Quixote e o ensino jurídico

5 de fevereiro de 2005

Aurélio Wander Bastos Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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Pensando em escrever sobre o professor Álvaro Iglésias, pensei em Dom Quixote, nesta coincidência que nos coloca na reta comemorativa dos Quatrocentos Anos da Primeira Edição (1605) da obra Clássica da Literatura Ocidental, de Miguel de Cervantes. Todavia, falar do professor Álvaro Iglesias seria falar de Dom Quixote, falar da obra dentro da vida, ou falar do Presidente Álvaro Iglesias, seria falar de Cervantes, da vida dentro da obra.

Na verdade, Quixote nasceu para mim, diria Cervantes, assim como Cervantes nasceu para Quixote.

Esta unidade no espírito é que permitiu ao próprio Quixote observar em episódio de suas andanças, quando se depara com camponeses que levavam com eles entalhes em baixo relevo destinados a decoração de um altar, imagens de São Jorge, São Martinho, São Diego Matamoros e São Paulo. Álvaro Iglesias diz: “Eles (os Santos), combateram em guerras de Deus, ao passo que eu, pecador, combati em guerras da humanidade, conquistaram o céu através das armas, pois o céu não rejeita a força e a violência, quanto a mim, até o presente. Combati com perseverança, com amor e com destemor, conquistei meus amigos nesta luta de 30 anos à frente do Colégio Brasileiro de Faculdades de Direito, conquistei Carmem, minha mulher, e meus filhos que estiveram ao meu lado para ajudar a reunir a todos nessa terra, nesta utopia de sonhos pelo ensino jurídico. Se fosse possível curar-se da sede de glória, da notoriedade mundana, voltar-me-ia para reconhecer que obtive outra glória: a glória de ter conseguido construir a paz da convivência como o equilíbrio do movimento.”

Cervantes quando lutou em Lepanto, foi mutilado, capturado não foi resgatado pela Casa Real, mas pelos Frades Trinitários que lhe permitiram catalogar a obra Dom Quixote (Colégio Brasileiro de Faculdades de Direito), esta obra de quatrocentos anos, que é alma de um povo (dos professores de Direito), de uma civilização (da cultura jurídica), esta obra de resistência do ensino jurídico como ensino dos pressupostos da vida.

Na Caverna de Montezinos um pastor chamou a atenção de Quixote: “Estás fora da realidade, vá para casa, pare de errar por aí”; no que respondeu: “Acertei contas relativas a ofensas e insultos, corrigi injustiças, puni arrogâncias e enfrentei gigantes, precisa-se ter valor para vingar as ofensas e castigar os ofensores, chamem-me para vingar injúrias mas, minhas injúrias, resolvo eu por minha conta. Eu amo a luta por grandes causas, por justas razões e não por mesquinhas razões, uma paz é melhor que a mais gloriosa guerra.”

Certa ocasião conversando com Álvaro Iglesias, referi-me a Miguel Unamuno, o grande analista de Dom Quixote, que ouvira, num confronto com um grande General, que simbolizava o culto da morte na Espanha, as seguintes palavras: “Viva a morte, morte à inteligência!”

O nosso homenageado me observou com seu semblante aristotélico, de quem encontrara a verdade: morte à morte, para o encontro com o ideal que sobrevive a nós mesmos. Estávamos vivendo os primeiros dilemas dos vinte anos de luta pela restauração humanista no ensino jurídico e pela imprescindível abertura para a formação metodológica como pressuposto do raciocínio. Sem perder a continuidade, voltemos ao texto de Unamuno intitulado Nuestro Señor Dom Quixote: “Quixote é o fundador da verdadeira religião espanhola, o quixotismo, o fundador do verdadeiro catolicismo espanhol. Quixote é a alma de Cervantes.”

A vontade quixotesca de sobreviver é a religião de Unamuno, a religião espanhola, deste Álvaro Iglesias que veio das espanhas, por isto, há tantos Quixotes quantos leitores, tantos professores com Quixote na alma, quanto alunos com a alma de Quixote, neste parvo mundo que se no hay brujas, las brujas vuelan. Quixote joga duro com a realidade, o Estado e a Igreja sem estado: “Sei quem sou e em quem posso me tornar, se assim o decidir”. Este é o homem verdadeiro, na frase de William Blake sobre Quixote, quando afirmara ao Conde que lhe confrontava: “És um analfabeto em matéria de aventura, os grandes cavaleiros se contentam com as mesmas armas.”

Unamuno, ainda Unamuno, observa: “Grande era a loucura de Quixote, porque a raíz que o germinou era grande, o desejo insaciável de sobreviver, fonte das mais fortes ilusões, bem como dos atos mais heróicos.” Os mais notáveis benfeitores da pátria e da humanidade são os que sonham com a posteridade, como Álvaro Iglesias sonhou este caminho de solidariedade na criação.

Ainda Unamuno, observa: “ imortalidade é a benção de deixar a própria marca no tempo e no espaço. Cervantes triunfou como Quixote, o que nos permite concluir que Quixote triunfa na alma de Álvaro Iglesias. Se de Cervantes podemos dizer que sabia escrever e Quixote atuar, de Álvaro podemos dizer que sabe fazer e pensar para formar a mesma unidade: o Colégio Brasileiro de Faculdades de Direito.