Permissões de serviço público: o efeito paralisante de uma decisão judicial

5 de dezembro de 2003

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Entrevista com Maximino Gonçalves Fontes Neto, advogado especializado em transporte

A 5ª Vara de Fazenda Pública da Comarca da capital, em recente decisão, determinou que o Departamento de Transportes Rodoviários do estado do Rio de Janeiro (Detro) publicasse em 180 dias um edital de licitação das linhas de ônibus intermunicipais. Qual o alcance dessa medida?

A decisão tem efeito sobre as 1.087 linhas intermunicipais que compõem o sistema de transporte coletivo por ônibus do estado do Rio de Janeiro. Esse sistema responde por 80% dos deslocamentos das pessoas e pela interligação de 92 municípios, aí incluídos os municípios da região metropolitana, da região do Médio Paraíba, o Norte do estado, enfim de todo o estado. Ou seja, a decisão coloca em risco um sistema que proporciona o atendimento das diversas necessidades: as atividades econômicas envolvendo indústria, comércio e serviços, os interesses por trabalho, educação, saúde, lazer, entre outros.

De que forma a decisão coloca em risco o sistema de transporte?

Em primeiro lugar, a decisão produz um efeito paralisante sobre as empresas que, sem saberem se continuarão a executar o seu serviço, provavelmente não farão novos investimentos. O nível de investimento fica seriamente comprometido. Além disso, a substituição das atuais empresas implicará na alienação dos seus veículos, imóveis e garagens e na dispensa de milhares de empregados.

Mas, qual a questão jurídica que está se discute nesse caso?

A Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1985, que regulamenta o artigo 175 da Constituição Federal, criou normas gerais obrigatórias para todas as entidades federativas que compõem o Estado brasileiro, ou seja, a União, os estados membros, o Distrito Federal e os municípios. Dentre as normas gerais da Lei 8.987, há efetivamente a exigência de licitação prévia para outorga de concessão ou permissão para a execução indireta de todos os serviços públicos, aí incluídos os serviços de transporte coletivo por ônibus. No entanto, além dessas normas gerais, que são permanentes, a Lei 8.987 prevê, nas suas disposições finais, regras de transição para disciplinar as situações pré-existentes ao seu advento. É a partir daí que surge a controvérsia acerca da incidência do parágrafo II, do Artigo 42 dessa Lei. Muitos juristas entendem que essas disposições finais não atingem as entidades federativas, que nesse campo poderiam legislar supletivamente. Foi na esteira desse raciocínio, e amparado no parágrafo único do artigo 1º da Lei 8.987, que o legislador estadual, em face das “peculiaridades” citadas no artigo e usando da discrição legislativa, resolveu manter as permissões intermunicipais.

Que peculiaridades são essas?

Para responder essa pergunta é necessário que se faça um breve retrospecto das linhas intermunicipais, cuja origem remonta aos antigos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro.

Naquela época, essas linhas eram interestaduais por ligarem dois ou mais estados, sendo disciplinadas pelo DNER através de uma comissão. Com a fusão dos dois estados, surgiu o atual estado do Rio de Janeiro, e somente então as linhas passaram a ser intermunicipais. Foi a época do advento do Decreto Lei 276/75 e dos decretos estaduais 2.256/78 e 3.893/81, que passaram a disciplinar as linhas intermunicipais (o último decreto, inclusive, ainda está em vigor). As permissões de cada empresa operadora eram outorgadas por prazo indeterminado e possuíam natureza aparentemente precária, uma vez que não garantiam um direito.

A forma com que essas permissões foram delegadas não destoava da que se fazia em outras administrações públicas. As empresas continuaram a executar os serviços a elas delegados, mesmo após a Constituição de 1988 e até a entrada em vigor da Lei 8.987. A partir desse momento, no qual passa-se a exigir que a permissão seja objeto de um contrato (artigo 40 da referida Lei), e que uma outra lei (a 8.666/93) não mais admite contratos por prazo indeterminado, o estado do Rio de Janeiro ficou diante de um dilema. Poderia considerar todas as permissões extintas, por estarem inadequadas em relação às normas gerais da Lei 8.987, e através do poder concedente determinaria a realização de licitações para todas as linhas intermunicipais, sujeitando-se, neste caso, a eventuais ações decorrentes de direitos subjetivos por parte das permissionárias, que haviam realizado investimentos ainda não amortizados.

A outra alternativa era manter os serviços, determinando que as permissões preexistentes fossem adaptadas às normas gerais da Lei 8.987/95 e conferindo-lhes prazo, de acordo com a Lei 8.666, para que assim os investimentos pudessem ser amortizados.

Foi esse o impasse vivido pelo legislador estadual quando editou a Lei 2.831/97 ora em vigor. Ele resolveu optar pela segunda alternativa em primeiro lugar porque constatou que a simples substituição das antigas permissionárias por novas empresas não constituiria um indicador seguro de que haveria uma melhoria nos serviços. Em segundo lugar, devido ao efeito paralisante a que nos referimos, caso fosse instalada licitação para todas as linhas, e que inibiria as empresas a fazerem seus investimentos (o que muito comprometeria o serviço adequado a que alude o artigo 7º da Lei 2.831/97). Em terceiro lugar, impediria o ajuizamento de ações postulando eventuais indenizações, que se tivessem êxito teriam de ser suportadas pelo erário público estadual.

O prazo que foi escolhido tampouco foi obtido ao acaso. Serviu de paradigma o prazo de 15 anos dado pela União às empresas de transporte interestadual, através dos decretos 934/94 e 2.251/97. O que se fez foi conferir um prazo que inexistia até então. Outro precedente que pode ser citado é o da lei 9.074/95, que em seu artigo 19 prorroga as concessões de empresas de geração de energia elétrica por 20 anos.

Essas eram situações transitórias e preexistentes à Lei 8.987, à semelhança do que ocorreu no estado do Rio de Janeiro. Há, portanto, um suporte de fato para a manutenção das atuais permissões, que têm um prazo, que não vão se tornar eternas e cujos serviços podem ser retomados a qualquer momento, haja vista a existência das cláusulas exorbitantes em todo contrato administrativo, que coloca a administração pública em nível de superioridade em relação ao particulares.

Quer dizer que não havia exigência de licitação para as antigas permissões?

Muitas das atuais permissões datam de 40 ou 50 anos e se originaram, como já foi dito aqui, nos antigos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. Algumas empresas eram obrigadas a abrir passagens e manter as vias públicas para que seus veículos pudessem nelas trafegar. Foi um tempo de pioneirismo, de serviços incipientes e de veículos sem a tecnologia de hoje. Sequer havia a possibilidade de competição entre eventuais interessados na execução do transporte de passageiros. Foi um momento em que os bondes começaram a ser extintos e predominavam os lotações, que deram origem à maioria das linhas que ainda hoje existem. Não havia exigência de licitação.

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ingressou com representação de inconstitucionalidade contra a Lei Estadual nº 2.831, de 13 de novembro de 1997, que está sendo julgada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. A decisão da 5ª Vara de Fazenda Pública poderia ser tomada antes que se averiguasse a constitucionalidade da Lei Estadual nº 2.831?

Realmente há uma liminar concedida pelo desembargador-relator do Órgão Especial suspendendo em 2002 os efeitos desse dispositivo. Sucede que os contratos de adesão que mantiveram as permissões das empresas de transporte intermunicipal datam do ano de 1998. Como aquela decisão só produz efeito a partir da data de sua concessão, ela não atinge os contratos que já estão celebrados. A prudência indicaria que se esperasse o julgamento do Órgão Especial.