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O legado do Ministro Marco Aurélio Mello para uma corte garantista

15 de julho de 2015

Marcus Vinicius Furtado Coêlho Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB / Membro do Conselho Editorial da Revista Justiça & Cidadania

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marcus_viniciusEm 13 de junho de 1990, tomava posse no Supremo Tribunal Federal (STF) o Ministro Marco Aurélio Mello. Vinte e cinco anos depois, o eminente jurista tem reafirmado sua posição como defensor dos valores constitucionais. 

Seus julgamentos têm consolidado o entendimento de que a Constituição representa limite formal e material à intervenção do Estado nos direitos dos cidadãos. Com maior razão é possível dizê-lo quando se trata da intervenção penal, que deve ser a ultima ratio na busca pela garantia dos direitos dos cidadãos e da promoção da convivência social pacífica. 

A intervenção punitiva do Estado apenas se legitima no seio da estrita legalidade e do respeito à dignidade humana, devendo estar sempre em consonância com o Estado Democrático de Direito. Esse é o pressuposto do garantismo penal e que ilumina o posicionamento do Ministro Marco Aurélio ao prolatar seus votos na Suprema Corte.

No julgamento do Habeas Corpus no 91.952/SP, no qual se discutia a constitucionalidade do uso de algemas durante audiência de julgamento no tribunal do júri, seu voto destacou-se pela defesa da dignidade do acusado e do princípio da não culpabilidade:

Segundo o artigo lo da Carta Federal, a própria República tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Da leitura do rol das garantias constitucionais – artigo 5o –,
depreende-se a preocupação em resguardar a figura do preso. A ele é assegurado o respeito à integridade física e moral – inciso XLIX. […] Manter o acusado em audiência, com algema, sem que demonstrada, ante práticas anteriores, a periculosidade, significa colocar a defesa, antecipadamente, em patamar inferior, não bastasse a situação de todo degradante.

O Ministro menciona, ainda, em seu voto, a regra das Nações Unidas para tratamento de prisioneiros, segundo a qual o uso de algemas não pode se dar como medida de punição.

A decisão relatada foi acompanhada unanimemente, dando ensejo à edição da Súmula Vinculante n. 11, que restringe o uso de algemas aos “casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia”.

O compromisso do Ministro Marco Aurélio com o valor da dignidade da pessoa humana insculpido no artigo 1o da Constituição da República também fica claro no julgamento do Habeas Corpus n. 82.959-7/SP.

Em interpretação conforme a Constituição, como Relator do caso, decidiu pela possibilidade da progressão de regime para crimes hediondos. O artigo 5o, XLVI, da Carta Magna estabelece a individualização da pena. A proibição da progressão de regime como critério abstrato para os crimes hediondos generaliza a execução da pena sob a ótica da espécie de crime praticado e não sob as especificidades psicológicas e comportamentais do condenado.

A impossibilidade de progressão de regime não oferece quadro harmônico para a ressocialização do preso. Condena-o não só ao regime fechado, mas à perda de esperanças de retornar ao convívio social durante o cumprimento da pena, acaba por desestimulá-lo ao bom comportamento no interior dos presídios. Nas palavras do Ministro Marco Aurélio:

A progressividade do regime está umbilicalmente ligada à própria pena, no que, acenando ao condenado com dias melhores, incentiva-o à correção de rumo e, portanto, a empreender um comportamento penitenciário voltado à ordem, ao mérito e a uma futura inserção no meio social. O que se pode esperar de alguém que, antecipadamente, sabe da irrelevância dos próprios atos e reações durante o período no qual ficará longe do meio social e familiar e da vida normal que tem direito um ser humano; que ingressa em uma penitenciária com a tarja da despersonalização?

A Corte, que em sua maioria acompanhou o voto do Ministro relator, superou entendimento anteriormente firmado, no sentido de que a disposição constitucional sobre a individualização da pena voltava-se tão somente ao legislador, sem garantir direito subjetivo. No mesmo sentido, ressalta o Ministro Gilmar Mendes que “o princípio da individualização da pena fundamenta um direito subjetivo, que não se restringe à simples fixação da pena in abstracto, mas que se revela abrangente da própria forma de individualização (progressão)”.

A interpretação dos princípios constitucionais, no âmbito do STF, alcançou novo patamar com a chegada do Ministro Marco Aurélio à Corte. Além da dignidade da pessoa humana e da individualização da pena, a aplicação da presunção de inocência também adquiriu contornos mais adequados ao tratamento normativo-constitucional que é dado ao tema.

A Constituição determina, no inciso LVII do art. 5o, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. O dispositivo consolida o princípio da presunção de não culpabilidade, este que é um pressuposto basilar para o funcionamento do Estado de direito em nosso País.

O ingresso do Ministro Marco Aurélio no STF foi fundamental para o amadurecimento do tema. Seu posicionamento perante os demais colegas reverbera as modernas correntes penalistas, segundo as quais o Direito Penal e o Direito Processual Penal só se legitimam como instrumentos de redução da violência em todas as suas concepções, inclusive daquela cometida pelo Estado contra o acusado.

Conforme a aclamada obra de Silva Sanchez, o objetivo do Estado não pode se restringir a diminuir a violência entre particulares, estendendo-se também à proteção do cidadão em face da violência estatal. Essa é a base para a consagração da presunção de inocência como valor inviolável.

Marco Aurélio sempre seguiu a máxima de que prisão é exceção, a regra é a liberdade. Ao combater a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) no 15/2011, a chamada PEC dos Recursos, que pretendia a antecipação da execução penal, sábias foram suas palavras, com a didática e a erudição que lhes são inerentes: “Não vejo como ter-se no campo penal uma execução que não seja definitiva, já que ninguém devolve ao absolvido a liberdade que se tenha perdido”.

A prisão cautelar e preventiva, quando aplicável, deve ser vista sempre em seu caráter instrumental, para a garantia da instrução, ou caráter finalístico, para assegurar a aplicação da lei penal. Utilizá-la como uma hipótese de antecipação da pena é violar o princípio da presunção de inocência e subverter o Estado de Direito.

No sentido de impedir a penalização do acusado por fatos indefinidos no âmbito judicial, ainda aguardando o trânsito em julgado, foi acertado o voto do Ministro Marco Aurélio como relator do Recurso Extraordinário n. 591.054, julgado em 17 de dezembro de 2014, acompanhado pela maioria dos membros do Supremo. Na ocasião, a Corte decidiu que inquéritos e processos criminais em curso são neutros na definição dos antecedentes criminais, não podendo ser computados como maus antecedentes.

A decisão dos magistrados representa a positiva mudança da cultura penalista constitucional brasileira. Se em 1976 o STF entendia ser possível a inelegibilidade dos cidadãos que estivessem respondendo a processo-crime, hoje, com a ativa participação do Ministro Marco Aurélio, a Corte Constitucional afasta até mesmo da dosimetria da pena a utilização de inquéritos e processos não transitados em julgado, que não podem ser fundamento para agravar a sanção imposta.

A precisão de suas palavras e ensinamentos é patente, conforme se nota pelo seguinte excerto, retirado de seu voto no RE no 591.054:

Pretender agora a inversão do quadro contraria, a toda evidência, a ordem natural das coisas. O lançamento, no mundo jurídico, de enfoque ainda não definitivo e, portanto, sujeito a condição resolutiva, potencializa, a mais não poder, a atuação da Polícia Judiciária, bem como a precariedade de certos pronunciamentos judiciais. […] Com efeito, uma vez admitido pelo sistema penal brasileiro o conhecimento do conteúdo da folha penal como fator a ter em conta, na fixação da pena1, deve a presunção militar em favor do acusado, partindo-se sempre do princípio da razoabilidade, conducente a procedimento harmônico com o ordinário, e não a suposição do excepcional.

O excepcional não deve ser tomado por ordinário. Do contrário, estatuir-se-ia a inversão dos valores, como acontece quando um acusado tem sua liberdade restringida sem que seja demonstrado o estado de excepcionalidade.

A responsabilidade pelo cometimento de um crime ou contravenção só deve produzir efeitos quando a materialidade e a autoria forem juridicamente confirmadas. A presunção é de inocência, e não o contrário, conforme atestado pelo ilustre relator.

O Ministro Marco Aurélio não deixa dúvidas sobre a coragem e disposição em manifestar sua opinião. É um defensor da dignidade da pessoa humana sem quaisquer distinções, reconhecendo que o acusado também merece a proteção das normas constitucionais.

Os 25 anos do Ministro Marco Aurélio Mello como integrante do STF são motivo de comemoração para a República brasileira. Seu jubileu de prata é um atestado de que, há um quarto de século, o País possui a seu serviço grande defensor da igualdade e das liberdades públicas, detentor de notável competência para o exercício da magistratura na Corte Suprema.

Notas ____________________________

1 MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.

2 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo. Barcelona: J. M. Bosch Editor, 2002.

3 RE 86.297, Rel. Min. Thompson Flores, RTJ, 79, n. 2, p. 671.