“O juiz é e sempre deve ser um instrumento da Constituição”

5 de outubro de 2020

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Entrevista com a magistrada Kenarik Boujikian, consultora da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP

Magistrada nascida na Síria e criada desde muito pequena no Brasil, militante em defesa dos direitos humanos, cofundadora da Associação Juízes pela Democracia (AJD) e da Associação Brasileiras dos Juristas pela Democracia (ABD), Kenarik Boujikian Felippe aposentou-se como Desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) há cerca de um ano. Atualmente, atua como consultora da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP) e faz parte do Grupo Prerrogativas.

Bom dia, Desembargadora. É um orgulho para nós tê-la como entrevistada da seção Justa, o espaço feminino da Revista Justiça & Cidadania. Seja bem-vinda.

Kenarik Boujikian – Muitíssimo obrigada, eu é que agradeço por estar aqui com vocês.

EB – Gostaria que a senhora começasse essa entrevista nos contando como foi a experiência de ser uma juíza, mulher e garantista, no maior Tribunal do País – onde ainda hoje temos apenas 31 mulheres entre 360 desembargadores – além de ser um Tribunal conhecido por ser extremamente conservador em matéria penal. Como foi essa experiência?
KB – Não tenho do que me queixar, porque fui muito feliz na magistratura. Entrei em 1989, na época tínhamos menos mulheres, não havia nenhuma no Tribunal, propriamente dito, mas foi uma longa carreira, que me deu muitas alegrias. É claro que também houve algumas tempestades, como estou denominando alguns períodos, mas faz parte da sociedade brasileira um perfil extremamente conservador e um recorte de uma sociedade patriarcal, de modo que isso se reflete em qualquer espaço. Você vê que em todos os Poderes do Estado brasileiro – Executivo, Legislativo e Judiciário – a representação das mulheres é ainda muito pequena. Vem em um crescendo, efetivamente, e fico feliz de ter participado desse movimento de algum modo, mas posso dizer que esse aspecto de gênero faz parte do perfil do Estado brasileiro.

Por outro lado, você também me fala da questão de ser uma juíza garantista. Vivi em um Tribunal extremamente conservador em termos do Direito Penal e não tenho esse perfil, tenho uma outra visão do que deve ser o perfil do juiz, o perfil do que significa e para que serve o Direito Penal. Dentro desse modo de ver essas relações, evidentemente fui parte da minoria, e essa minoria nunca é aceita muito bem. De uma forma ou de outra sempre existem senões que são colocados à sua frente, mas posso dizer com muita tranquilidade que nunca abri mão dessa maneira de pensar, porque também é uma obrigação como juiz não abrir mão da independência judicial. Foi assim que agi, mas volto a dizer que fui muito feliz no TJSP, onde me fiz como pessoa, como ser humano, como mulher, como profissional e exercente de um Poder do Estado. É claro que houve, como todo mundo sabe, algumas intercorrências, mas foi uma experiência generosa para a minha vida.

EB – Ao falar sobre as “intercorrências” enquanto atuava no Tribunal, a senhora se refere ao fato de ter sido punida pela instituição por ter concedido de ofício habeas corpus a alguns presos provisórios que estavam reclusos há mais tempo do que as sentenças condenatórias deles previam?
KB – É, podemos dizer que essa é uma das intercorrências. Esse caso que você menciona acabou tendo muita repercussão, muita publicidade. De fato, o que aconteceu foi que (quando) fui trabalhar no Tribunal, recebi um acervo – eu era substituta em segundo grau naquele início – e, a um dado momento, percebi que alguns processos que estavam chegando às minhas mãos tinham a pena fixada na primeira instância já cumprida. Entendi que eram casos, que são casos excepcionais, em que o magistrado de segunda instância pode decidir monocraticamente. Não só pode como deve. Nesse sentido, por uma questão de cautela, não havendo no processo a informação da liberação do indivíduo, mandei expedir alvará de soltura clausulado. Depois, o processo naturalmente iria para a mesa para julgamento, para a manutenção ou não dessa decisão. Ocorre que após a reclamação de um desembargador da própria Câmara – que dizia que essa deveria ser uma decisão colegiada – o TJSP abriu um procedimento administrativo e, após responder a esse processo, recebi uma pena do Tribunal. O processo posteriormente foi para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e lá a decisão foi alterada, por terem considerado que era caso de arquivamento, porque não havia nenhuma falta disciplinar. Foi um julgamento muito impactante, os termos que os conselheiros usaram foram muito fortes, dizendo que aquilo que o TJSP fez não era uma pena de censura administrativa, mas a censura ao modo de proceder e de pensar do magistrado. Alguns conselheiros falaram: “Normalmente nós punimos porque as pessoas não fazem, pelo que os juízes não estão fazendo, e pela primeira vez pegamos um caso em que o juiz fez, foi cauteloso, foi diligente e está sendo processado por isso”. Se acontecesse alguma coisa com algum preso desses que já tinham a pena cumprida, o Estado teria que ser responsabilizado, o juiz teria que ser responsabilizado. Enfim, foi um julgamento bem interessante nesse sentido. A importância dele tem dois aspectos: primeiro recolocou a questão da independência judicial; e recolocou também em pauta para discussão a questão do encarceramento no Brasil; ou, melhor, a falta de controle que se tem sobre ele. Tanto que, posteriormente, o CNJ criou dentro de seu sistema de controle um específico item para o controle das penas fixadas em primeira instância ainda na fase do processo de conhecimento.

EB – O Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogério Schietti há pouco tempo declarou que o TJSP estaria medindo forças com os tribunais superiores, considerando, segundo ele, que metade dos processos julgados pelo STJ vêm desse Tribunal e que mais de 60% dos pedidos de habeas corpus da Defensoria Pública contra as decisões desse Tribunal são concedidos na instância superior. Ao que a senhora acha que se deve essa resistência por parte dos magistrados?
KB – É difícil entender essa resistência. Vi essa declaração do Ministro Schietti e, na verdade, têm algumas questões que eu gostaria de pontuar. Primeiro, efetivamente, temos um superencarceramento no País, não existe nenhuma dúvida. Temos um número gigantesco de presos provisórios, ou seja, presos que não têm sentença condenatória transitada em julgado. Varia de uma unidade da Federação para outra, mas o índice geral varia entre 30% e 40%. Esse é o quadro real. E aí podemos pensar qual é o perfil do juiz da área criminal. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) fez, em 2015, uma pesquisa muito interessante, com perguntas aos juízes sobre vários temas do Direito ligados à questão penal. Por essas respostas é possível definir qual é esse perfil. Só para você ter ideia do que estou querendo dizer, a maioria dos juízes (84%) quando perguntados se acham que deveriam aumentar o tempo de cumprimento da pena para a obtenção de livramento condicional respondeu que é totalmente ou parcialmente favorável. Quando se perguntou se deveria aumentar o tempo de cumprimento de pena para a progressão de regime, cerca de 90% também entendeu que isso era necessário. Quando se perguntou sobre a necessidade ou não de aumento da pena mínima para os delitos de tráfico de drogas, 71% dos juízes também respondeu que era totalmente ou parcialmente favorável. Quase 50% dos juízes entende que deve haver diminuição da maioridade penal. Cerca de 70% dos juízes acha que deve ser proibida a liberdade provisória para o crime de tráfico de drogas, genericamente considerado. 85% acha que se deve aumentar o tempo de internação dos adolescentes infratores. E assim por diante.

Isso mostra que temos uma mentalidade extremamente conservadora, que não está de acordo com a doutrina e com os estudos que se relacionam à questão prisional, da sua efetividade, da sua pertinência. Esse é um dado que acho importante pensar, qual é esse perfil. Quando o Ministro Schietti fala sobre essa resistência do TJSP, ele fala com dados, fala com levantamentos que foram realizados pelo próprio STJ, que indicam que mais de 40% dos habeas corpus e recursos ordinários em habeas corpus são oriundos do TJSP. Além de tudo tem uma pesquisa – e quero dizer desses dados e dessa pesquisa, porque são reveladores, existe um fundamento para essas afirmativas – que foi publicada no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), mais ou menos na mesma época da pesquisa da AMB, acho que um ano antes. O professor Thiago Bottino fez um levantamento analisando alguns temas que eram comuns e repetitivos lá nos tribunais superiores. Temas que são muito pacificados nos tribunais superiores, mas que ele indicou que não são cumpridos: regime mais gravoso sem fundamentação; aumento de pena decorrente de duas ou mais majorantes, com necessidade de ser fundamentada, porque era muito comum que viesse o aumento simplesmente porque são duas majorantes; concessão de liberdade provisória para tráfico, o que já tem decisão do STF; regime diferenciado fechado para o tráfico, que foi inclusive declarado inconstitucional pelo STF. Enfim, o que ele mostrou com essa pesquisa é que mesmo com esses temas pacificados pelos tribunais superiores ainda há resistência na sua aplicação.

Você me pergunta: Por quê? E eu respondo: Nós temos esse perfil de juízes. O fato concreto é que isso está acontecendo e o próprio STJ está comprovando com seus dados, além das pesquisas acadêmicas. Creio que existem duas questões aí. Primeiro é a questão do papel do juiz, falta uma compreensão do que é o papel do juiz, especialmente na esfera penal. Segundo, não podemos considerar juízes como semideuses, como se pudéssemos substituir a vontade da lei. Essa substituição não é possível e em muitos casos o que vemos é isso: “Penso de um jeito e aplico a lei do jeito que eu acho”. Não pode ser assim. O juiz tem muitos poderes, mas ele tem a limitação desses poderes e a limitação está na própria Constituição e no Sistema de Justiça. Se não consigo como juiz compreender que há um papel que deve ser exercido e é exercido pelo STJ, vou continuar fazendo o que acho que é mais conveniente ou mais correto. É preciso ter uma compreensão de que há um sistema de Judiciário e que cada um dos órgãos e dos juízes têm o seu papel. Se você não conseguir ter essa compreensão destes papéis, vamos encontrar esse quadro, tantos HCs concedidos em temas muito pacíficos, já decididos, inclusive, com declaração de inconstitucionalidade pelo próprio STF. Isso é muito ruim isso para o Judiciário, cria uma situação que considero de gravidade, porque a população, evidentemente, vai cada vez mais perdendo a confiança.

EB – A senhora é cofundadora da Associação Juízes pela Democracia. Como surgiu a ideia da fundação dessa entidade?
KB – Dentro do espírito da Constituição de 1988 é que nasce uma associação formada por juízes, cujos membros se dispõem a atuar para a democracia que estava se instaurando. Veja, viemos de um período de ditadura civil militar, de 1964 a 1985, que teve um marco de rompimento jurídico com a Constituição de 1988. Esse é o marco. Entendíamos que a Constituição brasileira de 1988 tinha que ser concretizada, não era um projeto acabado, tinha que sair do que estava no papel, em todos os seus princípios e fundamentos, e chegar à vida. Entendíamos que como juízes tínhamos que dar uma contribuição para isso. Não é uma associação de classe, não é voltada para os interesses dos juízes, absolutamente não tem esse objetivo. O objetivo é muito claro: se dedicar à construção da democracia.

Naquela época, quando foi criada, nunca imaginamos que seria tão longeva, já estamos indo para 30 anos, e em um momento mais recente nem poderíamos imaginar que ela seria tão necessária. A nossa contribuição como associação tinha dois aspectos: a democratização do próprio Poder Judiciário e também a democratização do País. Quando falamos em democratização, não estamos falando de uma questão específica, de eleições, mas do conteúdo de democracia que está firmado em nossa Constituição, que tem uma opção. Logo no art. 1º ela já se coloca como um Estado Democrático de Direito, já estabelece de plano quais são seus fundamentos, coloca quais são seus Poderes e quais são seus objetivos fundamentais. Logo na sequência, já no Título II, estabelece os direitos e garantias fundamentais (…). Estruturalmente, é aqui que encontramos o projeto de conteúdo da democracia do Estado brasileiro.

Por isso a AJD surgiu e, nesse tempo, ela já se manifestou de muitas formas. Por exemplo, sua primeira pergunta foi sobre como ser mulher e garantista dentro de um Tribunal de Justiça conservador. Como lhe disse, na época em que ingressei tínhamos pouquíssimas mulheres. A AJD, por exemplo, nesse tema de democratização interna, teve uma incidência, muito mais para frente da sua criação, para que os concursos públicos não fossem identificados. O que acontecia no TJSP: os concursos tinham duas fases escritas e a fase oral. Na fase oral, evidentemente, não dá para não identificar, mas aquelas primeiras fases eram identificadas, você assinava, colocava o seu nome na prova. Ali você já tinha um espaço que vetava as mulheres. Como era possível imaginar que as mulheres não ingressavam na magistratura? Elas estudavam nas mesmas faculdades, tinham as mesmas capacidades. Como era possível imaginar que as mulheres não ingressassem na magistratura de São Paulo? Voltando a esse assunto das mulheres, precisamos louvar todas mulheres e organizações que também lutaram para isso. As mulheres começaram a ingressar depois que houve uma certa articulação da OAB-SP e do movimento de mulheres advogadas aqui de São Paulo, porque não se conformavam com essa situação. Ali é que começaram a ingressar as mulheres, uma, três, duas… A AJD, muito mais para frente faz essa proposta de que não tem que ser identificado e com isso se evita saber se é mulher, filha de beltrano ou fulano. Evita-se de certa forma também o nepotismo. A AJD nasceu para isso, nessa preocupação de que isso se tornasse real. Quando se diz aqui (folheando a Constituição) que dentre os objetivos está promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor e idade, queremos tornar isso concreto dentro e fora do Judiciário. A AJD nasceu com essa finalidade, para fazer cumprir. O que nos identifica é que somos juízes, de todas as instâncias e também de todas as justiças, trabalhista, estadual, federal, enfim. Até hoje nós seguimos, porque infelizmente ainda há muita coisa a ser feita.

EB – A senhora acha que o corte de gênero e também racial é necessário para equilibrar a magistratura e refletir corretamente a nossa sociedade?
KB – Com certeza. Primeiro porque é uma questão de justiça. Não é possível pensar em um mundo em que você escanteie uma parcela da população ou um determinado gênero. Na questão das mulheres, creio que avançamos muito nos meus 30 anos de magistratura. É claro que ainda existem limitações, as mulheres ainda não alçaram alguns postos, nos tribunais superiores o número ainda é pequeno, nos próprios tribunais. Veja o meu Tribunal: eu era da seção criminal, na qual éramos 90 desembargadores e tínhamos só quatro mulheres. Você vê que ainda tem muito para ser feito.

Mas avançamos pouquíssimo na questão racial. Quando fizemos essa questão da não-identificação, que acabou se transformando em lei, uma lei estadual aqui de São Paulo, achávamos também que pudesse haver alguma incidência na questão racial, mas efetivamente não houve. O número de negros e negras na magistratura é muito pequeno. Vou lhe contar um episódio. Pouco antes de eu me aposentar, foi realizado o primeiro concurso do TJSP que teve cotas. Nessas cotas foram aprovados, salvo engano, 13 juízes ou algum número muito parecido. Estive na posse, que foi feita no prédio do Tribunal, o Palácio da Justiça, e nunca tinha visto tantas pessoas negras, juízes, em um mesmo espaço em toda a minha carreira. Seja em qualquer espaço, no próprio Palácio de Justiça, onde se realizam as sessões de julgamento, seja em espaços associativos, nunca tinha visto esse número de juízes negros em um mesmo espaço. Veja que a questão de cotas trouxe algum avanço, porém é certo que o que está sendo avaliado, e inclusive o CNJ está atento a isso, é que só as cotas não estão resolvendo essa enorme desigualdade construída no Brasil, construída há tantos séculos. Não sei qual será a solução. Existe uma comissão que está se debruçando sobre esse tema, justamente porque esse número ainda é insuficiente para se retornar a uma situação de justiça. Lembro que na minha faculdade, estudei na PUC-SP, naquela época não havia colegas negros na minha turma. Estudei a maior parte do tempo na turma da manhã, só em um semestre fui para a turma da noite. Veja que há alguma coisa muito reveladora nisso tudo, o que se reflete em muitos espaços. Assim como eu disse que há baixa ocupação das mulheres em espaços de poder, o mesmo acontece com os negros e negras. Isso não é exclusivo da magistratura, falo dos espaços de poder especificamente da magistratura, porque foi onde vivi por tanto tempo, mas em todos os espaços do Direito. A OAB nunca teve uma mulher na direção, nem a OAB Nacional, nem a OAB-SP. A Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) também nunca teve na sua presidência uma mulher. No meu Tribunal, só recentemente tivemos uma mulher no órgão especial, que é composto por 25 desembargadores. O Conselho Superior da Magistratura nunca teve mulher na sua composição. Tudo isso se repete também aos negros e negras. Temos pouquíssimos desembargadores negros em São Paulo, o número varia de estado para estado, mas parece que, pelos dados do próprio CNJ, se repetem em termos gerais nessa baixa representação de negros e negras em todo o Brasil. Evidentemente, se você tem no Brasil um percentual da população próximo de 54% de negros, por certo que deveria se refletir no que são os espaços de poder, mas não é isso que acontece. Precisamos procurar soluções. O movimento negro há muito tempo reivindica e aponta o que está acontecendo, mas ainda são poucas as soluções que nós encontramos. Tem uma frase do Darcy Ribeiro que reflete um pouco isso da nossa realidade: “Descendentes de escravos e de senhores, seremos sempre servos da malignidade destilada e instilada em nós, tanto pelo sentimento de dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres e sobre crianças convertidas em pastos da nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturados impressa na alma e pronta para explodir na brutalidade racista e classista”. Isso, que o Darcy Ribeiro escreveu no livro “O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”, é muito forte. Ele reflete isso, nós carregamos ainda conosco e está sempre disposto, realmente, a explodir. Vemos isso em nosso cotidiano, talvez agora, não sei, de forma um pouco mais clara, embora o movimento falasse há muitos e muitos anos.

EB – Em 2019 a senhora escreveu uma carta ao ex-Presidente Lula se solidarizando pelas injustiças que ele sofreu no âmbito da operação Lava Jato. O que lhe motivou a escrever essa carta? Ele respondeu?
KB – Não, não tenho resposta, mas não era o caso de responder, era mais um gesto meu. Naquela época eu estava muito sensibilizada com todas as injustiças que se acumulavam, estava muito indignada com o próprio Judiciário, pelo papel que estava cumprindo à época. Escrevi aquela carta porque me sentia quase que envergonhada do papel que o Judiciário estava fazendo. Não era eu que estava realizando, mas de algum modo me sentia muito mal por tudo o que estava acontecendo. Por exemplo, a proibição de dar entrevistas. Nem lembro se naquela época já havia acontecido isso ou não, ou se estava na época do julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs), sinceramente não lembro, mas toda aquela época me levava a um sentimento de ver que o papel do Judiciário não era aquele que estava previsto na Constituição, estava havendo um desvirtuamento, com danos severos ao País, muito graves ao sistema democrático. Aquilo estava me incomodando profundamente, foi mais um gesto de solidariedade. Foram muitas situações, muito significativas, desde a condução coercitiva, o próprio julgamento das ADCs, a mudança de posição, sendo que víamos naquele julgamento das ADCs da presunção da inocência que aquilo não era o desejo nem da maioria. Ficou claro que a votação não era aquela, o resultado não era aquele, seria seis a cinco e não o inverso para a tese vencedora. Aquilo foi gerando um desconforto muito grande, porque o Judiciário deve ter um papel democrático, um papel que foi construído em 1988. Os juízes têm que ser democráticos, e ser democrático exige que se cumpra a Constituição, que não se use o seu poder para seus interesses. Enfim, eu estava muito desiludida com o Judiciário. A carta foi mais um desabafo meu do que qualquer outra coisa.

Lembro do episódio das entrevistas. Nossa, como um preso não pode dar entrevista? Você tem toda uma lógica nessa proibição, que fere, por exemplo, a liberdade de expressão, que é um bem protegidíssimo em nossa Constituição; fere a liberdade de imprensa, o pedido era feito por vários órgãos de imprensa; fere o direito de informação. Depois, mais para frente, a questão de participar do enterro de um familiar, essas coisas que parecem que chegam ao cerne da perversão. Não sei exatamente quando foi a carta, nesse conjunto todo, mas já via que era uma sucessão de atos que não eram condizentes com o Judiciário e isso gerou em mim realmente uma frustração.

EB – O que a senhora pensa sobre a proposta de emenda constitucional (PEC) da presunção da inocência?
KB – Pois é, a gente acabou de falar da presunção da inocência. Temos uma questão muito importante que está colocada que é a questão da cláusula pétrea, que são aquelas questões que nós não podemos mudar, goste ou não goste, queira ou não queira. São cláusulas que não são passíveis de mudança. Lembro que no dia da entrega da Constituição, Ulysses Guimarães falou disso, da necessidade de respeitá-la, e a própria Constituição estabelece isso, que há coisas que são imutáveis. Essa cláusula é imutável. É muito ruim para um país quando o Legislativo acha que pode tudo. Nenhum dos Poderes pode tudo. O Supremo pode muito, mas não pode tudo. O Judiciário pode muito, mas não pode tudo. O Legislativo é a mesma coisa, pode muito, mas não pode tudo, ele tem as limitações. É muito ruim que logo após um julgamento venha um projeto, uma PEC, para alterar uma cláusula pétrea. Vejo isso com muita preocupação, porque entendo que o risco que se corre, é claro, é esse tema específico, mas não é só esse tema específico, é toda a estrutura do conteúdo democrático do País. É como se eu pudesse depois alterar qualquer coisa que está escrita no art. 5º da Constituição, porque a PEC tem relação com esse princípio da presunção da inocência estabelecido no art. 5º. A partir do momento em que abro esse espaço, abro espaço para qualquer mudança. “A casa é o abrigo inviolável do indivíduo”. Bom, posso mudar depois e dizer que não, ela não é mais o abrigo inviolável. Aqui (na Constituição) diz que a propriedade tem que ter uma função social. Posso dizer então depois que ela não precisa ter função social. Aqui diz que a propriedade deve ser garantida, então agora posso mudar isso. Isso não é possível. Veja, temos uma estrutura de democracia, há uma opção pelo Estado Democrático de Direito, que tem um conteúdo que está fixado em cláusulas que são mutáveis e outras não. As que não são mutáveis são a estrutura da nossa democracia. Não dá para mudar o que são nossos fundamentos. Não dá para mudar quais são nossos objetivos. Não dá para mudar os direitos fundamentais, as garantias, os direitos e deveres individuais, coletivos, sociais e econômicos. Tenho uma grande preocupação com esse tema e com essa PEC, justamente porque ela pretende alterar uma estrutura da democracia brasileira.

EB – A Lei nº 13.964, conhecida como pacote anticrime, previu a criação dos juízes de garantias, mas, logo após sua promulgação, essa figura foi impugnada judicialmente e sua implantação suspensa. Como a senhora enxerga o juiz de garantias e qual é a importância de colocar esse instituto em prática?
(…)
KB – A lei a que você se referiu teve um ponto positivo que é exatamente trazer a figura do juiz de garantias. Ela surge depois de um amplo debate, muito rico, que houve na Câmara dos Deputados especialmente, com muitas audiências realizadas. Ela vem de encontro às novas tendências do mundo inteiro em relação ao Processo Penal e à separação das figuras do juiz que está na primeira fase do juiz que depois vai julgar a causa, para realmente não haver essa contaminação. Realmente, foi um avanço. Entretanto, logo depois de aprovado, com um amplo debate, há uma ação lá no Supremo Tribunal Federal e o Ministro Fux dá uma cautelar e suspende. Vejo isso de uma forma muito ruim. Primeiro, acho que essa funcionalidade do STF é algo que precisa ser repensada, primeiro essas decisões monocráticas ad eternum, isso é uma coisa absolutamente negativa. Tive uma palestra em que realmente mencionei da disfuncionalidade do STF em alguns aspectos. Um desses aspectos é justamente o dessas decisões monocráticas, quando não são subordinadas em um tempo razoável e rápido para o colegiado. A liminar é uma medida por vezes realmente necessária, mas nessas hipóteses, quando o tema é da órbita do STF, a recomendação que se tem para o bom funcionamento da Justiça é que seja levado para o colegiado. Há outros exemplos, como mencionei, da disfuncionalidade, mas vamos ficar nesse porque é o tema que está sendo colocado. Infelizmente, existe muita resistência dos juízes, em razão daquele perfil que mencionei dos magistrados brasileiros. A maioria dos magistrados não entende que deve haver o juiz de garantias. Assim também houve resistência com a audiência de custódia, uma resistência gigantesca dos juízes brasileiros para que ela fosse instalada, sendo que a audiência de custódia está de acordo com toda a situação de funcionamento dentro dos aspectos das normas internacionais que o Brasil subscreveu no exercício da sua soberania e que tem por obrigação cumprir. Existe uma resistência e lamento que não haja uma decisão rápida e eficaz em relação a esse tema tão importante e tão necessário.

EB – Voltando rapidamente ao assunto sobre a PEC da presunção da inocência, o Kakay, que é um advogado criminalista amigo da senhora e seu colega no grupo Prerrogativas, suscitou na ADC nº 43 a possibilidade alternativa da execução da pena se dar tão somente após o julgamento do recurso especial ao STJ. Como a senhora vê essa proposta?
KB – O Kakay é um querido amigo e tenho a maior admiração por ele, mas temos às vezes algumas divergências e essa é uma delas. Trata-se de uma cláusula pétrea e não há flexibilização de cláusulas pétreas, não podemos flexibilizar sob qualquer aspecto. Então se nós precisamos do trânsito em julgado devemos esperar efetivamente o trânsito em julgado, o que se dá quando não há mais nenhum recurso. Não dá para flexibilizar. De fato, o STF não flexibilizou naquele julgamento que fez posteriormente das ADCs. Inicialmente, houve o julgamento do habeas corpus e só depois foram colocadas as ADCs, me pareceu que o Supremo Tribunal Federal não acolheu essa flexibilização. Realmente acho que as cláusulas pétreas e os direitos fundamentais não comportam qualquer tipo de interpretação que restrinja o seu conteúdo, você pode alargar o conteúdo, mas jamais diminuir. Nesse sentido, entendo que é necessário o efetivo trânsito em julgado de todos os aspectos colocados no processo, de modo que se couber ainda algum recurso ao STF, há que se esperar o julgamento do recurso para só depois transitar em julgado e, assim, ser possível o cumprimento da pena. É engraçado que nesse aspecto se fez muita fake news sobre o número de pessoas que seriam soltas, dizendo que todo mundo seria solto, é impressionante como isso correu. Fake news no Direito Penal estão sendo muito comuns, uma visão enganosa, algumas vezes enganosa propositadamente. Isso acontece muito no aspecto legislativo: aprovam-se normas dizendo que vai resolver isso ou aquilo, sabendo que não se resolve nada. Nos crimes hediondos acontece muito isso, se faz um discurso como se fôssemos resolver os problemas de algum tipo de criminalidade só com o aumento de pena, com um regime mais gravoso, e tudo se mostrou absolutamente ineficiente. É preciso também compreender a realidade, tanto para legislar quanto depois para julgar.

EB – A condução coercitiva depois de ter sido muito adotada, foi declarada pelo STF como não recepcionada pela Constituição. No entanto, ela foi substituída por alguns magistrados pela prisão temporária para fins de interrogatório. Como a senhora vê essa questão?
KB – É um disparate pensar que você prende uma pessoa para ela ser interrogada. Isso não tem o menor sentido, é contrário à lei. A condução coercitiva foi declarada como não recepcionada pela Constituição de 1988 e foi realizada aos borbotões, ao arrepio da própria lei. Nem as hipóteses legais estavam configuradas. Não havia resistência, não havia nem intimação prévia, foram vários casos. Aí o Supremo diz isso e os semideuses  acham que vão substituir, porque acham que devem e não porque a norma diz isso.

A prisão temporária é muito restrita, tem hipóteses fixadas que não podem ser alteradas. Não existe essa hipótese: prende-se temporariamente para fins de interrogatório. Isso não é possível. Vem daquele desvirtuamento que mencionei do papel do juiz, de compreender qual é o seu limite, que nós temos limitações constitucionais e legais. Não é possível que cada juiz queira fazer as suas próprias leis e as suas próprias normas em termos práticos. É muito lamentável esse desvirtuamento de um instituto que tem sua importância, que é a prisão temporária, mas que deve ser usada apenas quando preenchidos aqueles requisitos previstos na lei, em crimes determinados e para finalidades determinadas, na qual não se inclui o interrogatório. Não é possível prender uma pessoa para que ela se autoincrimine, para que ela seja sequer interrogada, porque o silêncio é um direito. Como você pode conectar o direito ao silêncio com prisão para interrogatório? É um dissenso absoluto, não é possível casar essas duas possibilidades, então vemos que há alguma coisa muito grave acontecendo, juízes desvirtuando a finalidade de uma prisão.

EB – Como a senhora vê a questão da independência judicial?
KB – (…) Em relação ao Judiciário nesse momento, creio que nós temos que ter um Judiciário democrático. O que é um Judiciário democrático senão aquele que é capaz de dar as respostas necessárias para o projeto de democracia que o País agasalhou na Constituição de 1988? Foi lá que o povo fixou a sociedade que almeja, quais são os seus princípios, fundamentos e patamares éticos. Creio que estamos vivendo uma crise dentro do Judiciário. São muito reveladoras as pesquisas que são feitas e indicam quebra de confiança no Judiciário. A Fundação Getúlio Vargas produz o Índice de Confiança no Judiciário (ICJBrasil) e mostrou, no último que vi, que de 2013 até 2017 o Judiciário caiu dez pontos percentuais, o que é muito significativo se nós pensarmos que nos anos anteriores não havia oscilações dessa magnitude. O Ministério Público também é avaliado pelo ICJ e caiu muito mais gravemente, o índice deles que era de 50% caiu para 28%. Então, as instituições democráticas estão abaladas. Tem uma pesquisa da Datafolha que diz que, em todas as variáveis demográficas, para 92% da população brasileira a Justiça trata melhor os ricos do que os pobres. Isso tudo está a nos dizer da necessidade de se repensar esse papel judiciário que foi colocado para todos os juízes na Constituição.

O juiz é e sempre deve ser um instrumento da Constituição, na defesa incondicional e garantia efetiva dos direitos fundamentais da pessoa humana. Essa é uma missão irrenunciável de um juiz digno e consciente dos seus deveres éticos, políticos e jurídicos no desempenho da atividade jurisdicional. Gostaria que sempre olhássemos todos os juízes (assim) e que toda a população pudesse ver isso, que os juízes realmente atuassem dessa forma. Isso só é possível se tivermos juízes independentes, não como um atributo para o juiz, mas um atributo da cidadania. Um dos aspectos que hoje está sendo muito afastado é a questão da liberdade de expressão, que atinge os juízes, inclusive. Vivemos uma fase em que a liberdade de expressão é atacada em vários pontos, na vida artística, jornalística e também no Judiciário. É muito grave, precisamos estar atentos a isso.

Assista a entrevista no canal da Revista Justiça & Cidadania no youtube: