Edição 295
Pela preservação de nossos direitos
1 de março de 2025
Erika Siebler Branco Diretora da Redação

Nos últimos tempos, as mídias sociais vêm mostrando a rotina de mulheres que optaram por uma espécie de retorno aos papéis de gênero tradicionais. Em cozinhas rústicas, quase sem eletrodomésticos, jovens mães cercadas por crianças perfeitamente arrumadas cuidam de tarefas domésticas, que incluem até mesmo fabricar a própria manteiga. São as chamadas tradwife (do inglês traditional wife ou esposa tradicional), mulheres que abriram mão de uma carreira no mercado de trabalho para assumirem o papel de cuidadoras do lar e da família, enquanto o homem se torna o provedor financeiro exclusivo.
Nada contra quem faz essa opção, mas é preciso questionar: seria esse um modismo passageiro ou um movimento em oposição ao feminismo e de questionamento dos papéis de gênero, influenciado pelo avanço das políticas neoliberais ultraconservadoras? Seja como for, é preciso ter atenção aos possíveis efeitos desse movimento, começando pela pressão social, com sentimentos de inadequação ou culpa em mulheres que não desejam ou não podem se encaixar nesse padrão – segundo dados do IBGE, nada menos que 49,1% dos lares brasileiros eram mantidos por mulheres até 2022.
Antes de avançar, faço uma pequena retrospectiva sobre a evolução dos direitos das mulheres no ordenamento jurídico brasileiro, processo marcado por lutas, conquistas e desafios. Há pouco mais de 100 anos – período historicamente curto –, as mulheres brasileiras enfrentavam enormes barreiras sociais, culturais e jurídicas para alcançar a igualdade de gênero. No Código Civil de 1916, eram consideradas “relativamente incapazes” e dependiam da autorização masculina – marido, pais ou irmãos – para estudar ou viajar. Aos poucos, conquistamos avanços: em 1932, o direito ao voto (se o marido permitisse); em 1946, o voto feminino se tornou universal; em 1962, não era mais necessária a autorização para trabalhar ou para assinar documentos com o Estatuto da Mulher Casada, Lei no 4.121/1962; em 1988, a Constituição Federal consagrou a igualdade entre homens e mulheres em todos os aspectos da vida civil, política e social; em 2006, a Lei Maria da Penha criou mecanismos para coibir a violência doméstica contra as mulheres; e, em 2015, veio a Lei no 13.104, que incluiu o feminicídio no rol de crimes hediondos – só para citar algumas das mais recentes legislações.
Modismo passageiro ou não, movimentos pautados por extremo conservadorismo, como o tradwife, podem colocar em risco direitos femininos e conquistas importantes, como a redução da oferta de serviços públicos de saúde, educação e assistência social; a flexibilização de leis trabalhistas, afetando mais fortemente as mulheres, que já têm jornada dupla ou tripla; e o aumento da desigualdade econômica, com regras que dificultem o acesso a empregos melhor remunerados e oportunidades de ascensão na carreira.
Não são meras conjecturas. No início de fevereiro deste ano, a controladora do Google anunciou o encerramento das políticas de diversidade para contratação de funcionários. A mesma decisão foi tomada antes por outras big techs, como Amazon, Microsoft e Meta. Recentemente reeleito, o presidente estadunidense, Donald Trump, anunciou, ainda em campanha, que iria “proteger as mulheres, quer elas gostem ou não”, o que traz recado subliminar que remete à crença de que as mulheres não são capazes de decidir por si mesmas e precisam da tutela masculina, algo que se agrava com sua imposição.
No Brasil, o estudo “De política pública à ideologia de gênero: o processo de (des)institucionalização das políticas para as mulheres de 2003 a 2020”, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revelou o avanço do neoconservadorismo no Legislativo brasileiro e, posteriormente, no Executivo Federal, com a descontinuidade de políticas para mulheres. O estudo evidencia o processo de desmonte – iniciado em 2015 e aprofundado em 2019, quando passou a vigorar a agenda de restrição do papel social feminino, enfatizando concepção de família baseada em estereótipos de gênero ultrapassados e limitadores principalmente para a mulher.
Essas ações refletem tendência de retrocesso em conquistas históricas relacionadas aos direitos das mulheres, gerando preocupações entre ativistas e organizações dedicadas à promoção da igualdade de gênero. No extremo desse cenário, estão políticas que podem limitar o acesso das mulheres ao aborto legal, contracepção e outros serviços de saúde reprodutiva, além de promover visão que desencoraje a participação no mercado de trabalho e na política. E, finalmente, a erosão de direitos duramente conquistados.
A boa notícia é que, a partir de 2023, assistimos à reconstrução de políticas públicas, com a reaproximação entre o governo federal e as instâncias estaduais e municipais de políticas para mulheres. Em 2025, o Projeto de Lei Orçamentária Anual trouxe aumento de 56% no valor dos recursos do Ministério das Mulheres destinados à proteção e aos direitos desse público.
Apesar de muitas lacunas, em comparação com outros países democráticos, o Brasil apresenta avanços significativos na proteção de nossos direitos, mas temos lições a aprender com experiências internacionais. A efetivação dos direitos femininos depende não apenas de leis, mas de mudanças culturais, políticas públicas consistentes e do compromisso de toda a sociedade com a justiça e a equidade. Não importa qual seja a escolha individual, se pessoalmente opta pelos cuidados com o lar e a família, já que o livre arbítrio é também um direito. Porém, mais do que nunca, por uma questão de sororidade e empatia, é preciso continuar lutando pela defesa de tudo o que conquistamos até hoje e que, infelizmente, temos a impressão de que nos querem tirar, de maneira sórdida e abusiva.
Leia ainda – A edição especial do Mês das Mulheres traz entrevista de capa com a nova presidenta do STM, ministra Maria Elizabeth Rocha. Na conversa, a magistrada reforçou o compromisso com a ampliação da participação feminina nos espaços de poder, especialmente no meio militar.
Outras duas entrevistas exclusivas com mulheres importantes do mundo jurídico também ocupam a edição de março: com a nova presidenta da Anadep, Fernanda Fernandes, e com a juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo, Maria Rita Rebello, que estreia a nossa nova editoria mensal “Justiça pelo Brasil”.
Esta edição, que privilegiou artigos escritos por mulheres, traz temas fundamentais como o racismo obstétrico, os desafios para a plena igualdade de gênero no Poder Judiciário, a maternidade na magistratura e o enfrentamento da violência contra as mulheres. Boa leitura!
Conteúdo relacionado:
https://editorajc.com.br/2025/avancos-continuos-na-promocao-de-mulheres/