O peso do voto: crédito majoritário e os limites do cram down na jurisprudência do STJ

4 de agosto de 2025

Gabriela Campostrini Advogada

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A recuperação judicial é um instituto que, na precisa dicção do art. 47 da  Lei no 11.101/2005, busca preservar a empresa em crise econômica, salvaguardando, simultaneamente, sua função social. Nessa perspectiva, destaca-se a Assembleia Geral de Credores (AGC), que desempenha papel fundamental nas deliberações quanto à viabilidade e à aceitação dos planos de recuperação apresentados pelo devedor. O regime previsto pelo art. 45 exige que todas as classes aprovem o plano proposto, observando quóruns específicos para assegurar legitimidade democrática e segurança jurídica nas decisões tomadas.

Não obstante, a legislação prevê mecanismo excepcional denominado cram down (art. 58, §1o), pelo qual o magistrado, cumpridos requisitos rigorosos e cumulativos, pode homologar o plano mesmo contra a vontade de determinada parcela dos credores. Esses requisitos são claros: é preciso o voto favorável de credores detentores de mais da metade do valor total dos créditos presentes, aprovação pela maioria das classes e, na classe que rejeitou, adesão mínima superior a um terço dos credores.

A jurisprudência da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ – AgInt no AREsp: 1551410 SP) tem admitido, em hipóteses excepcionais, a mitigação dos requisitos legais estritos para a aplicação do cram down, notadamente quando a rejeição do plano de recuperação judicial decorre da atuação isolada de um único credor, cuja conduta se revele abusiva e dissonante do interesse coletivo da comunhão de credores. Esse entendimento visa evitar que a recusa infundada de um único credor inviabilize a recuperação judicial de uma empresa economicamente viável, comprometendo empregos, contratos e a ordem econômica. 

Nesse contexto, o STJ tem admitido a mitigação dos requisitos legais para a aplicação do cram down, autorizando o juiz a impor a aprovação do plano de recuperação judicial mesmo sem o cumprimento integral das exigências do artigo 58, § 1o, da Lei no 11.101/2005, desde que evidenciado o abuso de direito por parte do credor dissidente. Essa flexibilização busca assegurar a efetividade do princípio da preservação da empresa, evitando que interesses individuais se sobreponham ao bem coletivo.

Em tais circunstâncias, o juízo recuperacional, em fidelidade ao princípio da preservação da empresa, consagrado no art. 47 da Lei no 11.101/2005, pode legitimamente flexibilizar a aplicação literal do art. 58, § 1o, da mesma lei, evitando que o voto obstativo de um credor hegemônico inviabilize a reestruturação econômica do devedor. O STJ dispõe que a função do Poder Judiciário, ao se deparar com deliberações assembleares marcadas por assimetrias de poder entre os credores, não é a de se comportar como um homologador automático da vontade manifestada, mas, sim, de atuar com sensibilidade jurídica na aferição da licitude e razoabilidade do dissenso. Isso se aplica, sobretudo, quando o voto dissidente compromete, de forma irrazoável, a continuidade da atividade empresarial, prejudicando trabalhadores, fornecedores e a própria ordem econômica.

Em outro aspecto, mas também a respeito do exercício abusivo do direito de voto em Assembleia Geral de Credores, em outro julgamento (REsp 1.880.358/SP), também da Quarta Turma, o STJ reverteu decisão anterior do TJSP, que qualificara como abusivo o voto contrário de um banco, credor majoritário que detinha 95% do passivo da recuperanda. A decisão do STJ baseou-se, fundamentalmente, na ausência dos requisitos cumulativos exigidos para o cram down, observando que não se verificaram os quóruns necessários previstos pela lei. Além disso, ponderou-se que não era razoável exigir, do credor majoritário, que concordasse com um deságio de 90%, redução que significaria renunciar a quase integralidade de seu crédito, enquanto outros credores, titulares de apenas 5% do passivo, enfrentariam perda proporcionalmente menos gravosa.

Esses precedentes destacam o ponto central na discussão contemporânea sobre a recuperação judicial: o uso criterioso do cram down. Ao enfatizar que essa figura excepcional não pode ser convertida em regra ordinária, o STJ reitera a importância da segurança jurídica e da razoabilidade econômica. O Tribunal advertiu, também, contra a banalização do conceito de abuso do direito de voto. Ficou claro que apenas em circunstâncias inequívocas de desvio de finalidade, caracterizado por comportamento desleal ou irracional do credor, o voto contrário pode ser reputado abusivo. Nesse sentido, o art. 187 do Código Civil é iluminador, pois direciona a interpretação das condutas credoras pela lente da boa-fé objetiva e da função social do direito.

A par da aparente divergência nos desfechos adotados nos julgados REsp 1.880.358/SP e AgInt no AREsp 1.551.410/SP, ambos proferidos pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, revela-se eixo dogmático comum que orienta a ratio decidendi de ambos: a qualificação jurídica do abuso no exercício do direito de voto por parte do credor dissidente.

Com efeito, a jurisprudência consolidada do STJ rechaça concepção puramente quantitativa ou formalista do direito de voto, exigindo que este seja exercido segundo os parâmetros da boa-fé objetiva, da função social do crédito e da cooperação processual. Nessa linha, ainda que os julgados aparentem tensionar-se – ao passo que um reconhece a validade do cram down mediante a desqualificação do voto contrário (AREsp 1.551.410/SP) e o outro, ao reverso, afasta a aplicação do cram down por entender legítimo o dissenso de um credor majoritário (REsp 1.880.358/SP) – ambos se alinham quanto à necessidade de aferição substancial da motivação do voto.

No primeiro precedente, o voto isolado do Banco credor foi reputado abusivo por ausência de motivação idônea e por se contrapor, de forma desproporcional, ao consenso quase unânime das demais classes, inviabilizando injustificadamente a superação da crise. A Corte, nesse caso, valorizou o princípio da preservação da empresa como fator de ponderação capaz de justificar a mitigação excepcional dos requisitos formais do art. 58, § 1o, da Lei no 11.101/2005.

Já no segundo julgamento, ao analisar o voto de um banco que detinha 95% do passivo da recuperanda, o Tribunal rechaçou a pecha de abusividade, reconhecendo a legitimidade de sua negativa diante da proposta de deságio de 90% sobre seu crédito. A deliberação, embora solitária, foi fundamentada em razões objetivas e razoáveis, e não em intuito meramente obstrutivo. Com isso, o STJ reafirmou que o cram down não pode ser convertido em atalho procedimental para compelir o credor a aceitar prejuízos excessivos, sob pena de esvaziar a própria lógica do crédito e da paridade entre os credores.

Essa dualidade de resultados, longe de evidenciar incoerência, confirma a coerência sistemática da jurisprudência na aplicação do conceito jurídico de abuso. Em ambos os casos, a Corte Superior atuou como intérprete da densidade normativa do art. 187 do Código Civil no âmbito recuperacional, ora para coibir o exercício irracional e isolado do poder de veto, ora para resguardar o direito de resistência motivada ante as  propostas desproporcionais.

Com isso, sedimenta-se a compreensão de que a aferição do abuso de direito de voto, no campo da recuperação judicial, reclama um juízo de ponderação entre a liberdade do credor e os imperativos de reestruturação empresarial. Não se trata de proteger o devedor a qualquer custo, mas de equilibrar, à luz dos princípios da boa-fé e da função social da empresa, os vetores tensionais entre autonomia privada e interesse coletivo no soerguimento do ente empresarial.

Compreende-se, então, que voto do credor, proporcional ao crédito detido, deve ser exercido com responsabilidade e compromisso ético perante os demais interessados. Assim, o credor majoritário assume, por vezes, papel decisivo e central, desde que não extrapole os limites da razoabilidade e da colaboração necessária ao soerguimento empresarial.

Ainda assim, é fundamental reconhecer que a rejeição inicial de um plano não deve obstar definitivamente a recuperação judicial. A Assembleia Geral permanece legítima para deliberar sobre alternativas subsequentes que possam viabilizar a reestruturação da empresa. Em tal contexto, é imperioso que credores apresentem soluções concretas e exequíveis, pautadas em racionalidade econômica e espírito de cooperação. Posturas meramente obstrucionistas ou protelatórias, destituídas de propostas alternativas viáveis, podem indicar abuso ou tentativa de frustrar ilegitimamente o processo recuperacional.

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