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O Novo Código de Processo Civil, os precedentes e o “stare decisis” vertical

15 de junho de 2016

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Marcus ViniciusNo Novo Código de Processo Civil, que entrou em vigência dia 18 de março de 2015, foi instituído um sistema de stare decisis vertical cuja operacionalização exigirá dos juristas brasileiros uma nova compreensão sobre o fenômeno jurídico. Acostumados a conceber o direito em termos de lei, a outrora gradual aproximação do direito brasileiro, cuja raiz é romano-germânica, com o modelo anglo-saxão consolida-se de vez com a obrigatória aplicação dos precedentes superiores pelos órgãos judiciários. No presente trabalho, será objeto de análise esta aproximação, passando pelos modelos jurídicos da civil law e da common law, pela processo de commonlawlização do direito romano-germânico – e, em especial, do direito brasileiro.

Subjacente à riqueza do fenômeno jurídico, que permite um mesmo direito ser pensado, regrado e aplicado dos mais diversos modos em cada ordenamento estatal, seria possível vislumbrar um sistema dotado de regras próprias para a interpretação, a harmonização e a realização do direito no caso concreto. Nas faculdades de direito Brasil afora, aprende-se desde cedo a oposição entre a civil law e a common law, que correspondem aos dois principais modelos jurídicos existentes. Embora esteja longe de abarcar a complexidade do fenômeno jurídico e, por mais polêmicos que sejam os seus critérios, é uma distinção didaticamente útil à compreensão das famílias do direito por apresentar suas respectivas regras, características e acepções, todas profundamente vinculadas às circunstâncias que determinaram seu surgimento e desenvolvimento1.

De origem continental, a civil law desenvolveu-se na passagem do Século XII ao XIII a partir do resgate pelas universidades da experiência jurídica românica – em especial das compilações do Imperador Justiniano. Da análise do Corpus Iuris Civilis seria extraído, para além das categorias e conceitos, o método de raciocínio apropriado à resolução das controvérsias jurídicas, contribuindo assim à formação de uma ciência jurídica comum a todo continente. A característica fundamental da civil law, a codificação, é tributária da centralidade da lei no direito romano, cuja preocupação era revestir juízos sobre moral e justiça como regras de direito aptas a disciplinarem as relações entre indivíduos2.

Do outro lado do canal da Mancha, o apreço dos ingleses à tradição desembocou em um sistema cujos operadores do direito são imbuídos de uma consciência histórica tamanha que sua principal fonte normativa é o costume assentado pelos precedentes dos tribunais3. Diferente do direito romano-germânico, onde “quem determinava o direito era um poder superior, que manifestava a sua vontade pela positivação das normas de conduta”4, o direito anglo-saxão é casuístico. Na falta do código, os juízes decidiam a partir das circunstâncias do caso concreto em atenção aos costumes e aos juízos da sociedade.

Na condição de colônia de Portugal, o Brasil naturalmente aceitou as concepções típicas da civil law embutidas nas Ordenações Reais, sobretudo nas Ordenações Filipinas, cujo texto consistia basicamente em casos reais reduzidos a termo. Se omissas as ordenações, aplicava-se o direito romano e canônico. Depois da independência, o Brasil basicamente reproduziu a tradição romano-germânica. Primeiro, quanto ao processo criminal e civil, os livros das Ordenações só seriam respectivamente revogados em 1832 e 1850, com o Código de Processo Criminal e o Regulamento no 737. Ainda assim, ambos preservaram a influência da lei portuguesa5. Segundo, nossos juristas continuaram formando-se na Universidade de Coimbra e, mesmo com a abertura das primeiras faculdades de direito, preservou-se por detrás do esforço de codificação, visto como essencial à formação de uma cultura jurídica verdadeiramente nacional, um culto ao direito romano. Reflexo da reprodução da mentalidade de civil law pelo direito brasileiro, a jurisprudência possuía apenas autoridade doutrinária e moral, vez que o artigo 179, inciso I, da Constituição de 1824 e o artigo 72, §1o, da Constituição de 1891 já esclareciam que ninguém poderia ser obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei6. As decisões produziam efeitos apenas entre as partes diretamente implicadas no processo judicial.

No sistema romano-germânico, o respeito aos precedentes imprescindível à garantia aos jurisdicionados de segurança jurídica seria resultado natural dos princípios da legalidade e da isonomia. Sendo o juiz apenas a “boca da lei”, como preconizado por Montesquieu em atenção aos limites impostos para a interpretação de leis, era esperado que o mesmo dispositivo fosse aplicado da mesma forma por todos os integrantes do Poder Judiciário. No modelo anglo-saxão, esta mesma segurança seria propiciada pela atribuição de efeito vinculante a decisões judiciais. De início, os precedentes apenas gozavam de relevância, mas, a fim de que o sistema evitasse decisões contraditórias, passaram a ser observância obrigatória, nos termos do brocardo “stare decisis et non quieta movere”, que determina o julgador formar juízo com fulcro nos precedentes de mesma natureza7.

Atualmente, devido à intensificação do processo de globalização, o já existente diálogo entre ambas as famílias provocou a commonlawlização, primeiro no comportamento dos operadores do civil law e, depois, no próprio modelo romano-germânico8. A gradual importância conferida às decisões judiciais e o prestígio atribuído à atividade criativa do magistrado repercutiu, em função da crise do Poder Judiciário, na inclusão do precedente judicial na pauta do dia9. No Brasil, sobretudo após a edição da Emenda Constitucional no 03/93, que criou a ação declaratória de constitucionalidade e imprimiu eficácia erga omnes e efeito vinculante às decisões tomadas pelo Supremo no seu bojo, diversas foram as medidas empregadas nas reformas processuais para assim uniformizar o entendimento jurisprudencial.

Entre elas, cabe ressaltar a súmula vinculante e a reclamação constitucional. A primeira, instituída com a Emenda no 45/04, possui o condão de pacificar controvérsia atual sobre o sentido, a validade e a eficácia de normas constitucionais, trazendo segurança jurídica e neutralizando a multiplicação de processos ao vincular os órgãos do Poder Judiciário e de toda a Administração Pública. Aprovado pelo Supremo Tribunal Federal por maioria de 2/3 de seus membros, a súmula vinculante pressupõe reiteradas decisões da Corte. Se contrariar o enunciado sumular, o ato administrativo ou a decisão judicial será passível de cassação pelo Supremo Tribunal Federal por meio de reclamação, que até a edição da Emenda no 45 era cabível apenas em caso de contrariedade de decisão judicial ordinária frente à decisão do Supremo que, proferida no controle concentrado, era vinculante.

Assim foi por ocasião da elaboração do Novo Código de Processo Civil, cujas diretrizes incluíam a valorização da força da jurisprudência, como foi cunhado pelo Presidente da Comissão do Senado Federal para redação do novo Código de Processo Civil e Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux. Para tanto, seria imprescindível “conferir ao magistrado autorização para julgar liminarmente a causa com base em posicionamentos jurisprudenciais consolidados, como súmulas e recursos representativos de controvérsia do atual art. 543-C do CPC”.

No antigo diploma processual, o artigo 543-C disciplinava o processamento de recursos especiais que veiculassem idêntica questão de direito. Caberia ao Presidente do Tribunal selecionar para após remeter ao Superior Tribunal de Justiça os recursos representativos da controvérsia, com o sobrestamento dos demais até a resolução definitiva de mérito. O próprio Tribunal da Cidadania poderia determinar a suspensão na origem de recursos se identificasse a existência de jurisprudência dominante ou de afetação de matéria sobre a controvérsia. Tomada a decisão pelo STJ, deveriam os Tribunais de Justiça regionais ou denegar seguimento ao recurso, se o acórdão recorrido coincidir com o posicionamento ad quem, ou reexaminar o recurso se o acórdão divergir do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça.

Aprofundando a sistemática de resolução de casos idênticos, o novo Código de Processo Civil criou um sistema de recursos extraordinário e especiais junto ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça e instituiu incidente de resolução de demandas repetitivas nos demais tribunais. Semelhante ao procedimento do artigo 543-C do antigo código, este novo modelo vincula as instâncias inferiores às decisões proferidas em sede de demandas repetitivas, quando deverão as instâncias inferiores aplicar o entendimento fixado acerca da controvérsia jurídica para as ações sobrestadas na origem. Por sua vez, o IRDR assegura a isonomia e segurança jurídica ao prover a mesma resposta à questão replicada nas demandas de massa. Em ambos os institutos percebe-se a preocupação em identificar a matéria de direito a ser pacificada definitivamente pelos Tribunais, a fim de chegar à normaque governará os casos semelhantes: a ratio decidendi. Consoante lição de Patrícia Perrone Campos Mello, é a “questão de direito que foi enfrentada como uma premissa necessária a alcançar o dispositivo do julgamento”10. O restante nada mais será do que obter dictum, ou seja, matéria à margem das questões de direito firmadas no precedente e, portanto, isentas de efeito vinculante.

Assentado o precedente vinculante, caberá ao magistrado replicá-lo quando provocado a decidir sobre casos semelhantes. Para tanto, será necessário identificar as circunstâncias relevantes e controvérsias jurídicas suscitadas da demanda para depois avaliar se a ratio decidendi será aplicável in casu. Sendo circunstâncias e controvérsias distintas daquelas conti­das no precedente, o juiz estará diante de um caso distinto que merece uma decisão igualmente distinta. Faz-se, assim, o distinguish necessário. Da decisão que diverge dos precedentes, jurisprudência ou súmula sem provar haver ali distinção caberá reclamação na forma do artigo 998, inciso IV, do Novo CPC11 ao Tribunal, que poderá ou cassar a decisão exorbitante do julgado ou determinar medida adequada à solução da questão.

Entretanto, não foi sem polêmica que o Novo CPC permitiu a fixação por meio de lei de decisões vinculantes que não as próprias súmulas previstas pelo artigo 103-A, §1a, A, da Constituição Federal de 198812. De acordo com o novo código, em seu artigo 927, os juízes e os tribunais deverão observar as decisões do Supremo em controle concentrado de constitucionalidade e os enunciados de súmula vinculante, mas também os acórdãos em incidentes de assunção de competência, em resoluções de demandas repetitivas e em julgamentos de recursos extraordinários e especiais repetitivos, os enunciados do STF e do STF, respectivamente em matéria constitucional e infraconstitucional, e, por fim, as orientações do Plenário ou do Órgão Especial aos quais estiverem vinculados. Contudo, para Pedro Lenza13, tais regras de vinculação deveriam ser introduzidas por meio de Emenda Constitucional, já que o texto constitucional atribui efeito vinculante apenas às decisões do Supremo em sede de controle concentrado e súmulas vinculantes. Em igual sentido alega Nelson Nery Jr., para quem “colocaram no novo Código algo que deveria ser determinado por emenda constitucional”14.

Com a entrada em vigência do Novo Código de Processo Civil, foi instituída dogmática adequada a um processo objetivo que permite soluções uniformes a casos em que sejam veiculadas as mesmas questões de direito, garantindo assim segurança, previsibilidade e racionalidade à ordem jurídica como um todo até mesmo no caso em que os precedentes forem superados. Conforme o parágrafo terceiro do artigo 927, em havendo mudança na jurisprudência, seus efeitos podem ser modulados em atenção à segurança jurídica e ao interesse social15. Trata-se de verdadeira inovação trazida pelo novo Código, vez que até então a modulação de efeitos era cabível somente no Supremo Tribunal Federal. Ao tempo em que permite ao direito desenvolver-se, as relações jurídicas consolidadas pelo tempo são protegidas em homenagem à segurança jurídica16.

Aprofundando os mecanismos da common law sem descuidar dos instrumentos próprios da civil law, o novo Código de Processo Civil constitui um verdadeiro marco na ordem jurídica brasileira, aliando com maestria o respeito aos precedentes tão caro aos saxões e o respeito à legalidade tão cara aos romanos. A partir de 18 de março de 2016, o direito brasileiro adentrou uma nova fase – e, com ele, seus operadores.

 

NOTAS________________

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1 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 2 ed. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 22.

2 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. p. 23.

3 RADBRUCH, Gustav. Lo spirito del diritto inglese. Milão: Giuffrè, 1962. p. 10.

4 NUNES, Jorge Amaury Maia. Segurança jurídica e súmula vinculante. São Paulo: Saraiva, 2010. p.

5 MACIEL, Fábio Rodrigues. Ordenações Filipinas:considerável influência no direito brasileiro. Disponível em: < http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/ordenacoes-filipinas–consideravel-influencia-no-direito-brasileiro/484>. Acesso em 12 de abril de 2016.

6 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito Brasileiro:eficácia, poder e função – a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 77-78.

7 SABINO, Marco Antonio da Costa. O precedente jurisdicional vinculante e sua força no Brasil. Revista Dialética de Direito Processual Civil, n. 85, abril 2010. p. 53.

8 PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre a common law, civil law e o precedente judicial. Estudos de Direito Processual Civil em homenagem ao Professor Egas Dirceu Moniz de Aragão. São Paulo: RT, 2005. p. 6.

9 NUNES, Jorge Amaury Maia. Segurança jurídica e súmula vinculante. p. 105.

10 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Como se opera com precedentes segundo o Novo CPC? Disponível em: <http://jota.uol.com.br/como-se-opera-com-precedentes-segundo-o-novo-cpc>. Acesso em 12 de abril de2016.

11 Art. 992. Julgando procedente a reclamação, o tribunal cassará a decisão exorbitante de seu julgado ou determinará medida adequada à solução da controvérsia.

12 § 1o A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

13 LENZA, Pedro. Reclamação constitucional:inconstitucionalidades no Novo CPC/2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mar-13/pedro-lenza-inconstitucionalidades-reclamacao-cpc>. Acesso em 12 de abril de 2016.

14 RODAS, Sérgio. Nery Jr. critica norma do novo CPC que obriga juiz a observar jurisprudência. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jul-02/nery-jr-critica-norma-obriga-juiz-observar-jurisprudencia>. Acesso em 12 de abril de 2016.

15 § 3o Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

16 COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. Garantias constitucionais e segurança jurídica.Belo Horizonte: Editora Fórum, 2015. p. 151.