Quixote e Sancho

9 de novembro de 2021

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As figuras imortais idealizadas por Miguel de Cervantes, Dom Quixote e Sancho Pança, representam o idealismo da luta pela Justiça. À primeira vista, para os incautos, a dupla é formada por um guerreiro e seu ajudante, mas quem conhece a história sabe que o audaz aventureiro não sobreviveria sem a lealdade do fiel escudeiro. Sem ele, teria morrido na primeira batalha.

Enquanto Quixote se esmerou na defesa dos injustiçados, Sancho Pança deixou-nos uma magnífica demonstração de fidelidade, pois apesar de censurar as atitudes tresloucadas de seu amo, recusou-se a abandoná-lo, inclusive quando a coroa de um reino lhe foi oferecida em troca: “É impossível que nenhuma outra circunstância nos separe, a não ser a pá e a enxada do coveiro”.

Quando decidimos criar a Revista Justiça & Cidadania, Orpheu Salles e eu estávamos determinados a nos engajar numa cruzada em defesa da Justiça brasileira, a despeito dos riscos, com devoção, sacrifício, coragem e paixão. Ele trazia como armas sua palavra e sua pena, sempre afiadas, e como armadura somente os mesmos nobres princípios que moviam o cavaleiro andante. Busquei agregar a visão de negócios, para que pudéssemos prosperar e seguir adiante.

Era um momento conturbado para o País. Toda a estrutura da sociedade e do Estado estava sendo questionada e o Judiciário não era uma exceção. Havia uma CPI e a tese dominante era de que o Poder Judiciário tinha se transformado em uma “caixa preta”, cheia de mistérios, por força dos longos anos de ditadura militar. Vislumbramos a necessidade de ações efetivas de comunicação para demonstrar o quanto essa percepção não correspondia à realidade. 

Fomos adiante, falando exaustivamente do Judiciário – não por acaso, apelidado de Papagaio, Orpheu nunca se cansava de falar sobre o que considerava justo – como fonte de equilíbrio entre os Poderes, sobre o seu papel constitucional, sobre a indispensável independência e sobre a necessidade de reformas, posicionando-nos contra qualquer tentativa de intimidação do Judiciário. Foram atitudes que marcaram os 21 anos da Revista, período no qual conseguimos nos tornar uma referência de prestígio entre os integrantes do Poder Judiciário, por força de nossa credibilidade, algo que muito nos orgulha. 

Foi uma grande parceria, estávamos sempre juntos e o acompanhei em muitas viagens. Porém, na grande travessia rumo ao desconhecido, Orpheu decidiu ir primeiro. Sinto muito a sua falta, de conversar sobre a lida diária e dos novos desafios que temos adiante, mas conforta a certeza de que ele estaria feliz e satisfeito com as condições em que chegamos a esse ponto da jornada.

Cabe registrar que para que a cruzada não se transformasse numa verdadeira “quixotada”, por sorte sempre pudemos contar com nosso próprio “Sancho”, na retaguarda de todas as batalhas que travamos. Hoje, após 22 anos de incontáveis “combates”, só continuamos de pé graças à incansável dedicação, lucidez e bom senso de minha sócia, a Diretora de Redação da Revista e Vice-Presidente do Instituto Justiça e Cidadania, a Dra. Erika Branco. 

Corajosa como uma verdadeira Quixote, leal e companheira como a melhor versão de Sancho, em todos esses anos ela esteve sempre pronta e disposta a nos proteger, aconselhar e, por vezes, nos resgatar.

Que venham os próximos moinhos de vento!

Leia nesta edição – Após um intervalo forçado pela pandemia, pudemos enfim retomar, com todos os cuidados necessários, a tradição de entregar o Troféu Dom Quixote e o Troféu Sancho Pança. Leia nesse número a cobertura completa da 30ª edição da premiação, que desta vez também homenageou o Centenário de Orpheu Salles. 

Na seção literária Prateleira, saiba mais sobre a autobiografia “O eterno Quixote”, na qual Orpheu Salles conta algumas das muitas histórias que viveu na Presidência da República com Getúlio Vargas; na Vice-Presidência com João Goulart; na Campanha da Legalidade com Leonel Brizola; na resistência ao golpe militar à frente da Rádio Marconi; nos momentos difíceis que enfrentou à bordo do navio-prisão Raul Soares e nas várias outras ocasiões em que foi detido pela repressão; no Instituto Nacional de Prevenção de Acidentes, que fundou na volta do exílio; no seu tempo de vereança em Maricá, quando elaborou a Lei Orgânica do Município; nos negócios que tentou estabelecer na China; e, finalmente, à frente da Revista Justiça & Cidadania.     

Leia ainda os artigos de renomados juristas e magistrados sobre temas relevantes de diversas áreas do Direito e da cidadania. 

Boa leitura!