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Os paradoxos da Democracia Ideológica

6 de novembro de 2018

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Se o Estado brasileiro preconiza a adoção de um sistema democrático, consubstanciado em uma democracia representativa a mesma não subsiste. Dentro da tripartição de funções estatais apresentada por Platão, difundida por Montesquieu, na qual assiste ao Executivo a função típica de gerir a administração púbica, ao Judiciário de compor os conflitos de interesses colocados a sua apreciação, ao Legislativo incumbe a elaboração de texto normativos impessoais.

Neste contexto, em uma perspectiva teórica e prática, propõe-se a análise da diferença que geraria no jogo político dos partidos – na dialética entre maiorias e minorais – se em um Estado de autonomias o chefe de governo derivasse seus poderes de uma maioria contingente quanto não perigosa e frágil, na qual o peso de um partido minoritário pode ser determinante, mas que fosse investido em suas funções por sufrágio universal direto como nas repúblicas presidencialistas. O exame induz a reflexões mais aprofundadas sobre o conceito de democracia.

Não é incomum a confusão entre Governo e Estado. O Governo tem por função estabelecer o modo de distribuição do poder político entre os cidadãos. Ao Estado compete assegurar adequadamente a articulação dos grupos de população, de conformidade com determinados modelos que devem integrar a pluralidade de fatores regionais, étnicos, econômicos ou outros que permitam identificar esses grupos de dar-lhes tratamento adequado. São formas de Governo, para exemplo, a Monarquia, a República ou mesmo a Ditadura. São formas de Estado, por exemplo, a Confederação, a Federação, o centralismo, etc.

Nos sistemas de representação democrática, o calcanhar-de-aquiles consiste em considerar o povo, enquanto conceito político, como mera soma de cidadãos formalmente iguais perante a lei. Este conceito representa indiscutivelmente um grande avanço sobre os regimes de privilégio – de ordens, estamentos ou outros – mas na prática tem mostrado a ocorrência de um fenômeno que em ótica se conhece como visão de imagem invertida. De fato, o sufrágio universal jamais permitiu o acesso ao poder dos menos favorecidos. Muito ao contrário.

Convém também refletir sobre as consequências do formalismo em políticas, quando o colapso da representação através dos partidos é um fato à vista de todos. A representatividade tornou-se característica de indivíduo, não de partidos.

O correlato conceitual de cidadãos abstratos é o conceito de sociedade como totalidade abstrata, isto é, homogênea e não diferençada, na qual está completamente desalojada a noção de povo na pluralidade de extratos e estruturas, nos quais se integram os cidadãos como indivíduos social e economicamente desiguais, cuja capacidade efetiva de concorrer concretamente nos foros públicos é tão diferente que, numa altíssima porcentagem, tende praticamente para zero. Assim, a abstração formalista do pensamento político é um habilidoso giro de chave que permite converter a democracia em seu contrário, a saber, o inexpugnável baluarte no qual se entrincheiram as oligarquias contra a imensa maioria do povo.

O povo, como totalidade, expressa a situação real dos indivíduos de carne e osso como os famélicos brasileiros do agreste e do semi-árido nordestino, inseridos em estruturas que configuram a sua desigualdade de poder. Se se determina que a democracia – que deve ser o governo do povo, pelo povo e para o povo – consiste essencialmente nos mecanismos previstos para produzir maiorias de votantes formalmente iguais, então esse nobre conceito equivale a uma abstração que entroniza o êxito eleitoral – obtido em escandalosas condições de desigualdade real – como paradigma do autêntico.

O povo é o resultado de determinações reais, concretas, econômicas, sociais, políticas, culturais, que conforma a vida dos cidadãos em suas situações de classe e em suas funções no progresso produtivo e não uma totalidade abstrata e ideológica na qual essas determinações se esfumam em um igualitarismo jurídico ilusório.

A versão de democracia que temos visto se apresenta como um processo degradado, que se equipara à arte de ganhar eleições mediante conhecidas manipulações da massa média, como o populismo, e à repartição dos prebendas políticas e econômicas com manifesta violação do espírito e das regras do Estado democrático de Direito, como uma das formas de corrupção.

A concepção genuína de democracia representa a antítese de todo um crescente processo de abstração: indivíduo-mercadoria-dinheiro, no espaço econômico, nesta ascendente escala de abstração o votante e o dinheiro são consagrados como os fins importantes embora sejam categorias despojadas de todas as notas específicas de existência política real.

O impulso decisivo para essa concepção formalista da sociedade democrática foi a translação do postulado da igualdade jurídica de todos os cidadãos, desde o âmbito da política para o âmbito da economia. Supõe-se como algo axiomático que, no livre mercado, a tendência é de sempre intercambiar quantidades de igual valor, e que todos os concorrentes têm plena liberdade para intercambiar ou não as suas respectivas mercadorias, entendendo-se que a força de trabalho, de qualquer natureza, é também uma mercadoria como as demais, em termos econômicos. A fusão de ambas as noções, em sua aplicação prática, consolidou a falácia da equação cidadão x indivíduo real concreto.

O liberalismo político, assumido no seu contexto real e não só formal, tem necessariamente que limitar e corrigir o liberalismo econômico, mediante um ordenamento jurídico que permita as intervenções indispensáveis do Estado no mercado, a fim de contrabalançar a desigualdade dos indivíduos e redistribuir, pelos procedimentos adequados, os frutos da acumulação capitalista obtida durante muitas gerações.

Somente superando as falsas abstrações formalistas será possível construir formas de organizações econômicas, sociais e políticas fundadas nos princípios de co-responsabilidade e de solidariedade verdadeiras. As concessões cívicas (cestas de alimentos) que aplacam as consciências, se isoladas dos direitos humanos fundamentais, não somente são incapazes de gerar uma sociedade realmente democrática, senão que destroem inevitavelmente os alicerces de qualquer Estado democrático.

Um dos imperativos primeiros para um governo responsável consiste em reformar profundamente o modelo vigente de democracia, começando pela reestruturação e funcionamento dos partidos políticos cuja grave crise de identidade é urgente resolver. O sistema político vigente é perverso, porque ao invés de viabilizar os objetivos constitucionais da República acaba fomentando exatamente o contrário do que se busca coibir. A reforma política é urgente porque se liga a um problema que o Brasil sofre historicamente, qual seja, a falta de governabilidade.

Para Churchil, a democracia é a pior forma de governo com exceção de todas as demais! Talvez seja mesmo essa a grande força da democracia em relação ao regime totalitário: Confessar-se falível com imperfeições. Entretanto essa imperfeição da democracia no Brasil é tão aclamada que a reforma política se torna imperiosa.

Ao avançar sobre essa temática torna-se irrefutável que o sistema político brasileiro, de fato, facilita a corrupção. Isso porque realmente não sabemos em quem votamos. Esse desconhecimento deve-se ao sistema político partidário que, sob o crivo do coeficiente eleitoral, faz com que o voto depositado em um candidato beneficie outro, elegendo-o. Se não é possível saber em quem se vota não há como saber de quem cobrar, de outra sorte, se os representantes eleitos desconhecem seus eleitores, não têm destinatários certos, logo, desconhecem a quem devam satisfações. Essa temática tem sido muito bem abordada pelo ministro Luís Roberto Barroso em seu discurso sobre a reforma política.

No governo há um nítido enfraquecimento das instituições, nas quais constantemente a atuação dos poderes Executivo e Legislativo não fluem como deveriam, colocando o Poder Judiciário muitas vezes em cheque e na contramão da separação dos poderes, forçando-o a atuar onde não precisaria.

Neste exato momento é que a democracia representativa apresenta seu mais evidente descompasso, pois o Poder Legislativo encarregado de criar os consensos entre os representantes e representados queda-se inerte, prestigiando corporações quando não os interesses pessoais dos parlamentares.

A consequência mais evidente deste sobressalto está sendo evidenciado no fenômeno denominado de “ativismo judicial”, ou seja, o Poder Judiciário está fazendo as vezes do Poder Legislativo.

De outro vértice, o sistema eleitoral atual frauda a vontade do eleitor, uma vez que apenas 10% dos eleitos recebem o voto direto das urnas. Há uma nítida inversão na representatividade. E o sistema partidário subverte a soberania do povo, fazendo com que ideologias partidárias mascarem os reais objetivos de pequenos grupos.

O que é mais grave, o Brasil não supera as suas crises, resigna-se a postergá-las para o futuro, como consequência há um volume de demandas reprimidas e sem solução, as quais só se justificam diante da omissão do Poder Legislativo em não criar os consensos imprescindíveis com os representados. Temos a crise da previdência, crise tributária, crise de representação política, crise de credibilidade no cenário internacional, as quais não são solucionadas postergadas, assim avoluma-se o déficit fiscal nas contas públicas, uma abissal desigualdade social, um abismo intransponível entre representante e
representados.

Nota-se claramente a preponderância das vontades de minorias cujas vertentes em nada têm se relacionado com as necessidades do povo. Enquanto não houver uma mudança concreta no sistema político, principalmente no que se refere à representatividade, o povo vai continuar sentindo na pele o desprezo daqueles que deveriam representá-los.

Para um país que adota como regime o modelo democrático de direito, a soberania não pode advir de nenhum outro lugar, senão do povo. Se assim não for, pode ser qualquer outra coisa, menos democracia. Aliás, democracia sem a participação do povo não passa de ideologia, e sabe-se bem que ideologias, além de não serem capazes de atender os anseios do povo sempre acabam mal. A experiência mostra que em nome de ideologias de grupos minoritários, costuma-se pagar um alto preço.

Importante pontuar que uma das facetas da ideologia é ser usada como instrumento de dominação que age por meio de convencimento – persuasão ou dissuasão – de forma prescritiva, alienando a consciência humana, e muitas vezes mascarando a realidade. Sob esse viés, adverte Jorge Mario Bergoglio, condenando as ideologias políticas que pretendem representar os indivíduos, mas terminam em regimes ditatoriais.

Em conclusão, uma mudança é fundamental, mas não apenas no sistema político. É necessário que haja uma mudança comportamental em toda a sociedade. O cidadão não tem somente o direito de votar, mas também tem o dever de acompanhar seus representantes tornando-se responsável por seus atos.

Não basta garantir o voto direto, secreto, universal e periódico. É necessário salvaguardar que seja exercido de maneira plena e eficaz, ou seja, ausente de interferências ideológicas e desvios que maculam a soberania do povo.