Pragmatismo para lidar com o superendividamento

2 de agosto de 2023

Da Redação

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Entrevista com o Ministro Marco Buzzi, coordenador do grupo de trabalho do superendividamento no CNJ

Coordenador do grupo de trabalho criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para discutir, propor e avaliar políticas judiciárias que promovam a plena implementação da Lei do Superendividamento (Lei no 14.181/2021), o Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Marco Aurélio Buzzi participou do painel “Dependência financeira e endividamento” no tradicional Seminário de Verão da Universidade de Coimbra.

No debate, o magistrado apresentou a estratégia do CNJ para o tratamento do superendividamento em todo o Brasil, nas capitais e no interior, valendo-se da estrutura já instalada dos Centros Judiciais de Solução Consensual de Conflitos (Cejuscs), que soma mais de 1.500 unidades País afora.

Egresso da Faculdade de Direito de Coimbra, onde especializou-se em Direito do Consumidor, o Ministro Buzzi concedeu esta breve entrevista logo após o encerramento do Seminário. No pátio histórico naquele fim de tarde, além das palavras do ministro, ecoava a algazarra de formandos posando para fotografias, o chilreio das andorinhas no céu azul do verão português e o toque de recolher da Cabra – como os alunos da UC pouco gentilmente apelidaram o sino da torre da Universidade.

Na conversa, além das mudanças promovidas pela nova lei no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e da necessária mudança de mentalidade para lidar com o fenômeno do superendividamento, o magistrado falou ainda sobre outros câmbios culturais importantes para o sistema de Justiça nacional, como o fortalecimento da cultura de precedentes e maiores investimentos nos métodos adequados de soluções de conflitos. Confira os melhores momentos.

Revista Justiça & Cidadania – Qual é a avaliação que o senhor faz do XVIII Seminário de Verão, considerando ter sido aluno da Universidade de Coimbra e conhecer a força do pensamento que é gerado aqui para a História do Brasil?
Ministro Marco Buzzi – Sou muito suspeito, porque estudei aqui, sou fã incondicional, adoro a Universidade de Coimbra e principalmente a Faculdade de Direito. Coimbra faz parte da história dos operadores do Direito brasileiros. Há séculos atrás, todos vinham para Coimbra, que é uma das universidades mais antigas do ocidente e uma das mais célebres também. Na formação do jurista brasileiro, teve e continua tendo forte influência. Prova disso é que, antes da criação dos primeiros cursos jurídicos do Brasil – o que ocorreu somente em 1827 – diversos brasileiros, que tinham condições para isso, cruzavam o atlântico para vir estudar Direito na Universidade de Coimbra. Inclusive, a primeira turma formada pelas “Arcadas do Brasil”, em 1831, era composta por seis estudantes brasileiros que vieram transferidos de Coimbra.

Em que pese ser antiga, ela continua atualizadíssima, na ponta das novidades do Direito. Tanto é que o evento de hoje representa concretamente isso, viemos aqui tratar da proteção do meio ambiente e também do superendividamento, uma questão que está abarcando o mundo inteiro, Ocidente e Oriente, na Ásia estamos também com essa discussão fortíssima do superendividamento.

RJC – Por que há essa emergência do debate sobre superendividamento?
MMB – Porque dentro desse ethos vivendi da sociedade atual, que é a sociedade de consumo, a prática muitas vezes supera o cash, supera minhas condições de aquisição e compra, então tenho que fazer um reequilíbrio nas finanças, o que nem sempre consigo fazer voluntariamente. Como referi na minha fala aqui no Seminário, o Banco Mundial, há mais de 12 anos, já alertava para a necessidade de países emergentes adotarem uma legislação específica para o tratamento do superendividamento, o que ficou ainda mais em evidência com os reflexos da pandemia, cujos impactos na economia todos nós conhecemos.

O sistema percebeu isso e para que haja um resguardo do próprio establishment, do próprio sistema, a sociedade está propondo, no mundo inteiro, métodos para criar saídas ao gravíssimo problema do endividamento.

No Brasil, durante a discussão do projeto de lei que deu ensejo à Lei no 14.181/2021, optamos pelo modelo francês, da civil law, em que há dois procedimentos para o superendividamento, um judicial e outro extrajudicial. Estamos indo bem por aí, já estamos com uma série de negociações e a atuação em diversas frentes de trabalho, as quais não se limitam à atuação do Judiciário. 

A atual gestão do Executivo nacional manifestou preocupação com o crescimento do endividamento da população e lançou o Programa Desenrola, que visa, em síntese, possibilitar a negociação de débitos, com o maior volume de credores. O grupo de trabalho do CNJ está mantendo interlocução com o Ministério da Fazenda e a Advocacia-Geral da União (AGU) para oferecer o braço do Judiciário nessa iniciativa, pois o propósito é fazer com que, mediante ações conjuntas, integradas de diversos entes, o sistema volte a funcionar. Porque hoje, não só o consumidor está envolvido nessa falta de mobilidade financeira, mas o comerciante e o industrial também, daí porque, precisamos dar uma saída com velocidade.

O Judiciário mais uma vez, por intermédio de suas políticas públicas, junto com o Conselho Nacional de Justiça, que é quem nos capitaneia no Brasil inteiro, está indo muitíssimo bem nessa implementação. 

Temos uma cartilha pronta – quem quiser visite o site do CNJ – e vai encontrar lá esse material, desenvolvido sob a liderança de uma das maiores autoridades do mundo em Direito do Consumidor, que é a professora Cláudia Lima Marques, do Rio Grande do Sul, e que contou também com a colaboração de representantes do setor financeiro, Dr. Vicente de Chiara, da Febraban, do Banco Central, além de magistradas, promotores, defensores públicos, os quais se empenharam pra entregar um instrumento que ensina como efetivar as práticas das negociações do superendividamento. É de fácil leitura, qualquer advogado, operador do Direito ou interessado pode usar para começar com essas práticas e propor essas negociações. Precisamos disso, de algo simples, prático e que dê resultados concretos a curto prazo. Não temos tempo para discursos belíssimos, precisamos é de pragmatismo.

RJC – Há paralelos entre o tratamento do superendividamento no Brasil e na Europa?
MMB – Sim. Primeiro, é importante lembrar que, seja nos Estados Unidos, seja na Europa ou Brasil, ainda que com alguns anos de diferença aqui ou lá, a origem do problema é a mesma, ou seja, a questão de gastos excessivos frente ao consumo de bens. É a chamada sociedade de consumo, de aquisição de bens e serviços, uma questão até de felicidade, ter acesso aos bens de consumo e consumi-los. Não sou contra, sou a favor da sociedade de consumo, pois o crédito e o consumo são duas faces da mesma moeda. Por mais que o sistema queira que você consuma, não é interessante ter no consumidor um devedor cujo nome está inscrito nos róis de proteção ao crédito, que não pode comprar mais nada.

Como referi na minha fala aqui em Coimbra, há basicamente dois modelos de enfretamento do superendividamento.

O americano, proveniente do sistema commow law, que vê o superendividamento não só das circunstâncias de mercado, mas do próprio ethos da sociedade de consumo, o qual induz a pessoa a contrair dívida, e permite o perdão das dívidas. O objetivo desse sistema é prevenir e impedir que o devedor se torne um beneficiário social do Estado, afastado da linha de consumo. Não há uma preocupação preponderante com a pessoa do devedor, em si, mas com a própria economia e o mercado.

O outro modelo, o europeu, de tradição civil law, é baseado na ideia de reeducação financeira e adimplemento. O Brasil, levando em consideração o perfil da nossa sociedade de consumo, da nossa cultura, acabou optando pelo modelo europeu, preponderantemente o francês, que é aquele em que o Estado atua oferecendo ao cidadão superendividado um procedimento que facilite o pagamento dos débitos, mas não há perdão das dívidas. 

RJC – Quais foram as principais mudanças promovidas pela Lei do Superendividamento no CDC?
MMB – A essência da lei do superendividamento é a mudança de mentalidade. O sistema introduzido pela Lei no 14.181/2021, que modificou o CDC, objetiva não apenas o tratamento pontual e específico de débitos do consumidor, pessoa natural, mas a prevenção do superendividamento como um todo. Prioriza a reeducação do cidadão e a responsabilização frente aos débitos que ele mesmo contraiu. O que a lei quer é passar de uma cultura da dívida e de exclusão social para uma cultura de adimplemento, mediante incentivo às práticas consensuais e cooperação de todos os envolvidos.

As mudanças da lei foram bastante significativas, mas podemos destacar: a definição, para fins do tratamento previsto na lei, de um conceito de superendividamento (art. 54-A); a criação de um procedimento para facilitar o pagamento das dívidas, por meio de audiências de conciliação com todos os credores, um modelo que lembra um pouco a recuperação de empresas, com a possibilidade também da revisão dos contratos (artigos 104-A a 104-C); a criação de novos princípios, no que pertine à política nacional das relações de consumo, como o fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental (art. 4o); e a criação de núcleos de conciliação e mediação de conflitos de superendividamento (art. 5o).

É importante frisar que as modificações inseridas deixam claro que as questões relacionadas ao superendividamento não se restringem à atuação técnico-jurídica ou isolada do Poder Judiciário. O viés preventivo da lei, destacadamente, pressupõe o desenvolvimento de programas com abordagens múltiplas: jurídico, educacional, psicológico e econômico-social, etc. Por isso, a importância de parcerias interinstitucionais para efetivar o que o legislador previu.

RJC – Como vão funcionar os núcleos de negociação do superendividamento?
MMB – A bem da verdade, esses núcleos, ainda que não com esse nome, já funcionam em todo o País. São os Cejuscs, unidades que integram o Poder Judiciário e são responsáveis pela realização de mediações e conciliações, judiciais e extrajudiciais, relacionadas a todo e qualquer assunto que o cidadão tenha interesse em tentar um acordo. Esses núcleos atualmente já existem em mais de 1.500 cidades, estão espalhados em todos os estados da Federação, com estrutura e pessoal capacitado para conduzir essas audiências. Os interessados podem procurar os fóruns do Poder Judiciário, as OABs locais, neles buscando orientação, quando serão encaminhadas aos referidos Cejuscs. 

Com a edição da Lei no 14.181/2021, e seu comando para a criação dos Núcleos de Atendimento ao Superendividados (NAS, no art. 5o do CDC) no âmbito do Poder Judiciário, o CNJ editou a Recomendação no 125/2021, sugerindo aos tribunais que a implementação dos NAS ocorressem de modo a se aproveitarem as estruturas dos Cejuscs já existentes.

Alguns estados, como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Paraná, Pernambuco, Minas Gerais, Mato Grosso, entre outros, já contam com Cejusc especializado para atendimento ao consumidor superendividado. Basta que o devedor procure direta e pessoalmente esses locais para resolver o seu problema de endividamento. 

Vale destacar que, recentemente, em junho passado, atendendo sugestão encaminhada pelo grupo de trabalho do superendividamento, o CNJ promoveu um curso de mediadores judiciais que contou com um novo módulo específico, alusivo ao tratamento do superendividamento, com o intuito de oferecer a esses terceiros-facilitadores capacitação específica para que conduzam a audiência global de repactuação das dívidas.

Por fim, é importante mencionar que esses Núcleos podem – e devem – ser instalados em todo e qualquer órgão que componha o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, como os Procons, Defensorias Públicas, Promotorias, instituições civis de defesa do consumidor, etc. Tal qual os Cejuscs, diversos desses órgãos, em múltiplos estados, já desenvolvem experiências pioneiras e bem-sucedidas nessa frente.

RJC – Mudando de assunto, mas falando ainda sobre mudança de cultura, os tribunais superiores têm investido em diferentes filtros processuais para reduzir a quantidade de processos que julga, a exemplo da arguição de relevância no STJ. Qual é a importância da criação da cultura de precedentes no Brasil?
MMB – Eu ia chegar exatamente nisso. Não podemos esquecer que nosso sistema não é o anglo-saxônico, originariamente é o da civil law. Nessas questões de filtros a recursos e admissibilidades é a lei que determina, não são os tribunais que um belo dia se reúnem e dizem que não é assim, principalmente no Direito da civil law, que é o Direito romano praticamente, no qual o sistema é mais rígido ainda. Mas obviamente estamos preocupados com isso, os tribunais todos estão preocupados com isso, o legislador está preocupado com isso, o que é importante porque o foco é ele.

A legislação tem criado filtros e os tribunais, destacadamente os superiores, todos eles, têm levado isso com muito empenho, muito à sério. Por quê? Só o meu gabinete já chegou a receber 1.256 recursos, não no trimestre ou no ano, mas em um mês. Fui juiz estadual de carreira, cheguei a ficar em comarcas em que nunca recebíamos num mês, na comarca inteira, 1.200 processos, e no STJ esse número ocorre em um dos cinco gabinetes que compõem a Turma. Se recebo isso, os outros também recebem, seis mil processos por mês.

Para os tribunais superiores esse é um número violento, uma coisa inimaginável. Quando você chega aqui, por exemplo, à Europa, em Portugal, trago de propósito uma certidão oficial do meu Tribunal para provar a eles que a cada mês recebemos esse número de processos, em um tribunal superior, não em um juízo de primeiro grau, juiz de piso como alguns dizem, ou num Tribunal de Justiça. Que nada, é na última instância. É algo que precisamos repensar, ponto.

Mas vamos para o segundo aspecto, vou me contradizer agora e sei disso. Por outro lado, o Brasil é um País continental, temos 203 milhões de habitantes, não dá para imaginar que ao tribunal superior de um País como o nosso, grande, com esse volume de população e o índice de ações que temos não vá chegar um número grande de recursos. É óbvio que sim. A preocupação vai nesse sentido, também não podemos transformar esses filtros em impedimento de acesso à Justiça. Precisamos ter cuidado com isso, porque por mais trabalho que tenhamos, com muito trabalho ou não, o mais importante é dar jurisdição, é para isso que existimos.

RJC – Por falar em número de processos, há anos seu gabinete lidera as estatísticas sobre julgamento de processos no STJ. Em 2022 foram 14.986 decisões proferidas. Qual é o segredo de tamanha produtividade?
MMB – O meu índice é alto, mas não é muito diferente dos demais ministros. Todos nós produzimos muito. O grande segredo disso é ter uma equipe, e nós temos, o ministro que está no STJ tem estrutura. Não quero fazer críticas, estou fazendo um elogio, creio que o STJ é o que tem as melhores estruturas entre os tribunais do Brasil. Comparado até a outros países, é referencial. Estou há dez anos ali e já tive 17 assessores que hoje são juízes, que passaram em primeiro, segundo ou terceiro lugar nos concursos, além de procuradores de justiça e promotores, é um timão. Esse é o viés, você tem que trabalhar com uma equipe preparada, que queira crescer e que dê muita relevância a esse aspecto, produzir com qualidade. Tem que ter qualidade, não é só quantidade.

Esse é o caminho, todos os gabinetes se preocupam com isso, você pode pegar os índices em geral e verá que todos os ministros produzem muito, como tem que ser, por causa do volume de recursos, é uma consequência.

RJC – O senhor é um entusiasta dos chamados métodos adequados de resolução de conflitos. Como eles podem também ajudar a reduzir a judicialização e o superendividamento?
MMB – Muito. Você mesmo já destacou, creio piamente nisso, e junto com o Ministro Nelson Jobim, desde que foi instalado o CNJ, depois com a Ministra Ellen Gracie, com o Ministro Gilmar Mendes, o Ministro Ricardo Lewandowski, o Ministro Luiz Fux, todos os demais ministros, e agora a Ministra Rosa Weber, com todos nós mantemos uma equipe grande dentro do CNJ que se dedica aos métodos mais adequados de resolução de conflitos, ou seja, mediação e conciliação.

No início não tínhamos nada, agora temos a Resolução CNJ no 125/2010, a Lei no 13.140/2015 e grandes modificações no atual Código de Processo Civil. Aquilo que antigamente era só uma aspiração, hoje é lei, há uma legislação específica só para a mediação. Temos um novo método de enfrentar os conflitos, sem sentença, mediante acordo, com custos muito atenuados e um tempo muito mais rápido. 

Temos experiência práticas. No Fórum João Mendes, em São Paulo (SP), temos varas cíveis que conseguem resolver quando entra a ação, logo no início, o processo não chega a durar um mês. Chegamos a resolver 32% de todos os processos cíveis que entram em determinada vara ou unidade cível, é um dos melhores índices do mundo. É prova de que estamos sim no caminho certo, nossos profissionais do Direito, advogados, juízes, procuradores, promotores, todos estão empenhados nisso. Prova de que essa legislação é eficiente, está dando belíssimos resultados. Agora faremos a mesma coisa com o superendividamento.

Nota____________________

1 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/08/cartilha-superendividamento.pdf