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Quando Direito e Literatura se completam

28 de maio de 2015

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Em 2005 surgiu o embrião de um programa de TV cuja ideia consistia em trazer convidados do mundo jurídico e acadêmico para debater clássicas obras literárias e refletir sobre as práticas e teorias jurídicas. Transcorrida uma década, o talk show Direito & Literatura, transmitido semanalmente pela TV Justiça, segue difundindo os conceitos do direito e faz importante contribuição não apenas às leis, mas também às letras.

Produzido pelo coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade Meridional (IMED/RS), André Karam Trindade, auxiliado pelo membro fundador e secretário-executivo da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL), Luís Rosenfield, e pelo escritor Dieter Axt, o programa tem como âncora, desde o início, Lenio Luiz Streck, escritor, jurista e professor dos cursos de pós-graduação em direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Conhecido principalmente por seus trabalhos voltados à filosofia do direito e à hermenêutica jurídica, o gaúcho de 59 anos de idade explica que o critério para escolher os livros abordados em cada edição parte do pressuposto de que esta ou aquela obra literária seja capaz de colocar em debate questões fundamentais da cultura jurídica, como: “Para quê serve o direito? Qual é a trajetória dos direitos humanos desde a antiguidade? Em que momento o direito supera a vingança? Quando o direito adquire certo grau de autonomia? Como a literatura pode ajudar a explicar o fenômeno do positivismo jurídico? 

Entre tantos e tantos debates levados ao ar nos últimos dez anos, uma das obras que melhor atendeu à proposta do talk show, na opinião de Streck, foi “Medida por Medida”, do dramaturgo inglês William Shakespeare, apresentada quando o programa ainda era transmitido pela TV Educativa. “Da nova fase, penso que o programa sobre ‘As Palavras e as Coisas’ [do filósofo francês Michel Foucault] me deu muitas alegrias.”

Obra praticamente obrigatória em qualquer discussão que envolva literatura e direito, o clássico “Dom Quixote de La Mancha”, do espanhol Miguel de Cervantes, também foi tema de uma das edições. Dela, Streck ressalta a “impagável ruptura do autor com o universalismo essencialista da pré-modernidade”. O jurista destaca uma de suas passagens prediletas, o conto “Um Curioso Impertinente”, da primeira parte do livro. “Gosto especialmente dessa história, em que o personagem Anselmo é castigado por sua tentativa de buscar a essência da fidelidade.” Ainda sobre o expoente máximo da literatura espanhola, ele diz apreciar a modernidade – no sentido filosófico da palavra – e a contemporaneidade, no sentido de sua atualidade. Perguntado sobre o que faria Dom Quixote se confrontado nos dias de hoje com os “moinhos de vento” do Direito atual, ele é conciso e cortante. “O jurista, por incrível que pareça, não sabe que não sabe. E se espatifaria contra o primeiro moinho.”

Tal a relevância do texto para o direito, que Dom Quixote foi obra mencionada durante a participação de Streck nas Jornadas de Filosofia de Direito, em Málaga, a 17 de abril deste ano, em Madri. No painel “Las transformaciones del Derecho: clasicismo y contemporaneidade”, ele fez uma retrospectiva do direito, desde a pré-modernidade, encerrando com o tema direito e literatura.

Repensar a cultura jurídica

O produtor André Karam Trindade era ainda estudante de Direito quando se uniu aos colegas Roberta Gubert e Alfredo Copetti para criar o programa Direito & Literatura. Os jovens foram inspirados pelo professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Dino Del Pino, que tem extenso trabalho no campo das relações entre direito e literatura.

Lenio Streck comenta que o talk show teve seu início no Instituto de Hermenêutica Jurídica, passando posteriormente para a TV Educativa. Quando o ministro Gilmar Mendes assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2008, foi-lhes aberto espaço da TV Justiça. Hoje, o programa também pode ser visto na TV Unisinos/Canal Futura, em reprises que vão ao ar duas vezes por semana.

A escolha de Streck para apresentar o talk show tem razão de ser em muito por seus conhecimentos. Desde o mestrado, ele tem demonstrado profunda ligação com a filosofia do direito. “No início, eu era ligado às teorias analíticas da linguagem. Fui adepto da semiologia jurídica criada pelo professor Luís Alberto Warat. Posteriormente, ‘ingressei’ na hermenêutica filosófica de Gadamer [Hans-Georg Gadamer, filósofo alemão], para, mais tarde, criar a minha própria teoria, que denomino Crítica Hermenêutica do Direito.”

O jurista também se distinguiu por sua verdadeira paixão pela literatura. Seu primeiro contato com o mundo das letras se deu ainda bem jovem, por meio das crônicas do jornal “Correio do Povo”, que o pai assinava. Desse ponto de partida, ele navegou pelas satíricas páginas do clássico “As Viagens de Gulliver”, do irlandês Jonathan Swift. “Nesse livro, descobre-se um forte traço de modernidade jurídica. A instituição da lei pelo Rei determinando o modo como os liliputeanos deveriam quebrar os ovos é maravilhosa. Ali está, antes de Kelsen [Hans Kelsen, jurista e filósofo austríaco], o princípio da imputação. Isso também é bem hobbesiano [Thomas Hobbes, teórico e filósofo inglês]. O Rei estabelece a imputação legal porque, simplesmente, tem poder para isso. Antes do último moderno, Nietzsche [Friedrich Nietzsche, filósofo e crítico cultural alemão], Swift já sabe o que é a ‘vontade de poder’. Bingo!”

Ainda esmiuçando as aventuras gulliverianas, Streck destaca passagem do livro em que Jonathan Swift critica o caráter fetichista da lei, “porque há uma guerra acerca de que lado os ovos devem ser quebrados. E sabe o que dizia a Constituição do Reino? Que todos os liliputeanos deveriam quebrar o ovo pelo lado certo. Genial, não?”. Em sua opinião, para entender conceitos que até hoje não assimilaram, alguns juristas deveriam ler, ao mesmo tempo, “Medida por Medida”, “Dom Quixote” e “Gulliver”. “Depois fariam um grande seminário e sairiam de lá outras pessoas”, comenta.

Porém, se fosse colocar um único livro no topo da lista de influências em sua formação pessoal e profissional, Streck escolhia “O Nome da Rosa”, do italiano Umberto Eco. “Estudei-a durante um semestre no meu mestrado, nos anos 1980. Cito-a a todo momento. É um romance semiológico, que mostra a importância da ruptura produzida pelo nominalismo de Guilherme de Ockham [filósofo e teólogo inglês] com o essencialismo aristotélico-tomista.” Contudo, o jurista não se furta de acrescentar duas tragédias gregas à Prateleira. A primeira é “Oresteia”, do dramaturgo Ésquilo. “Ali está o primeiro julgamento da história e, para mim, a primeira manifestação da autonomia do direito.” A segunda é Antígona, de Sófocles. “Essa obra é importante, não pela leitura tradicional, mas para ajudar a explicar o individualismo à brasileira. Falo da interpretação de Sérgio Buarque de Hollanda, que mostra que certo estava Creonte, que defendia o direito público, da polis, enquanto Antígona defendia um interesse meramente privado.”

Além do interesse pela literatura de ficção, Streck se dedica à produção editorial em sua área. Ele é um dos coordenadores do celebrado livro “Comentários à Constituição do Brasil” (Saraiva/Almedina, 2013), escrito em parceria com José Joaquim Gomes Canotilho, Ingo Wolfgang Sarlet, Léo Ferreira Leoncy e Gilmar Mendes, obra que conquistou o segundo lugar na categoria Direito do Prêmio Jabuti 2014. De acordo com o jurista, a importância do livro está no fato de ser o primeiro a “enfrentar” a Constituição, comentando-a item por item. Ele também é autor da obra “Compreender Direito – De como o senso comum pode nos enganar” (Editora Revista dos Tribunais, 2014), que alcançou a sexta colocação na mesma edição da premiação. “Esse resultado foi importante para mim, pois discutir o senso comum está sempre próximo à literatura. Veja-se, por exemplo, como Machado de Assis faz isso com os contos ‘Ideias do Canário’ e ‘Teoria do Medalhão’”, conclui.

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