Por que não se investiu antes em vacina?

3 de agosto de 2020

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Racionalidade econômica explica baixos incentivos às pesquisas para identificar surtos de vírus e a necessidade de reformular o atual modelo

O combate global à pandemia da covid-19 realçou as falhas dos sistemas de saúde de todo o mundo e do atual modelo de pesquisa e desenvolvimento (P&D) para produtos farmacêuticos, bem como demonstrou que o acesso igualitário à saúde é problemático inclusive em países economicamente desenvolvidos. O potencial para uma pandemia decorrente de um vírus foi alertado há muito tempo por especialistas em saúde pública – ainda que sem previsão de suas enormes proporções – mas parece que não recebeu a devida atenção mundial.

A discussão é complexa e envolve diversos campos, um dos quais relaciona-se à Propriedade Intelectual: quais as soluções podem ser propostas por este campo do Direito aos males da pandemia? Será que os governos e as instituições de pesquisa devem ver o momento – trágico como possa parecer – como uma oportunidade para repensar como lidar com as barreiras das patentes ao fornecimento de tratamentos a custos menos altos e com o subinvestimento em pesquisa e desenvolvimento de produtos farmacêuticos para enfrentar surtos de vírus em larga escala?

A curto prazo, a primeira melhor solução é o uso de mecanismos não legislativos para contornar o direito de exclusividade decorrente de eventual patente para o tratamento da covid-19 e os altos preços decorrentes do monopólio. O licenciamento compulsório, porém, é uma resposta que não gera uma solução a longo prazo, já que é temporário, decorre de uma situação de emergência no caso da pandemia e não altera o sistema de incentivos que rege o modelo de pesquisa e desenvolvimento de produtos farmacêuticos atual, marcado pela lógica do mercado privado e sem atuação prioritária nas necessidades de saúde global, como a pesquisa relativa a vírus com potencial para causar surtos de grande escala, de acordo com estudos. Nesse contexto, como solução a longo prazo, é preciso pensar em outros modelos de financiamento de P&D em saúde. É esta resposta a longo prazo que nos interessa, com foco em vírus que podem gerar surtos: usando a racionalidade econômica, analisaremos o modelo atual e algumas alterações propostas.

A função dos direitos de propriedade intelectual, sob a ótica da Law & Economics, é eliminar uma falha de mercado causada pela dificuldade que o inventor tem de receber uma retribuição social pelo que produziu. É nesse sentido que a propriedade intelectual estimula a inovação: a propriedade intelectual cria incentivos para que os agentes econômicos invistam em pesquisa e desenvolvimento, apesar dos altos custos, já que é conferido ao inventor o direito de ser autor do que criou e a possibilidade de ser recompensado pelo seu valor social. Com a atribuição de direitos de propriedade ao inventor e/ou titular, como as patentes, ele suportará todos os custos e receberá todos os benefícios dela decorrentes, internalizando as externalidades negativas (custos) e positivas (benefícios). Desta forma, os direitos da propriedade intelectual justificam-se na medida em que trazem mais benefícios do que custos sociais.

No entanto, a concessão de patentes, embora essencial para a inovação, não é um mecanismo de incentivo perfeito. Para recuperar os custos decorrentes dos investimentos em P&D, a indústria farmacêutica determina as prioridades das pesquisas com base nas demandas do mercado, que nem sempre abrangem todas as necessidades de saúde da população.

Sob o modelo atual que orienta as prioridades da indústria farmacêutica, as sociedades empresárias têm menos incentivos para realizar pesquisas em alguns projetos socialmente valiosos, como vacinas e medicamentos contra doenças virais esporádicas. As vacinas, por exemplo, possuem altos custos fixos para P&D, mas um custo relativamente baixo de fabricação, e sua comercialização para o mercado, em especial para governos, acaba sendo feita pelo preço que cobre os custos de fabricação, não os custos de P&D. As vacinas têm, ainda, um agravante, já que estão sujeitas a um problema temporal e a demanda pode ser insuficiente em tempos normais. É por isso que, em muitos casos, a produção de uma nova tecnologia gera externalidades positivas para a sociedade (como o benefício social de ser imunizada pela vacina), sem que o investidor obtenha o retorno privado proporcional, o que gera uma falha de mercado e consequente subinvestimento neste campo.

Somam-se à falha de mercado os outros pontos negativos apontados para o modelo de pesquisa e desenvolvimento de produtos farmacêuticos em geral. Segundo a literatura, o modelo atual propicia (i) falta de transparência nos custos de P&D. Além disso, observa-se um (ii) aumento dos preços nos últimos cinco anos, especialmente para produtos de origem biológica, e que (iii) o número de novos medicamentos aprovados recentemente por ano permanece estável no mundo, embora tenha havido um incremento nos investimentos em P&D. Ainda, aponta-se uma (iv) fragmentação e falta de coordenação entre os agentes privados, públicos e filantrópicos sobre as prioridades globais de P&D, ficando negligenciados determinados medicamentos/vacinas e populações, sobretudo as mais pobres.

Diante deste cenário, discutem-se novos modelos de financiamento de pesquisas em saúde, incluindo maior participação do governo, do setor privado e do setor acadêmico/sem fins lucrativos, destinados às necessidades de saúde global, nas quais se incluem pesquisas relativas a surtos de vírus. Algumas propostas em discussão são: (i) ajustar o que é prioridade dentre as necessidades de P&D do setor farmacêutico; (ii) envolver o setor privado com fins lucrativos na busca de P&D não lucrativa e incentivá-lo a desconectar o custo da P&D do preço do produto; (iii) facilitar a coordenação de financiadores públicos e filantrópicos, para que ganhem espaço frente à iniciativa privada, e (iv) fortalecer os sistemas nacionais de pesquisa em saúde.

Antes de analisar as propostas, vale lembrar a noção de bem público. Um bem público, no jargão econômico, é um bem que o usuário pode consumir sem reduzir sua disponibilidade a outros (não rival) e que não pode excluir outros de se beneficiarem dele (não excludente). Devido a estas características, em um mercado livre, os atores privados não investirão o suficiente na produção de bens públicos, pois não haverá externalidades positivas a contento, gerando uma falha de mercado. Por esta razão, estes bens muitas vezes precisam ser financiados publicamente. Embora a vacina não seja um bem público, já que seu uso por uma pessoa reduz sua disponibilidade para outros, a imunidade da sociedade o é, daí o argumento no sentido de que as falhas de mercado em relação às pesquisas de vacinas para doenças virais esporádicas devem ser corrigidas por uso de recursos públicos.

Em relação à primeira proposta, para auxiliar na identificação de prioridades de pesquisas com base nas necessidades globais de saúde pública, a OMS criou um Observatório que acompanha, por exemplo, o valor do financiamento de pesquisas destinadas ao combate de doenças negligenciadas, definidas como aquelas que acometem mais fortemente populações historicamente vulneráveis e que atraem recursos escassos de países e da indústria. Em relação às pandemias, é essencial a identificação prioritária de patógenos que mais ameaçam a saúde global e para os quais não há vacinas ou medicamentos em andamento, medida que não vem sendo adotada pela indústria farmacêutica.

No curto prazo, é necessário envolver o setor privado com fins lucrativos na busca de P&D não lucrativa, o que teria a vantagem de aproveitar as habilidades que o setor tem para desenvolver a tecnologia e trazê-la ao mercado, além da sua infraestrutura para pesquisas e fabricação, bancos de dados e funcionários que podem ser imediatamente usados.

Nesse ponto, uma maior aproximação entre a indústria farmacêutica e entidades públicas de pesquisa pode ocorrer por meio de parcerias público privadas, com o fim de obter melhoria na eficiência e na transparência da P&D orientada pelas necessidades de saúde global, e não pelo retorno financeiro esperado. Na Europa, a maior parceria público-privada neste setor é a Innovative Medicines Iniciative (em português, Iniciativa sobre Medicamentos Inovadores), celebrada entre a União Europeia e a indústria farmacêutica europeia, com a participação de universidades, centros de pesquisa e organizações de pacientes. O objeto principal do projeto, que existe desde 2009, é facilitar a cooperação entre os envolvidos para o desenvolvimento de medicamentos inovadores, particularmente em áreas onde há uma necessidade médica ou social não atendida.

As propostas em defesa do aumento do financiamento público e de doadores filantrópicos, assim como da construção de setores públicos nacionais farmacêuticos, capazes de desenvolver e fabricar medicamentos por conta própria, visam a diminuir a dependência das pesquisas dos incentivos próprios do mercado privado. No Brasil, por exemplo, existe um amplo parque público de laboratórios, de abrangência nacional, voltado para a inovação destinada aos programas do Sistema Único de Saúde, com a produção de medicamentos, vacinas e demais produtos para a saúde.

Em se tratando de problemas de saúde global, o apoio público à pesquisa e desenvolvimento exige liderança internacional e cooperação dos países, por estarem naturalmente interessados em maximizar o bem-estar local, não o global. Nesse sentido, especialmente para a prevenção e combate a pandemias, sugere-se que a OMS proponha uma convenção de P&D vinculativa, na qual todos os países membros se comprometam a promover a inovação para a saúde global, por meio de um mecanismo de financiamento dos governos, com contribuições de acordo com seu nível de desenvolvimento. Esta proposta tem a vantagem de impulsionar o investimento público e internacionalizar infraestruturas de pesquisas neste campo.

Em relação às organizações sem fins lucrativos, por sua vez, argumenta-se que podem auxiliar nas necessidades de saúde global em razão de não sofrerem a pressão para gerar contínuo aumento de receita e para elevar o preço dos medicamentos, um problema que indústrias farmacêuticas têm que lidar, já que seus acionistas exigem taxas de retorno muito altas em períodos curtos, desconsiderando que a P&D leva muitos anos para obter um resultado positivo. A proposta não é de substituir a indústria farmacêutica como instrumento de inovação, mas de fortalecer uma mudança no modelo atual e causar um efeito psicológico que leve a indústria farmacêutica à cooperação. As próprias organizações podem trazer a tecnologia ao mercado ou licenciar os compostos obtidos no estágio inicial para a indústria com fins lucrativos, a qual os desenvolveriam em estágio avançado.

Em quaisquer destes cenários, havendo recursos públicos envolvidos, é preciso que haja transparência sobre quais pesquisas estão sendo financiadas e quais são os critérios de decisão para alocação dos recursos, no âmbito nacional e internacional.

Por fim, a crise atual demonstra que vem ganhando força modelos de ciência abertos e colaborativos, construídos em torno de princípios de P&D que atendem às necessidades de saúde global, como o Open Access to covid-19 and related research. Com base nesta ideia, muitas agências de financiamento estão solicitando que a pesquisa seja disponibilizada ao público de forma gratuita e imediata, um passo importante para estimular a cooperação entre pesquisadores. Ao mesmo tempo, observa-se uma intensa competição para encontrar em primeiro lugar tratamentos para o vírus. Embora pareça paradoxal, a cooperação e a competição atuando em conjunto podem acelerar as pesquisas, já que há compartilhamento de dados e corrida para obter melhores resultados.

O momento atual nos relembra que é preciso buscar inovação em todos os campos da saúde pública, inclusive naqueles em que não há incentivos para maior investimento. O que a pandemia deixa evidente – em uma tragédia que já era anunciada – é a necessidade de reformular o atual modelo de pesquisa e desenvolvimento de produtos farmacêuticos, o qual é ineficiente para fornecer a solução global que surtos de vírus como o da covid-19 exigem. Trata-se de um desafio que será herdado pelo mundo pós-pandemia.