Pandemia de fake news

3 de agosto de 2020

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Não é novidade que hoje as redes sociais são as grandes responsáveis pela circulação de notícias em geral, desde as mais comezinhas, como troca de mensagens entre moradores de um condomínio, até sobre o teor de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

Tamanha a importância assumida por este novo meio de comunicação no atual cenário político brasileiro que, segundo o próprio Senado Federal, as redes sociais são responsáveis por influenciar no voto de até 45% da população.

Historicamente, a obtenção de informação nem sempre foi algo tão simples. Na Roma Antiga as notícias vinham através da acta diurna, espécie de placa fixada em locais públicos, por determinação de Júlio César, onde eram expostos os acontecimentos, em especial as ações do governo. Até o início da Idade Moderna, foram as cartas que cumpriram o papel de transmitir as notícias. Já na Veneza do Século XVI, os fatos eram reproduzidos a mão em uma folha, a qual era vendida ao preço de uma gazeta (moeda de baixo valor), expressão que tornou-se popular e identifica muitos periódicos até os dias atuais. Mas foi com Gutenberg que veio a revolução da imprensa e as notícias passaram a se disseminar com mais velocidade, por meio do então criado sistema de impressão com tipos móveis.

Já há cerca de uma década, não é errôneo afirmar que o controle da informação, assim entendido como quais e de que forma as pautas são, ou deixam de ser, veiculadas, era exclusivamente de jornais, sejam físicos – que ano a ano já vinham perdendo seu protagonismo – sejam televisivos – os mais difundidos entre todas as classes da população – sejam virtuais – que muitas vezes apenas replicam em meio eletrônico, as mesmas notícias oriundas dos outros canais.

Isso muda substancialmente com o crescimento exponencial das redes sociais, pois a informação deixou de ser controlada por poucas fontes e passou a ser de todos. Hoje, qualquer pessoa pode criar um perfil no Twitter e tornar-se um potencial veículo de produção e prolação de conteúdo informativo. Ocorre que a veracidade ou realidade da informação ficou relegada a segundo plano.

Assim, torna-se fundamental compreender o porquê da replicação massiva de tais notícias, ao contrário de uma informação fidedigna que busca desmentir a notícia falsa veiculada, recebendo repercussão infinitamente menor.

Com efeito, dois aspectos podem ser observados. Um primeiro que envolve a escolha/criação dos conteúdos, e um segundo que se relaciona com a compreensão do porquê essa propagação é excessiva e incontrolável.

Quanto ao primeiro, nota-se que a escolha de conteúdos e a formatação das manchetes é orientada pelo potencial de ter grande e rápido alcance, conquistando uma quantidade maior de cliques. Portanto, compreender o comportamento humano e a forma de reação das pessoas, tornou-se fundamental para que a notícia tenha “aprovação”. Descarta-se assim, por completo, o papel de bem informar. Reações como ódio, indignação e principalmente a confirmação de nossas opiniões é que estão na pauta da criação dos conteúdos, já que atraem mais a atenção.

Soma-se a isto a linguagem simples, direta e acessível a todas as camadas da população, caracterizadoras destes conteúdos, diferentemente de um artigo científico, cuja escrita costumeiramente é técnica e complexa.

O segundo aspecto reside em entender por que o público alvo das notícias falsas as propaga sem o mínimo interesse de verificar sua veracidade.

Aqui, um dos fatores é a facilidade proporcionada pelas novas tecnologias, que permitem a difusão instantânea e em larga escala de conteúdo (compartilhamentos no Facebook, encaminhamento de mensagens no WhatsApp, retweets no Twitter, etc.), como bem explica Francisco Correio et al, em seu artigo “A influência do ‘filtro bolha’ na difusão de fake news nas mídias sociais: reflexões sobre as mudanças nos algoritmos do Facebook”.

Outro fator, e talvez o principal, é que as mídias sociais acabam por segmentar e agrupar as pessoas de acordo com as mesmas opiniões, que passam a consumir apenas conteúdos previamente produzidos com a intenção de confirmar suas versões de mundo. É o que Daniel Kahneman chama de viés de confirmação, quando o receptor da mensagem cria uma visão distorcida da realidade, acomodando a complexidade presente em determinado assunto, para adaptá-la às suas crenças e preferências.

Farhad Manjoo alerta que a mente humana tende a escolher informações que sigam as suas ideologias e rejeitar aquilo que é contraditório, ou seja, as pessoas involuntariamente buscam criar um ambiente informativo próprio, que confirme aquilo que acreditam seja verdade.

Nesse sentido, o conforto de se posicionar nas mídias sociais, agregando amizades e participando de debates de acordo com o que acreditamos, facilita a nossa forma de combater ideias contrárias, confirma posicionamentos convergentes e nos permite criar a realidade que queremos, mesmo que implique em uma visão de mundo distorcida dos fatos. Portanto, somos direcionados a criar uma realidade paralela, sendo ela a versão que nos interessa.

Diante de todos esses aspectos, nota-se que esse fenômeno não será facilmente superado, já que ele explora sentimentos intrínsecos à mente humana, tornando os mecanismos de criação e reprodução muito mais eficientes que os de enfrentamento.

Precisamos, portanto, conceber que o problema tem múltiplas facetas e complexidades, de forma que seu enfrentamento exige muito mais do que simples tentativas de penalizações, pois passa por mudança de postura pessoal, envolvendo a própria cultura (crenças, hábitos e valores).

Se pudéssemos fazer um paralelo entre as fake news e a pandemia da covid-19, poder-se-ia dizer que, enquanto o distanciamento social apresenta-se como uma das ferramentas mais eficazes para combater a proliferação do coronavírus, para iniciar o enfrentamento às fake news, as pessoas deveriam se aproximar de posicionamentos antagônicos aos seus, possibilitando que suas bolhas artificiais da realidade sejam rompidas, pois, somente com um efetivo interesse pela verdadeira informação, filtrada por discussões nas quais todos os grupos sociais participem de forma harmônica, é que a desinformação poderá ser vencida.

Notas________________________

NOTAS

1 “Sete em cada dez brasileiros usam as redes sociais para se informar. É o que indica o Papo Digital, o estudo mais recente da Hello, uma agência de pesquisa de mercado e inteligência”. Disponível em: < https://olhardigital.com.br/noticia/pesquisa-aponta-sete-em-cada-dez-brasileiros-se-informam-pelas-redes-sociais/82274 >.

2 Redes sociais influenciam voto de 45% da população, indica pesquisa do DataSenado. Disponível em: < https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/12/12/redes-sociais-influenciam-voto-de-45-da-populacao-indica-pesquisa-do-datasenado >.

3 Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg (1400-1468) foi um inventor, gravador e gráfico do Sacro Império Romano-Germânico.

4 Existem cerca de 7,6 bilhões de pessoas no mundo. Desse total, 4 bilhões (53%) têm acesso à internet; 3,1 bilhões (42%) são usuários ativos de redes sociais; 2,9 bilhões (39%) usam as redes sociais pelos seus dispositivos móveis, especialmente os smartphones. Disponível em: < https://www.peepi.com.br/blog/estatisticas-redes-sociais-2018/ >.

5 “No jornalismo o espetáculo atua de maneira contundente. Sobre esse processo Arbex (2001) criou o conceito de ‘showrnalismo’. A constante competição entre os veículos de comunicação de massa para dar a notícia fez com que a velocidade ganhasse espaço e maior importância na mídia, transformando as notícias em espetáculos de curta duração que não propiciam reflexão alguma para o público. A rapidez da notícia tem mais relevância do que sua contextualização. A qualidade cede à quantidade de informações. Como em uma telenovela, foi criada uma polarização entre bem e mal nos noticiários, que investem na força das imagens para manipular a opinião do telespectador conforme lhes convém”.

BARIANI, Bruna; LINHARES, Ronaldo Nunes. Sensacionalismo: em busca da catarse e do vínculo social. Disponível: < http://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/resumos/R10-0200-1.pdf >.

6 BESSI, Alessandro; et al. Science vs Conspiracy: Collective Narratives in the Age of Misinformation. PLoS ONE 10(2). Disponível em: <  https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0118093 >.

7 SASTRE, Angelo; CORREIO, Claudia Silene Pereira de Oliveira; CORREIO, Francisco Rolfsen Belda. “A influência do ‘filtro bolha’ na difusão de fake news nas mídias sociais: reflexões sobre as mudanças nos algoritmos do Facebook”. Revista GEMInIS, São Carlos, UFSCar. Disponível em:  https://www.researchgate.net/profile/Angelo_Sastre/publication/329633711_A_influencia_do_filtro_bolha_na_difusao_de_Fake_News_nas_midias_sociais_reflexoes_sobre_as_mudancas_nos_algoritmos_do_Facebook/links/5d5589b892851cb74c6f5c0e/A-influencia-do-filtro-bolha-na-difusao-de-Fake-News-nas-midias-sociais-reflexoes-sobre-as-mudancas-nos-algoritmos-do-Facebook.pdf .

8 KAHNEMAN, Daniel. “Rápido e devagar: duas formas de pensar”. Tradução por Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

9 SEGISMUNDO, Wellington Castro; GUIMARÃES, Marta Mencarini. “Fake news: uma análise de agências que ajudam a identificar a veracidade de uma notícia”. Disponível em:  http://nippromove.hospedagemdesites.ws/anais_simposio/arquivos_up/documentos/artigos/ed694236198ef8de603727410b13e39c.pdf .

10 Sites de verificação e classificação de notícias são ferramentas importantes para esse combate, mas para alcançarem efetividade a ponto de se contrapor ao maciço volume de noticiais falsas, o receptor precisa ter interesse na verificação antes de propagar a notícia, e isso, como vimos, ainda nos é distante.

11 Fundação Oswaldo Cruz. Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Glossário do distanciamento social. Informe ENSP. Disponível em: < https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/41170 >.