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Prorrogação de mandato por vias transversas

20 de junho de 2018

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Em anos que já se foram, em Oeiras, primeira Capital do Piauí, ainda criança, uma irresistível vontade nos fez sonhar com a Magistratura. Explicar não é tarefa fácil, mas sonhar é preciso, como já o disse alguém e podemos ousar, “no pecado da audácia”. Todavia, entre a vontade e a sua concretização, há distância abissal. Precisa ela de forte e direcionada impulsão, senão murcha e fenece.

A custo de muito esforço pessoal, chegamos, por concurso público, à Polícia Civil do Piauí, de que nos consideramos um produto espiritual e formamo-nos em direito. A ideia, pois, de sermos magistrado, lentamente, se corporificava e passo importante para o atingimento da meta optada, havia sido dado.

Como policial, galgamos todos os postos dessa espinhosa carreira de que nos afastamos, como delegado de classe especial, bastante conhecido, com um certo prestígio e indiscutível popularidade, para assumirmos, pleno de humildade e singeleza, o cargo de Juiz de Direito da inóspita, distante e esquecida Parnaguá, no extremo sul do Piauí.

Ali começou, ainda com passos trôpegos, a nossa peregrinação, por ínvias, diversas e difíceis comarcas, com as suas peculiaridades, com os seus costumes e com as suas tradições. Palmeamos todas as entrâncias, degrau por degrau, da primeira a última, sem tergiversar, sem pular por cima, sem voos mais altos.

Em nossa longa, extenuante, desafiadora, mas prazerosa jornada na Justiça do Piauí, exercemos os mais diferentes deveres, atuando, por mais de 40 anos, como sabem os nossos coestaduanos, com a lisura, a independência e a coragem moral, que nunca nos faltaram.

Chegamos ao mais que centenário Tribunal de Justiça do nosso Estado, em 2002, levado que fomos pelas mãos insondáveis e abençoadas do destino, quebrando tabu e sem compromisso com o acaso, porque há 26 anos havíamos começado a nossa caminhada, rumo ao lugar em que hoje nos encontramos. Foram quase 15 mil dias e noites de trabalho, alegrias, tristezas, dificuldades, provações, derrotas e vitórias, que tanto fortaleceram o nosso espírito, e a crença em que tudo vale a pena, quando se faz da vida uma busca incessante dos ideais superiores, ou como disse o poeta, “se a alma não é pequena”.

A vida de cada um de nós, como sabemos, é sempre um ato contínuo de tomada de decisões, em relação às nossas atividades pessoais e profissionais, aos que nos cercam e conosco interagem, e ao meio em que vivemos. No entanto, a experiência, que a prática nos enseja, não nos dá a necessária garantia da serenidade adquirida, com atos repetidos, como se nós pudéssemos, com o tempo, nos tornar imunes a qualquer emoção forte, mesmo àquelas com que con­vivemos, periodicamente, no nosso dia a dia.

Isso explica por que, diante de situações difíceis, complexas e de curial importância para a nossa vida e atividade profissional, como a que ocorreu na histórica manhã de 16 de outubro de 2017, no nosso egrégio Tribunal quando, perplexos e constrangidos, assistimos à aprovação, por esmagadora maioria, da inconcebível e inconstitucional prorrogação do mandato dos atuais dirigentes da Justiça do Piauí, tivemos que experimentar fortíssimas e incontroláveis emoções. É que cada situação é uma situação, cada caso é um caso, e para usar das ponderações do pré­-socrático Heráclito, as circunstâncias, como a nossa vida, sempre mudam, à semelhança do curso das águas dos rios. Heráclito afirmava, com inteira razão, que ninguém toma banho em um rio corrente, por mais de uma vez. É que o rio continua ali, mas as águas do primeiro banho, já não são as mesmas.

Os anos que já passamos na Magistratura e, especialmente, no Tribunal de Justiça do Piauí, nos ensinaram essa verdade crucial: toda decisão entregue ao nosso arbítrio nos obriga a mergulhar no complexo mundo da nossa consciência, exigindo aquele sacrifício, cujo cálice amargo, a exemplo do de Cristo, gostaríamos que não estivesse perto de nós.

O ato de fazermos escolha de importância vital para um dos poderes emblemáticos do Estado, como o da Justiça, torna-se o encargo mais tormentoso, que podemos atribuir a qualquer cidadão, detentor do munus de decidir sobre a vida do seu semelhante.

Pensando assim e por não admitirmos o ato normativo, que prorrogou os aludidos mandatos, no nosso Tribunal de Justiça, por considerarmos afrontoso, data vênia, à Lei Orgânica da Magistratura, recepcionada pela Carta da República, batemos às portas do Conselho Nacional de Justiça, através de Procedimento de Controle Administrativo, questionando a sua constitucionalidade. Ali obtivemos medida liminar, posteriormente ratificada, pela unanimidade dos seus doutos integrantes, que rechaçaram a pretendida prorrogação de mandato do Presidente, do Vice-Presidente e do Corregedor-Geral da Justiça daquele Tribunal. Fizemo-lo, não por interesse pessoal, mas institucional, defendendo, como cidadão e magistrado calejado, a Constituição Coragem de Ulisses Guimarães, que tutela direitos fundamentais relacionados com a tripartite e legítima função estatal. Apoiamo-nos na teoria de Peter Häbeler, da interpretação construtiva, realizada por todos os atores sociais, inspirado no ­seguinte ensinamento: “No processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco ‘numerus clausus’ de intérpretes da Constituição”.

Em verdade, quando nos dispusemos a enfrentar tão desgastante luta, desejávamos, apenas, garantir o direito de todos os magistrados, de primeiro e de segundo graus, de participarem, ainda que no futuro, do universo dos elegíveis aos cargos de direção do Tribunal, como previsto, expressamente, em nossa Carta Magna e evitarmos que tão danoso casuísmo se transformasse num precedente perigoso à estabilidade, à segurança e à harmonia de todos os tribunais deste país de muitas leis e de pouca Justiça.

Mas mesmo proibindo, como frisado, a pretendida e supracitada prorrogação de mandato, o Conselho ­Nacional de Justiça, incompreensivelmente, com todo o respeito que lhe devotamos, por oito votos a cinco, vencido o Conselheiro Márcio Schiefler Fontes, Relator do PCA, a Presidente do Supremo Tribunal Federal, eminente Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, e os conselheiros Francisco Luciano de Azevedo Frota, Maria Teresa Uille Gomes e Maria Iracema Martins do Vale, admitiu eleição para um mandato excepcional de 7 meses, colocando no universo dos elegíveis, contra texto expresso da Lei Complementar no 35/79, todos os seus atuais integrantes, ou seja, possibilitando a reeleição e a prorrogação de mandato, por vias transversas.

Estamos, assim, diante de prorrogação de mandato e de reeleição, com outro nome, fugindo, inclusive, ao objeto do pedido, depois da rejeição da malfadada pretensão inicial. Tal prorrogação, com o nome de “mandato-tampão”, no nosso sentir, permissa venia, impede a alternância do poder e prejudica o interesse de todos aqueles magistrados, que possuem competência e legitimidade para ocuparem algum cargo de direção, no hoje ou no amanhã. E o que é mais grave, retira a legitimidade da própria função jurisdicional do Tribunal de Justiça, que implementou, com todas as vênias, essa inaceitável medida.

Alterar o nome da coisa, como o fizeram, não altera a própria coisa. Essa é questão de filosofia da linguagem e da própria tradição lógica. Uma coisa é ou não é sob um determinado aspecto, não havendo uma terceira possibilidade lógica, como adverte, Rosmar Rodrigues Alencar, para quem “a questão remete à função simbólica da linguagem e ao problema da manipulação discursiva, isto é, à utilização dos recursos linguísticos para encobrir o poder que estar sendo exercido sob a aparência de direito”.

É como pensamos, respeitando as opiniões contrárias.

Por fim, ainda impactados com a supracitada e inesperada decisão e com a efervescência mental inteiramente diferente de todas as vezes em que podemos presenciar e agir com o empenho da responsabilidade moral, intelectual e profissional, que de nós a história está a exigir, em momento tão atribulado e desafiador, em que o Conselho Nacional de Justiça vem sendo chamado ao estabelecimento de limites e de regras imprescindíveis à correção do Judiciário, como um todo, só nos resta externar a nossa mais veemente insatisfação.