

JC – O Fórum abre as 11h para o público. A OAB parece querer que esse horário seja antecipado para as 9h. Quais seriam os prós e os contras para se adotar essa medida?

MF – Não, não tem contra. O que se tem é dificuldade de implementação. Por que? Porque os funcionários públicos têm um horário de trabalho e para se fazer uma colocação dessa ordem  precisávamos ter  dois turnos ou funcionários em números duplicados e nós não temos verba suficiente para arcar com essa estrutura.

Aliás, há uma incongruência sobre tal assunto. Se você fizer uma análise mundial, há uma reivindicação dos trabalhadores para se reduzir a jornada de trabalho. Como é que vamos reduzir a jornada de trabalho se  queremos aumentar o atendimento? Essa equação é difícil de ser solucionada.  Precisávamos ter dois turnos de atendimento, mas também precisávamos ter verba para pagar esses funcionários ou pelo menos as horas extras. Por outro lado não podemos em princípio fazer isso, porque há uma lei de responsabilidade fiscal que limita os gastos com pessoal em 6% do orçamento do Estado.

Então, como solucionar este problema? Vamos procurar melhorar, mas é difícil você dar uma solução imediata porque não temos pessoal suficiente para fazer isto.

JC – O senhor acha, então, que essa idéia vai se tornar inviável?

MF – Não, não digo ser de todo inviável, mas tem que ser buscada uma solução com engenho e praticidade. Como? Com certo engenho e com certa arte. Por exemplo:  criarmos um sistema de serviço cartorário altamente informatizado, em que o advogado não precise ir ao Fórum, aí eu posso reduzir o  número de funcionários no atendimento e fazer com que esses funcionários reduzidos, numa parte do dia, venham a trabalhar na outra parte, mas,  nesse caso  precisamos de uma tecnologia de informatização reduzindo o número momentâneo de pessoal numa vara. Isso pode ser feito e é o que nós vamos buscar com tecnologia e com o aperfeiçoamento do funcionamento da informática.

JC – Um dos assuntos mais badalados pela mídia nos últimos tempos: Reforma do Judiciário. Qual a sua opinião?

MF – Precisamos fazer a reforma do judiciário, mas primeiro que tudo precisa–se reformar a mentalidade do Governo porque o que entrava o Judiciário é o volume de ações contra o Governo. Se o Governo render-se a atitude do Judiciário, evitando recursos desnecessários, daria uma certa calmaria no aspecto administrativo e econômico, diminuindo o problema do atraso no Judiciário, porque toda reforma do Judiciário parte de um princípio: o de que a Justiça é lenta, e que as demandas demoram. Demoram por que? Primeiro, por causa do volume de ações contra o governo, pela resistência deste em cumprir as decisões judiciais; pelo diminuto número de juízes, pela dificuldade que se tem em aumentar o pessoal de atendimento.  Há também outros problemas. Mazelas internas, como o despreparo, a falta de atendimento adequado, o atraso na realização das audiências etc,  mas isto não é matéria que necessitaria de uma reforma constitucional ou de alteração da Constituição. Se o Governo simplesmente cumprir as decisões judiciais e não obrigar os procuradores recorrerem naquilo que eles sabem que vão perder, diminuiriam as demandas.

JC – Primeiro foi a Lei da Mordaça, agora se fala na Lei da Ameaça. Qual sua opinião sobre o assunto?

MF – O que está acontecendo, e isso é normal, sempre que  passamos de um regime para outro, existe a chamada Lei do Pêndulo. Nós saímos de um regime totalitário e partimos para um regime democrático, Então, quando  o pêndulo da ditadura se soltou, ele foi aos píncaros do outro lado para a consagração de direitos e garantias individuais. É preciso que o pêndulo fique na posição de equilíbrio. Então, o que é que aconteceu? Deu-se ao Ministério Público uma força enorme constituindo quase que um quarto poder. As vezes eles estão exagerando nas denúncias e levam o Governo a tomar uma outra posição de tentar uma lei para impedir a ação do Ministério Público. Que se ache o equilíbrio e isto é que vai ter que acontecer. Essa Lei da Mordaça, tecnicamente é um exagero provocado pelo outro exagero anterior, mas estou certo, vamos chegar ao equilíbrio.

JC – Lei de Responsabilidade Fiscal. O senhor tem uma posição formada?

MF – Somos francamente favoráveis aos princípios da Lei de Responsabilidade Fiscal, porque ela veio estabelecer, basicamente,  a responsabilidade ética dos administradores. Que responsabilidade é essa? De não se gastar mais do que pode, de se fazer com que a administração seja correta, que ele não seja perdulário, que não esbanje o dinheiro público; que respeite a legislação e a coisa pública. A filosofia da Lei de Responsabilidade Fiscal é um norte na nossa administração. Nós vamos cumprí-la rigorosamente. O que existe de equivocado ao meu ver nesta lei é que ela fez uma repartição injusta e inadequada das receitas. Por exemplo, ela limitou a receita e a despesa do Poder Judiciário a 6% do orçamento do Estado com pessoal. Como é que se pode pretender aumentar uma vara, criar uma nova Comarca sem aumentar o pessoal? O atendimento jurisdicional requer pessoas. Trata-se de outra equação difícil de ser realizada. Como é que eu vou criar o Fôro da Barra da Tijuca, o de Jacarepaguá, o da Leopoldina,  da Ilha do Governador sem colocar ali juiz e serventuários, que, necessariamente, acarretam aumento de despesas de pessoal. Verifica-se assim que esse percentual é que não foi adequado. Teria que ser  um percentual maior, porque o Judiciário trabalha essencialmente como prestador de serviços, e prestação de serviços requer maior mão de obra, diferentemente de outras atividades.

Ela fez, por exemplo, uma divisão ao meu ver injusta ou pelo menos desproporcional. Ao Ministério Público foi concedido 2%,  instituição que não tem um décimo das necessidades de pessoal que tem o Judiciário. Então, se foi concedido  ao Ministério Público 2%,  no mínimo, tinha que ser concedido 12% ao Judiciário, porque a nossa carga de serviço de mão de obra é dez vezes maior do que a do MP.

JC – E o projeto de instalação dos Fôros regionais?

MF – Isso terá prosseguimento. O projeto de instalação dos Fôros regionais é um projeto que está unindo o interesse do Executivo, da administração da cidade do Rio de Janeiro com o interesse da Justiça de levar os seus serviços perto  dos jurisdicionados. Ele objetiva, entre outras coisas,  esvaziar, ou melhor, diminuir o afluxo de gente ao Fórum central. Hoje aqui no Fórum  central cerca de 150 mil pessoas/dia passam nos seus corredores, acarretando afluxo de automóveis, ônibus etc. ao centro da cidade. Na medida que  formos construindo os fôros regionais, levando-os, por exemplo para a Barra da Tijuca — que já está funcionando —, Jacarepaguá, Madureira, Leopoldina, Ilha do Governador, vamos descentralizar o centro e levar a justiça para perto do cidadão. Então trata-se de um projeto que não interessa só ao Judiciário, mas também ao Governo como um todo, do qual o Judiciário é um co-partícipe. Esta é a idéia e vai ter continuidade acelerada.

JC – E o projeto de informatização. Vai ligar a capital ao interior?

MF – Tudo será interligado no prazo de um ano, acho até que em menos, 6 meses, mais ou menos.

JC – O Senhor acha que é grande a descrença da população com a justiça?

MF –Veja, como já disse no início, a população está descrente das instituições de um modo geral. Está descrente dos políticos, do judiciário, das instituições e isso no campo psicológico do cidadão é péssimo para a democracia. A prática democrática deve corresponder a atitudes individuais de cada cidadão, e no momento em que esse cidadão não acredita nas suas instituições,  está comprometendo o próprio regime democrático e dando ensejo ao surgimento dos políticos oportunistas, dos demagogos e dos ditadores. Tudo isso faz parte de um contexto democrático. Então a recuperação da credibilidade da Justiça não diz respeito apenas ao interesse do juiz, mas sim ao sistema democrático. Só assim estaremos realmente caminhando para  um verdadeiro regime democrático, depois que saírmos da fase de transformação, do regime ditatorial para o regime democrático. Agora estamos vivendo uma fase de consolidação. Se a situação econômica está quase que normalizada, se a situação social tende a melhorar, se não há mais necessidade de pacotes econômicos alterando de forma abrupta, de forma acachapante a situação social, temos agora de caminhar para a consolidação da democracia. Para isso é preciso confiar nas instituições, nos seus representantes e isso infelizmente  não está ocorrendo. A população descrê dos políticos, descrê em grande parte do Judiciário.  Vamos recuperar esse quadro em benefício da própria cidadania. Veja que situação estamos vivendo.  Que exemplo ruim está dando para o mundo os EUA.  Um sistema eleitoral deficiente onde um Presidente da República foi eleito com menos votos do que o candidato derrotado, numa inversão de legitimidade do Poder. Não temos, por outro lado,  que copiar modelos estrangeiros para  nosso sistema jurídico. Nós temos lições a dar ao mundo. Assim, por exemplo, em grande parte dos Estados da Federação americana os juízes são eleitos. Isso é péssimo e não temos que copiar. O sistema de eleição de juízes é contraproducente. O candidato pode se transformar num político o que é horrível para a democracia, pois  ele tende a decidir em favor dos eleitores que o elegeram. Estou citando este exemplo americano porque temos o costume de querer puxar o exemplo dos EUA como melhor para nós. Não é. Não temos nada que aprender com eles em matéria de justiça.

Ao encerrar sua entrevista para a revista Justiça e Cidadania, o desembargador Marcus Faver falou do mestre San Tiago Dantas que durante uma aula lá na sua Faculdade Nacional de Direito, disse, certa vez, que a instrução e a formação jurídica são fundamentais para toda a estrutura democrática.