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Pirataria, a vítima pode ser você

5 de fevereiro de 2003

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O Fórum Econômico Mundial realizado recentemente em Davos, na Suíça, revelou dados estarrecedores sobre a pirataria de produtos e serviços: um faturamento de mais de meio trilhão de dólares até o ano passado. E do jeito que as coisas vão, esse índice poderá chegar a 1 trilhão até 2010 o que equivale a um crescimento de 10% ao ano.

Os dados apresentados em Davos foram coletados pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), organismo considerado uma mega Ong dos países ricos e que recolhe dados da Organização Mundial do Comércio e da Câmara Internacional do Comércio, ambas abastecidas por relatórios da Receita Federal e da Polícia Federal de mais de cem países. Segundo o presidente da Associação Brasileira de Combate à Falsificação, Fernando Ramazzini, os falsários estão hoje no mercado de alimentos, remédios, brinquedos, cigarros, confecções, insumos, componentes – de antibióticos a materiais cirúrgicos, passando por programas de computação e por peças de reposição de máquinas, aparelhos, veículos e até aviões. Em alguns produtos, a pirataria já domina mais da metade do mercado como no caso de softwares, dos vídeos, CDs e agora também de DVDs.

DANOS AO MERCADO DE TRABALHO

* 850 mil pessoas trabalham na produção de cigarros piratas

* a pirataria rouba anualmente 75 mil empregos no país

* somente no setor de brinquedos a pirataria impede a geração de 7200 vagas

* 20 mil vagas na indústria cinematográfica

* 2 mil no setor farmacêutico

* cerca de 3 mil empregos no setor de autopeças (2% das vagas)

Os líderes da falsificação

A falsificação de produtos e embalagens ficou demonstrado no painel de Davos. Ninguém consegue mais distinguir o que é verdadeiro e o que é falso.

O desenvolvimento da pirataria em todos os mercados aponta a falência técnica e moral do Estado regulador embora sendo ele um dos grandes prejudicados pela sonegação que vem atrelada à falsificação.

E o que acontece na prática? Os produtos falsificados acabam com os impostos, desmoralizam as marcas, atingem os empregos formais além de serem considerados uma grande ameaça para os consumidores.

Pirataria

A pirataria de CDs vem causando estrago no varejo e na indústria fonográfica sendo considerados hoje o que mais sofrem com as falsificações. Dados do comércio na região metropolitana de São Paulo mostram que em 2002 o comércio varejista de CDs faturou 39% menos do que igual período de 2001, sendo considerado o pior desempenho dos últimos tempos. Com essas performances negativas a tendência é que as lojas especializadas em CDs fechem as portas e sejam substituídas pelas redes de supermecados e lojas de departamentos.

Balanço Negativo

A União de Combate à Pirataria, integrada por fabricantes de discos, de software, vídeo, telecomunicações por assinatura e filmes, divulgou o balanço de 2002. Foram apreendidos 5 milhões de CDs virgens só no porto de Paranaguá e fechadas 76 fábricas clandestinas capazes de copiar 40 milhões de títulos por ano. Os setores mais atingidos pela pirataria são os da música (53%) e software (56%). Na área literária o prejuízo é de 350 milhões de reais por ano.

Hoje as falsificações e a pirataria se transformaram num pesadelo para as empresas, governo e consumidores, porque tudo que pode ser produzido, pode ser reproduzido. Isso origina uma vasta indústria paralela que gera lucros milionários para redes criminosas e prejuízos milionários para a indústria legalmente estabelecida.

Seminário em Brasília

Em agosto do ano passado a Confederação Nacional da Indústria e a Confederação Nacional do Comércio realizaram um Seminário na capital federal com o objetivo de definir ações do setor empresarial, governo e poderes Legislativo e Judiciário para combater a produção, distribuição e comercialização de produtos ilegais, piratas ou contrabandeados. Naquela ocasião, o então presidente da CNI, deputado Moreira Ferreira declarou que “a pirataria é um dos maiores obstáculos à inserção do Brasil na economia internacional e um desestímulo ao investimento interno. Por isso – disse Moreira Ferreira – o que queremos é sair daqui com propostas que, unificando nacionalmente a vontade e a ação da sociedade civil e do governo, possam coibir de forma rigorosa essas atividades criminosas, em defesa não apenas do setor produtivo, mas de cidadania e da própria nação”.

Sobre o assunto, também se pronunciou o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Nilson Naves: “o desafio mais importante é extirpar as raízes da pirataria da nossa cultura”.

PREJUÍZO EM NÚMEROS

* indústrias de roupas, discos, brinquedos e cigarros perdem quase R$ 6 bilhões

* prejuízo anual do setor têxtil chega a R$ 1,56 bilhão

* a pirataria rouba 20% das vendas do setor têxtil

* somente a NIKE gasta R$ 400 mil ano para combater a entrada de até 3 milhões de tênis falsificados

* existe um Cd pirata para cada original posto a venda

* 1/5 dos remédios vendidos são falsificados

* no mercado de software mais da metade dos programas são piratas

* R$ 10 bilhões de impostos não arrecadados

Na ocasião, o ministro lançou em desafio às autoridades de difundir a lei por meio de um programa de prevenção mais efetivo, em campanhas de conscietização e projetos de educação.

No Brasil

O país perde anualmente 20 bilhões de reais só com a evasão de impostos não arrecadados com a venda das mercadorias falsificadas, o que daria para custear os orçamentos federais da Educação, Saneamento e Habitação. No ranking da pirataria mundial o Brasil está na 4ª posição entre as nações que mais praticam esse crime, atrás apenas da China, Rússia e México com 40% dos softwares vendidos aqui sendo pirateados.

A lista de produtos pirateados é vasta. Além dos já citados, temos ainda a lâmina de barbear, preservativo, lâmpada, bebida, tênis, pilha, cigarro, perfume etc. Todos os dias milhares de brasileiros estão comprando produtos piratas, produzidos aqui mesmo ou falsificados e contrabandeados do exterior.

Portos vulneráveis

O baixo número de fiscais e a grande entrada de importados tornaram os portos nacionais vulneráveis à pirataria. As apreensões aumentam, mas as ruas cheias de camelôs vendendo importados são a prova de que ainda há muita coisa a fazer.

A Associação Brasileira de Combate à Falsificação estima que, de cada dez produtos piratas vendidos no País, sete vêm da China e de seus vizinhos como Coréia do Sul, Taiwan e Hong Kong. Parte dessas mercadorias entra no Brasil pelas fronteiras com o Paraguai, Suriname, Bolívia e Colômbia, mas o volume mais significativo tem como porta de entrada os portos de Santos, Rio de Janeiro e Paranaguá.

No porto de Santos, por exemplo, a apreensão de produtos piratas cresceu 272,9% no ano passado em relação a 2000. Foram 77 contêineres contra 30 no ano anterior. No Rio, o aumento da fiscalização resultou na apreensão de 60 mil pares de tênis e ainda relógios, roupas, bolsas, mochilas e até peças de automóveis.

O barato sai caro

Antes de comprar a cópia bem baratinha daquele jogo de computador, fique atento. Você pode estar ajudando o crime organizado e a maior vítima pode ser você. O alerta é da Associação Brasileira de Software que no ano passado deflagrou uma campanha anti pirataria em todo o país.

Segundo a mesma associação, se o índice de pirataria caísse para 25% igual ao dos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, por exemplo, mais de 25 mil novos empregos seriam gerados e as indústrias de software passariam a faturar R$ 1,7 bilhão por ano. Já a arrecadação teria um incremento de mais R$ 1 bilhão.

A máfia chinesa

Nesse sofisticado e complexo mundo do crime organizado, a máfia chinesa é hoje a organização criminosa que mais cresce no Brasil.

No Rio de Janeiro, a presença cada vez maior de chineses tem provocado reflexos no comércio de piratarias. Só no Camelodromo da rua Uruguaiana, no centro do Rio, os chineses controlavam mais de 80% do fornecimento de roupas, calçados e produtos eletrônicos piratas comercializados na área.

Em São Paulo, segundo dados da polícia, 150 imigrantes ilegais atuam nas cinco organizações criminosas chinesas existentes no país.

Comitê interministerial

Diante desse quadro, o que fazer? O governo federal chamou para si a responsabilidade pelo combate à pirataria criando, através Cardoso, o Comitê Interministerial de Combate à Pirataria no dia 13 de março de 2001 que, ao que parece, ficou só no papel. Sim, porque em agosto de 2002 os representantes da indústria reunidos na CNI foram unânimes em cobrar ações de repressão por parte do governo. “Chega de só ficar estudando a pirataria, disse um  dos presentes. É insustentável continuar gerando empregos e pagando impostos sem combater essa doença. Se todos nós sabemos onde comprar um CD ou uma roupa falsificada, por que esses artigos não são apreendidos?” disse.

Se há mercado há piratas

O Brasil ostenta hoje um alto índice de pirataria, mas a situação era ainda mais alarmante há 10 anos quando aproximadamente 86% dos programas de computadores em uso eram falsificados.

Mas a falsificação não tem limites em todas as outras áreas. Dezoito milhões de litros de gasolina adulterada são vendidos por mês em São Paulo. Chaveiros e bonecas falsificadas na China são considerados perigosos porque possuem resíduos de chumbo e cádmio que causam câncer. A denúncia é da Associação Brasileira da Indústria de Brinquedos que sugere ao nosso governo presssionar a China na Organização Mundial do Comércio. E o que é ainda mais grave: isqueiros pirateados que chegam ao Brasil são abastecidos com gás de cozinha, o que significa que, se esse produto ficar guardado em um carro fechado acima de 40 graus pode explodir a qualquer momento. Esse alerta foi dado por um diretor da Bic para a América Latina. De tudo isso se conclui que nenhum produto fica a salvo. Se há mercado, há piratas.

QUEM É PIRATA?

A falta de compromisso do brasileiro com a legalidade é característica da limitada consciência da cidadania. E quando ainda se soma o individualismo egoísta, ocorre a conhecida hipótese do faça o que digo e não o que faço, ou seja, cumpra a lei que eu não cumpro.

Somos tolerantes, omissos ou até simpáticos com o ilícito alheio que não nos prejudique diretamente. Não nos preocupamos com as conseqüências indiretas ou não imediatas, ainda que no futuro venhamos, nós ou nossos filhos, a suportá-las. Egoisticamente, só reagimos ao ilícito que nos prejudica direta, imediata e pessoalmente.

Aí está uma das prováveis razões para a proliferação das práticas ilícitas. Os que não são prejudicados não reagem. Os que são prejudicados só reagem contra aquelas práticas ilegais que os prejudicam, sem solidarizarem-se com os que são prejudicados por outras ilicitudes.

Exemplificando: os reagem contra os camelôs, mas os não comerciantes se omitem ou até mesmo protestam contra as raras atuações da fiscalização repetindo-se o chavão “é melhor do que roubar”; os produtores de vídeo reclamam das fitas copiadas sem licença, mas os que não são produtores de vídeo se omitem ou até mesmo se deliciam com as cópias piratas; os industriais reclamam dos falsificadores, mas os consumidores das grifes e marcas pirateadas vangloriam-se dos baixos preços pagos; os cantores reclamam dos CDs  e fitas piratas,  mas os compradores daqueles CDs e fitas curtem o som das contrafações baratas; os empresários de ônibus reclamam das vans, kombis e ônibus clandestinos que operam ilegalmente o transporte, mas os passageiros daqueles piratas adoram aquela aventura barata; os donos das empresas de rádio reclamam das rádios clandestinas, mas os que ganham com matérias veiculadas por aqueles veículos não autorizados estão muito satisfeitos; os produtores de software reclamam dos que copiam os seus produtos, mas os usuários dos programas pirateados não param de fazer novas encomendas. E a lista de exemplos poderia ser muito maior.

Dessa pequena amostra podemos afirmar que os comerciantes, os produtores de vídeo, os industriais, os cantores, os empresários de ônibus, os donos das empresas de rádio e os produtores de software são vítimas dos piratas. Mas não estaríamos longe da verdade se disséssemos também que cada uma daquelas vítimas, excluindo aquele que o pirateia diretamente, é omisso, se não for simpático e consumidor, diante dos demais piratas.

Ora, a ilicitude é uma só. Pode, quando muito, apresentar efeitos diferentes. Mas sempre será ilicitude. Eticamente, não se pode separá-las entre ilicitudes toleradas e ilicitudes não toleradas. É a partir daí que devemos entender qualquer ação política que se denomine de tolerância zero. Mas tudo haverá de começar pela nossa plena consciência de cidadania.

NOTA DO EDITOR

A presente matéria sobre pirataria de produtos e serviços, constitui o início de uma série preparadas pela nossa redação, e que se repetirá nas edições subseqüentes. Desejamos chamar a atenção dos nossos especializados leitores, para o clamoroso crime econômico, tributário e social que o problema enfoca.

Nesta edição, generalizamos os aspectos da pirataria, que prolifera e atinge indistintamente todos os setores da vida industrial, comercial, de transportes, de serviços e quanto se possam imaginar, onde a falsificação impera em livre atuação, seja através da fraude, do contrabando, da corrupção, omissão e alheiamento dos órgãos públicos responsáveis, causando prejuízos tributários ao erário, superiores a 20 bilhões de reais anualmente.

Infelizmente, o problema não atinge somente o erário público e a economia nacional, pois conta com a indiferença da população e tende a se agravar com conseqüências cada vez mais graves, face a questão social representada pelo recrudescimento do desemprego..

O assunto que já tem sido motivo de destaque e recriminação nos órgãos superiores dos nossos tribunais, do Ministério Público federal e estaduais, da Polícia Federal e repartições fazendárias, entretanto, estão ainda muito aquém da necessária e efetiva atuação, seja por falta de meios eficientes, práticos e duradouros na repressão e inclusive, na ausência de programação educacional visando a conscientização da população sobre o grave e profundo problema que representa.

Um dos aspectos que será abordado nas edições seguintes é o do transporte coletivo, motivado pela atuação totalmente na clandestinidade do transporte de passageiros, à margem do que dispõe a Constituição Federal e o Código Nacional de Trânsito, com grande e grave prejuízo das empresas de ônibus que atuam regularmente e que se vêem diante de uma concorrência desleal, e quanto ao dos usuários, que não podem usufruir de um serviço adequado e com real segurança.