Edição

Prisão Cautelar

5 de fevereiro de 2005

Compartilhe:

Sustenta a escola filosófica subjetivista que há uma tendência universal a conduzir todo juízo a uma apreciação individual: o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o bem e o mal dependem do ponto de vista de cada um. Como disse o magistral Pirandello, “A cada um a sua verdade”. Mas como conciliar o Direito e a Justiça com a Subjetividade?

Segundo o filósofo grego Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas”. Nenhum julgamento humano estará livre de sua carga subjetiva.

Ao examinar fatos e circunstâncias, como preconiza Ovídio, se não é possível ao Juiz, como ser humano que é, negar-se ao subjetivismo, é no mínimo prudente, para a desejada administração da Justiça, que o julgador se mantenha dentro dos limites aceitáveis. Mas onde estão estes limites do subjetivismo?  Estão no direito positivo, que ambiciona estabelecer normas gerais que diminuam ao máximo o espaço para o entendimento pessoal – terra fértil para abusos. É a interpretação particular a terra fértil onde brotam as sementes de casuísmos, viceja o arbítrio e desponta a ilegalidade.

Quem vive o quotidiano do Direito e tem nas Leis o seu ferramental diário de trabalho, conhece bem as incertezas impostas pelo subjetivismo no ato de julgar, cujos limites tem sido freqüentemente inobservados por muitos magistrados.

Se é indiscutível que juízes de todos os graus e esferas não estão imunes ao império do subjetivismo, também é certo que uma dose modesta de subjetivismo  oxigena o exame do conjunto de circunstâncias . O que não se deve admitir é que o subjetivismo predominante invada a competência do direito positivo. Não há lugar nas lides do Direito para uma verdade pessoal que quase sempre deságua, de uma forma ou de outra, na carência de contextualização, na intolerância, ou no excessivo apego ao formalismo, que por sua vez resulta na intransigência.

Cícero advertia contra os excessos: “Summa jus, summa injuria” (“A suprema justiça torna-se a suprema injustiça”) Também previne o Eclesiastes: “Noli est justus multum”(“Não queiras ser justo demais”).

A verdadeira Justiça requer a todos os que exercem a função judicativa a análise objetiva dos direitos positivo e adjetivo, temperada com a dosagem prudente de subjetividade. Este equilíbrio abrirá as portas da eqüidade e honrará o Julgador. Distinguir os momentos em que a objetividade tem de ser respeitada, sem inovações de qualquer natureza, é uma arte que tem sido pouco cultivada em boa parte de nossos Tribunais.

Todas estas considerações vêm a propósito do instituto da prisão cautelar. O Código de Processo Penal estabelece (art. 312) as hipóteses em que a prisão cautelar pode ser decretada: em garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. Além destas hipóteses, o C.P.P. acrescenta as condições em que a medida cautelar deve ser imposta: “quando houver prova da existência da infração penal e indícios suficientes de autoria”.

Este conjunto de pressupostos constitui uma presunção legal, baseada em lei, e ultrapassa a mera presunção subjetiva do julgador. Estes pressupostos, que instrumentalizam o direito no sentido de se evitar o dano irreparável, são os fundamentos das decisões cautelares lato sensu. Ausente o fumus boni iuris que possa conduzir à incidência do periculum in mora – presunção legal de direito a evitar um dano irreversível – não se há de constituir, em desfavor do réu, medidas repressivas cautelares.

Além do quadro de hipóteses e de condições assinaladas, o Direito Processual Penal tipifica as fases de uma possível decretação da prisão preventiva: flagrante, preventiva, em decisão de pronúncia, temporária e por sentença condenatória recorrível. Em todos estes casos, é necessária a fundamentação objetiva, sem o que a prisão cautelar consagra o arbítrio e se transforma em ilegalidade. É a fundamentação que dá constitucionalidade ao decisum e assegura o princípio de presunção de inocência e de liberdade provisória, matéria tratada pela Constituição Federal (artigo 6, incisos LVII e LXVI).

Outra condicionante à prisão cautelar refere-se à sentença condenatória de primeiro grau. Se o Magistrado determina: “transitado em julgado, expeça-se mandado de prisão”, é porque o réu, até então, respondeu ao processo em liberdade, ou seja, o Juiz não constatou a presença de qualquer das circunstâncias do artigo 312 do CPP e por isto não aplicou ao réu a prisão cautelar. Neste caso, parece inequívoco que caberá ao réu apenas a prisão definitiva pela condenação transitada em julgado. Prisão esta que já seria cautelar, pois se trataria de cumprimento de pena.

Ocorre, entretanto, que os Tribunais, muitas vezes, mesmo sem o recurso do Ministério Público, mantêm o decisum condenatório de primeiro grau e determinando a expedição de mandato de prisão em desfavor do réu condenado. Este tem sido o entendimento de algumas Câmaras Criminais, cuja posição tem ganho terreno e consolidado jurisprudência. Ora, se ainda há recursos e a sentença do Juiz a quo não transitou, ainda existe coisa julgada material e o mérito pode ser revisto. E mais: se o Juiz entende, implícita ou explicitamente, que não há necessidade de prisão cautelar, como poderá o Tribunal modificar este entendimento sem um recurso específico e fundamentado? Antes da sentença transitada em julgado, o que existe é uma infração penal que para ser configurada como crime ainda necessita ser conformada como um fato típico (conduta voluntária culposa ou dolosa, com nexo de causalidade, resultado jurídico e tipicidade), conduta antijurídica (sem as justificativas legais do artigo 23 do CP) e culpável (imputabilidade, consciência do ilícito e exigibilidade de conduta diversa).

Em suma, sem determinação do Juiz de primeiro grau e sem recurso do MP, a prisão cautelar decretada pela Segunda Instância, antes do trânsito em julgado de uma sentença – em um ato de subjetivismo coletivo – independentemente de seus motivos, parece-nos ilegal. E, ainda mais grave: contribui para a desconstrução da ideologia do Direito de natureza penal. “Impedir que o monopólio da força se torne o monopólio da verdade, eis a principal tarefa da Justiça” (Michel Foucault).

Alguns Julgadores entendem que decidido o processo em Segunda Instância, decidida está a questão material, ou seja, definida está a coisa julgada material, uma vez que a prova não poderá ser questionada no STF  ou no STJ. Suponhamos que, em grau de recurso, Tribunais Superiores anulem o decisum por falta de fundamentação. Os autos retornaram à Primeira Instância, quando a prova deverá ser avaliada racionalmente pelo juiz de direito. Neste caso ocorreu a coisa julgada material? Claro que não.

Por fim, atendendo ao princípio da Teoria Eclética da Ação (LIEBMAN), dominante entre nós, há inteira distinção entre o Direito Penal e Direito Processual Penal. Neste caso, a PRISÃO CAUTELAR deverá ser submetida às regras cogentes (obrigatórias) no que vem previsto no artigo 313 do CPP e não circunstâncias do Código Penal. Neste universo, pode-se presumir inocência, mas não se pode presumir culpa.