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Programa de Cuidado Integral do Paciente Psiquiátrico

2 de junho de 2019

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Conforme se entende, medida de segurança é toda a reação criminal, detentiva ou não detentiva, que se liga à prática, pelo agente, de fato ilícito típico, tem como pressuposto e princípio de medida a sua periculosidade e visa finalidades de defesa social ligadas à prevenção especial, seja sob a forma de segurança, seja sob a forma de ressocialização.

Segundo Cezar Roberto Bittencourt, os requisitos para a aplicação da medida de segurança são: a prática de fato típico punível, a ausência de imputabilidade plena e a periculosidade do agente. A periculosidade traduz-se em juízo de probabilidade do agente voltar a delinquir, baseado na conduta antissocial e anomalia psíquica do indivíduo.

As medidas de segurança são disciplinadas no Código Penal, em seus artigos 97 e 98, que estabelecem duas modalidades, internação e tratamento ambulatorial, vinculam a espécie de medida com o tipo de pena, exigem a prova de eventual cessação da periculosidade para a extinção da medida e estabelecem prazo
mínimo de internação.

Quando comecei atuar como juiz da Vara de Execuções Penais (VEP) de Teresina, em junho de 2012, junto com o Promotor de Justiça Elói Pereira de Sousa Júnior, realizamos a primeira visita mensal de inspeção aos estabelecimentos prisionais da área de jurisdição da VEP. Nessa visita, ainda em junho, deparamo-nos com situação extremamente grave, pois, adentrando o então Hospital Penitenciário, prédio com poucos anos de construção e, aparentemente, em boas condições, constatamos que o mesmo não era credenciado à Rede Pública como estabelecimento de saúde, portanto, não recebia verba do SUS e, muito menos, medicamentos. Tinha apenas um médico psiquiatra e um médico clínico geral em seu quadro de servidores, os quais trabalhavam apenas um dia por semana, em um só turno, não havendo enfermeiros, nutricionistas, equipe de plantão, etc.

Havia ainda no dito hospital pessoas recolhidas há muitos anos sem a necessidade de manutenção da internação e, algumas, em local do prédio destituído de sanitário, fazendo os internos as suas necessidades fisiológicas em um balde, cujo conteúdo era jogado fora do prédio, por cima do muro.

Saindo do local, fomos ao prédio anexo, a Colônia Agrícola Major Cesar Oliveira, onde, a pedido dos presos, ingressamos nos pavilhões, quando nos foi mostrado que um deles estava ocupado por 34 pessoas com transtorno mental, local imundo e que exalava odores extremamente desagradáveis.

Investigando, constatamos que nenhuma das pessoas com transtorno mental da Colônia Agrícola tinha processo de execução na VEP.

Feitas as devidas comunicações, o Promotor ingressou na VEP com incidente coletivo de excesso de execução, com pedido de liminar, que deferi, determinando a interdição do Hospital Penitenciário e da Colônia Agrícola para o recebimento de mais pacientes e as providências para a liberação de todos os homens com sofrimento mental da Colônia, o que se fez, contatados os juízos respectivos.

Não se obtendo acordo ou solução administrativa e havendo no Piauí um hospital psiquiátrico, público, o feito foi julgado, determinando que o estado ou se­parasse uma ala deste hospital para as pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, ou estruturasse o hospital penitenciário, para que desse a seus internos os cuidados devidos.

O estado recorreu e, enquanto a apelação não era julgada, mudou a direção da Secretaria Estadual de Saúde e do hospital público, que, anteriormente, eram totalmente contrárias ao recebimento das pessoas do sistema prisional. Observando a possibilidade de acordo, sugeri ao relator do processo no Tribunal de Justiça, o Desembargador Edvaldo Moura, a realização de audiência pública de tentativa de conciliação, suges­tão aceita graças à sensibilidade do magistrado de segundo grau. Segundo o acordo que foi formalizado, deve-se aplicar a lei antimanicomial a quem, sofrendo de transtorno mental, acha-se em conflito com a lei.

Eis o Programa de Cuidado Integral do Paciente Psiquiátrico (PCIPP). Este se baseia no entendimento jurídico de que a Lei no 10.216/2001 revogou o Código Penal e a Lei de Execução Penal no que diz respeito às medidas de segurança. Tal revogação decorre do disposto no art. 1o da lei antimanicomial, do teor que segue:

Art. 1o Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.

Destarte, o princípio básico do PCIPP é o seguinte: deve ser dado às pessoas com transtorno mental em conflito com a lei o tratamento necessário e durante o tempo necessário.

Assim, não interessa o crime cometido, mas o tratamento recomendado pelos médicos psiquiatras, não havendo tempo mínimo de internação e nem relação entre a pena, de reclusão ou detenção, com a medida a ser estabelecida, seja ela internação ou tratamento ambulatorial.

Também não é considerada a figura da periculosidade, muito menos analisada sua cessação como condição para a desinternação. A qualquer tempo, sendo informada a possibilidade de alta do paciente, que é assim considerado e nominado, é determinada a realização de exame, com a elaboração de laudo simplificado, em que consta a pergunta específica sobre a possibilidade, ou não, de desinternação.

Concluindo os peritos pela recomendação da desinternação, os autos seguem ao parecer ministerial e o feito é julgado, sendo determinada a desinternação do paciente, que é encaminhado a tratamento ambulatorial e mandada a realização de diligências, para se buscar localizar parentes do paciente aptos a recebê-lo. Encontrando, o que acontece na maioria dos casos, é designada audiência em que, presentes paciente e seus parentes, é explicada a situação, dadas as recomendações necessárias e o paciente entregue a seus familiares.

Decorrido o prazo de um ano da desinternação, a medida de segurança é extinta e o paciente é encaminhado para tratamento na Rede Pública de Saúde.

Há apenas um caso de exceção à regra do PCIPP, que ocorre em medida de segurança em tramitação na VEP de Teresina, em que o paciente, julgado em mais de um processo criminal, sendo dois por homicídio e considerado inimputável, tem os diagnósticos de esquizofrenia paranóide e de sociopatia, não podendo ficar internado no Hospital Psiquiátrico Areolino de Abreu.

O PCIPP acha-se normatizado no Piauí pelo Provimento 9/2016, da Corregedoria Geral da Justiça, da lavra do então corregedor, Desembargador Sebastião Ribeiro Martins, e foi considerado pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Departamento Penitenciário Nacional como modelo para o Brasil.

Notas_____________________

1 DIAS apud LEVORIN, Marco Pólo, 2003.

2 BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito Penal Vol. I – Parte Geral, São Paulo, Saraiva, 2003.