Os tóxicos na realidade jurídico-social

14 de julho de 2011

Compartilhe:

(Artigo originalmente publicado na edição 92, 03/2008)
 
Há no mundo contemporâneo um sentimento generalizado de perplexidade. A aceleração do curso da história insuflada pelos meios hodiernos de comunicação, aperfeiçoamento tecnológico e novas descobertas científicas, gerou um paradoxo: à medida que desenvolvem e atingem índices maiores de progresso e realizações materiais, os homens recebem a contracarga de uma defasagem estrutural de natureza ética. As repercussões dos procedimentos disrítmicos apresentam-se polimorfas, na medida em que se coadunam com a diversidade das estratificações sociais, porque, aceitando-se ou não as teorias cíclicas da história, a moral dos povos evolui ou involui ao sabor dos fluxos político-jurídicos e psicossociais. Neste contexto e como forma de comportamento desviado, deparamos com a problemática dos tóxicos.

Conhecidos desde a Antigüidade pelos gregos, romanos, egípcios e chineses, sempre foram utilizados tanto como panacéia quanto como afrodisíaco ou com finalidades místicas e religiosas.
 
Assim, o ópio entre os asiáticos, os derivados da coca entre os incas, a cannabis sativa entre os hindus e maometanos desde um milênio a.C., para não incluirmos as libações alcoólicas de Noé ou as bacanais das procissões de Dionísio e os festins dos Césares, fizeram presença durante o perpassar dos séculos de evolução da humanidade. Estiveram sempre, porém, localizados; jamais eclodiram ou se alastraram de maneira violenta como hoje, a provocar e contribuir, em todo o mundo, para a degradação dos costumes, tormento à eugenia e corrosão dos alicerces da própria nacionalidade. Daí a percuciente observação de T. B. Bottmore, renomado professor da Universidade Inglesa de Sussex, de que, talvez agora, já se possa inverter a conhecida frase de Marx e dizer que “o ópio é a religião do povo”.
 
Entretanto, em que pese essa realidade, não é possível abolir a pesquisa, a industrialização e os estudos para a descoberta das drogas.
 
O professor A. C. Pacheco e Silva, em seu livro “Desajustes Psicossociais”, afirma que “grande número de pesquisadores – bioquímicos, fisiologistas, eletroencefalografistas, farma-cologistas, anatomopatologistas, neurologistas, neurocirurgiões e psiquiatras – trabalha em vários centros científicos do mundo no propósito de aprofundar os seus conhecimentos dos efeitos das drogas recém-descobertas, já estando na posse de dados positivos que permitem prever, num futuro não longínquo, grandes surpresas nesses domínios”.
 
De sorte que a solução não está, evidentemente, na proscrição de sua cultura ou na erradicação de sua industrialização, pois, além de simplista, qualquer medida nesse sentido seria anticientífica.
 
Surge, assim, grande indagação: como responder à problemática que atormenta as sociedades modernas?
 
A experiência de muitos anos de judicatura criminal, aliada aos estudos, leituras e viagens de intercâmbio cultural, permite-nos asseverar que só lograremos fazê-lo na medida em que compreendermos toda a fenomenologia das drogas, mas, principalmente, suas causas.
 
Ora, o uso da droga, que a Organização Mundial de Saúde define como “qualquer substância, natural ou sintética, que, introduzida num organismo vivo, pode modificar uma ou mais de suas funções”, tem etiologia diversificada.
 
Distribuídas em três grandes grupos, denominamos psicolépticos, psicoanalépticos e psicodislépticos, e atuando diretamente sobre o sistema nervoso central, sejam deprimindo, estimulando ou despersonalizando o usuário, as drogas vêm sendo utilizadas por imposição de fatores de ordem econômico-cultural, político-psicológica e jurídico-social. É, pois, com fulcro na análise das causas, dos fatores e da função do Direito nas sociedades, e, portanto, no estudo da heurística, de que nos fala Orlando Gomes em “Introdução ao Direito Civil”, que devemos enfrentar a poluição dos tóxicos, que está a exigir não mais apenas a atenção, como dizíamos no douto recinto da Escola Superior de Guerra, mas a ação efetiva de todos aqueles que detêm uma parcela de autoridade no grupamento societário.
 
As dissimetrias das relações grupais e familiares conduzem o jovem imaturo à indiferença pelos anseios comunitários, ao afrouxamento de suas reservas morais em proteção às experiências e sensações desconhecidas, ao vício e ao crime.
 
A estatística de Quetelet, que desbravou os atalhos quantitativos dos fenômenos sociais, tem desempenhado importante tarefa no fornecimento de dados elucidativos acerca das diversas causas econômicas da criminalidade, apesar de elas existirem, na maioria das vezes, em concomitância com outras, tais como imoralidade, incultura e irreligiosidade. O problema da moradia, verbia gratia, assevera J. M. M. Riocerezo, “no es ni español, ni francés, ni italiano, ni inglês. El problema de la vivienda es universal. Incluso norteamericano, país de materias primas rápidas y fuertes finanzas y muy eficaz productividad. En todo el mundo hay una realidad: La escasez de locales para constituir hogar. Comenzó a señalarse al término de la primera guerra europea, y se ha agudizado en la segunda. En todas las grandes ciudades y en muchas de las pequeñas hay miles de seres humanos que carecen de un hogar habitable, cuando no de un simple techo. Es natural que estos hombres sean presa de la angustia”.
 
Ora, essa dramática realidade dá bem a idéia de como pode medrar nos guetos e nas favelas, principalmente, toda a sorte de violações, sejam de natureza moral, como de ordem legal.
 
A inevitável promiscuidade e o conseqüente estado de espírito dos que se vêm violentados em sua mais sagrada intimidade contribuem, pelo afrouxamento de suas já enfraquecidas reservas éticas, para o incremento das transgressões legais, não se devendo esquecer, à vista dos dados estatísticos antes referidos, o êxodo dos trabalhadores do campo, atraídos pela miragem das cidades grandes como razão efetiva de agravamento do problema. Acrescente-se a isso a praga do analfabetismo, cujo índice assustador nos leva a diagnosticar parte do que podemos denominar como estímulos espontâneos de desregramento.
 
Dizia Sócrates que “o homem pratica o mal porque desconhece o bem” e, realmente, a ignorância dos comezinhos princípios éticos, religiosos, culturais e até higiênicos, impede a justa seleção dos valores, impossibilita a racionalização de sua problemática vital, provoca-lhe a impotência da conscientização, deixa-o, enfim, psicologicamente inerme.
 
Por outro lado, são muitas as indicações sociológicas acerca dos motivos da desagregação da família. Sejam, porém, o progresso científico e tecnológico em todos os ramos de atividades a impedir a secular concentração de seus membros, a necessidade econômica de que todos trabalhem fora de casa e a conseqüente dificuldade de conciliação de horário para o diálogo, as rusgas e os atritos dos pais diante dos filhos – oriundos dos desajustamentos conjugais –, a concessão à pornografia como forma de afirmação, enfim, quaisquer desses, um fato é inconteste: “A célula máter da sociedade” sofre um processo de erosão.
 
Não é difícil, assim, identificar o tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que provoquem dependência física e psicológica, ainda que esta realidade possa constituir-se também como causa dos desequilíbrios comunitários na medida em que se estabelece a ruptura entre a estrutura cultural e a estrutura social.
 
As teorias sociológicas da delinqüência já abordaram o fenômeno da anomia, procurando explicá-lo como “sintoma de dissociação entre as aspirações culturalmente prescritas e as vias socialmente estruturadas para realizar essas aspirações”, segundo Robert Merton, ou como aprendizagem decorrente de um excesso de associação de modos de conduta delinqüente em relação com os modos não delinqüentes, consoante a teoria da associação diferencial do professor Edwin Sutherland. Mas, aceitando-se ou não as conclusões das doutrinas estruturais ou as das subculturais – incluindo-se nestas as que enfocam os microcosmos subculturais da sociedade para justificar os desvios como resultado de problemas de adaptação, conforme apregoa Albert Cohen –, inegável será reconhecer o esforço desenvolvido pelos teóricos, no sentido de uma explicação sociológica para questões que se ramificam também nas paragens da psicologia. Daí a pretendida conciliação de Cloward e Ohlin, com sua teoria de oportunidade diferencial, em que indigitam a subcultura de abandono como principal conduto para o uso das drogas.
 
Entretanto, estariam esgotadas aqui as vias de acesso aos patamares da realidade social para analisá-la e contê-la nos parâmetros da tranqüilidade global?
 
A resposta há de ser, forçosamente, negativa, na medida em que a elite se conscientize de sua responsabilidade no aproveitamento da potencialidade social, revele maturidade e suficiente percepção histórica, compreendendo que nem as ciências teleológicas nem as causal-explicativas, tomadas separadamente, estarão em condições de resolver a problemática das toxicomanias, que se agrava quantitativa e qualitativamente, interessando já camadas ponderáveis da sociedade que, pelo maior poder aquisitivo, passam a sofisticar o uso, os meios e a própria natureza das drogas, disseminando-as ameaçadoramente. E, talvez por excessiva preocupação com a ciência econômica, as sociedades modernas tenham subestimado conflitos de importância vital, ainda que, muita vez, subjacentes.
 
Entretanto, a união e o congraçamento de todas as ciências, numa espécie de ecumenismo jurídico-científico, abrangendo tanto os estudos psicológicos de introspecção como as experiências comportamentistas, aliados à força do Direito, estarão em condições de esquematizar as linhas de defesa.
 
Diante desta realidade objetivamente constatável, cumpre examinar a situação jurídica abrangente da lei como expressão formal do direito e que constitui, afinal, o estatuário natural do que Vierkandt, segundo Pinto Ferreira, em “Teoria Geral do Estado”, chamou de ordenamento existencial do grupo, e “cujo fundamento e origem se encontram na vontade coletiva ou convivência grupal, pois a sua finalidade é a realização dos impulsos vitais da comunidade, o seu escopo é o bem comum da sociedade”.
 
Como ressalta o renomado professor, procede-se, hodier-namente, a uma síntese dialética do Direito, geradora, por seu turno, de uma teoria unitária lastrada numa análise socioeconômica e moral. Assim, para compreensão técnico-positiva do Direito como norma, urgem o reconhecimento e o exame de três compartimentos distintos: a infra-estrutura sociológica, a superestrutura ideológica e a normatividade jurídica.
 
O primeiro exige a adesão do grupo societário para que o Direito se converta em norma de conduta; o segundo tem por objetivo a idéia de justiça, ou seja, aquela consciência jurídica pura que, segundo Rousseau, raciocina no silêncio das paixões – vale dizer, aquele sentimento imanente no homem, radicado em seu eu puro –; finalmente, o terceiro impõe a obediência coletiva e tem como raiz a consciência grupal de que o ordenamento existencial é válido.
 
Destarte, se não se apresentar ética ou economicamente plausível e não estiver lastreado no jurídico-social, estará paradoxalmente propiciando e até incentivando a criminalidade em geral.
 
Por isso a importância de uma legislação coerente, capaz de prevenir e reprimir sem a iniqüidade de um autoritarismo ingênuo ou inconseqüente a liberalidade comprometedora do verdadeiro princípio de autoridade, sob pena de violentação de sua natureza, como forma de atuação no Direito, resolvendo conflitos ou pontificando como norma de conduta.
 
Em sua clássica monografia, “O Motivo e o Dolo”, afirma Souza Neto, com inegável procedência, que “a norma penal não é finalista; ao contrário do Direito que é dinâmico, a lei é estável, parada, mas, a despeito desse caráter, ela representa uma quantidade e uma qualidade do Direito e, conseqüentemente, da vida, recolhida num determinado momento histórico”. E, realmente, na medida em que o Direito se divorcia do sentimento social coletivo, ignorando os anelos comunitários, surge como causa e fator de incidência indireta dos problemas criminais.
 
A norma jurídica, cujo continente estratifica-a típica e atipicamente – desde as formas primárias, como a Constituição, e secundárias, como as leis ordinárias, decretos e regulamentos, o costume e a jurisprudência –, possui um conteúdo dogmático abrangente das idéias religiosas, filosóficas, científicas, artísticas e políticas, mas não pode descaracterizar seu conteúdo corpóreo identificável nos anseios da utilidade, do interesse, do desejo e da necessidade.
 
Destarte, sem pretender incursões na órbita das especulações jurídico-filosóficas ou discutir os postulados essencialistas ou existencialistas das diversas escolas, na verdade, só a compreensão do Direito e da sua relevância na sociedade atual poderá conduzir à solução dos entrechoques das paixões e dos problemas comunitários.
 
A ameaça explosiva dos tóxicos que se encarta nos ônus que a comunidade vem pagando pelo progresso precisa ser contida porque já se insere na área de segurança nacional, e só o Direito, em sua realização plenária, com a adesão do grupo social conscientizado, terá condições de fazê-lo.

 

 
João de Deus Lacerda Menna Barreto
Advogado
Desembargador aposentado do TJ/RJ