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Uma nova visão do processo falimentar à luz das alterações esculpidas pela Lei nº 14.112/2020 e sua incidência nos processos em curso

5 de outubro de 2021

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Introdução

O processo falimentar, desde o Decreto-lei no 7661/1945 até a Lei no 11.101/2005, sempre teve como principal objetivo o encerramento das atividades do falido com a venda dos bens para a quitação do passivo perante os credores concursais, buscando uma execução coletiva com tratamento igualitário entre estes. 

O processo de falência sempre teve a conotação de um fim mal sucedido de um empreendedor incompetente, sendo encarado como uma verdadeira punição e dificultando, ou muitas vezes impedindo, o retorno do empresário ao mercado empreendedor.

O processo falimentar sempre se mostrou um martírio para os operadores do Direito da Insolvência, custoso, volumoso, moroso e de eficiência duvidosa, pois na maioria das vezes os bens pereciam pelo decorrer do tempo e os credores, praticamente, nada recebiam.

A reforma da Lei no 11.101/2005, por força da Lei no 14.112/2020, dentre muitos inovações, reformulou a concepção e a estrutura principiológica do processo falimentar, em seu art. 75, com a seguinte redação:

Art. 75. A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a: (redação dada pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

I – preservar e a otimizar a utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa; (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

II – permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia; e (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

III – fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica. (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

§ 1º O processo de falência atenderá aos princípios da celeridade e da economia processual, sem prejuízo do contraditório, da ampla defesa e dos demais princípios previstos na Lei nº 13.105/2015 (Código de Processo Civil/ CPC). (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

§ 2º A falência é mecanismo de preservação de benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial, por meio da liquidação imediata do devedor e da rápida realocação útil de ativos na economia. (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

O processo falimentar deixa de ser um fim da atividade econômica para se tornar um recomeço, com a realocação eficiente de recursos econômicos. A prioridade do procedimento não é mais somente o pagamento dos credores, mas sim a preservação dos bens e recursos produtivos na busca de geração de riquezas para o bem-estar social. Cabe agora a plena otimização do ativo da empresa falida com sua imediata venda para preservação da continuidade da produção de bens e serviços que lhe é de destino. 

A reforma não se preocupou apenas com a preservação e continuidade do ativo das empresas falidas, buscou fomentar o retorno célere do empreendedor falido ao mundo empresarial, conhecido na doutrina americana com “fresh start”, ou seja, novo começo, visando o encerramento da falência de forma rápida e eficiente, criando mecanismos impeditivos de prolongamento do procedimento de forma ilimitada.

São alguns destes mecanismos implementados pela reforma que buscaremos, de forma sucinta, abordar dando uma ênfase em sua aplicabilidade prática. 

Da imediata alienação dos bens (ativos tangíveis e intangíveis)

O novo texto legal é enfático ao afirmar que a falência é mecanismo de preservação de benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial, por meio da liquidação imediata do devedor e da rápida realocação útil de ativos na economia, impondo uma venda imediata.

A reforma  reestruturou todo o procedimento da alienação judicial, fixando prazos e mecanismos céleres, pontos que ressaltaremos a frente ao analisar o novo texto do art. 142 da Lei no 11.101/2005.

Antes, cabe destacar que os ativos ou bens da empresa que devem ser rapidamente alienados, de forma mais célere possível, devem ser interpretados de forma mais ampla possível, compreendendo além de seus bens imóveis e móveis, os incorpóreos e os intangíveis, como licenças, recursos humanos, software, clientes, patentes, marcas, direitos autorais, tecnologia, know-how, etc. Estes últimos ativos, muitas vezes, se perdiam com a decretação da falência da empresa, perdendo seu valor econômico e deixando de ser alienados. 

Para implementar a rapidez e celeridade almejada, a reforma legislativa, reorganizou as modalidades e o procedimento de alienação dos ativos com o seguinte texto legal: 

Art. 142. A alienação de bens dar-se-á por uma das seguintes modalidades: (redação dada pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

I – leilão eletrônico, presencial ou híbrido; (redação dada pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

II – (revogado);

III – (revogado);

IV – processo competitivo organizado promovido por agente especializado e de reputação ilibada, cujo procedimento deverá ser detalhado em relatório anexo ao plano de realização do ativo ou ao plano de recuperação judicial, conforme o caso; (redação dada pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

V – qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos desta Lei. (redação dada pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

§ 1º (revogado).

§ 2º (revogado).

§ 2º-A – A alienação de que trata o caput deste artigo: (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

I – dar-se-á independentemente de a conjuntura do mercado no momento da venda ser favorável ou desfavorável, dado o caráter forçado da venda; (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

II – independerá da consolidação do quadro-geral de credores; (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

III – poderá contar com serviços de terceiros como consultores, corretores e leiloeiros; (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

IV – deverá ocorrer no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da data da lavratura do auto de arrecadação, no caso de falência; (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

V – não e0stará sujeita à aplicação do conceito de preço vil. (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

§ 3º – Ao leilão eletrônico, presencial ou híbrido aplicam-se, no que couber, as regras da Lei nº 13.105/2015 (CPC). (redação dada pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

§ 3º-A – A alienação por leilão eletrônico, presencial ou híbrido dar-se-á: (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

I – em primeira chamada, no mínimo pelo valor de avaliação do bem; (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

II – em segunda chamada, dentro de 15 dias, contados da primeira chamada, por no mínimo 50% do valor de avaliação; e (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

III – em terceira chamada, dentro de 15 dias, contados da segunda chamada, por qualquer preço. (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

§ 3º-B – A alienação prevista nos incisos IV e V do caput deste artigo, conforme disposições específicas desta Lei, observará o seguinte: (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

I – será aprovada pela assembleia-geral de credores; (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

II – decorrerá de disposição de plano de recuperação judicial aprovado; ou (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

III – deverá ser aprovada pelo juiz, considerada a manifestação do administrador judicial e do comitê de credores, se existente. (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

§ 4º (revogado)

§ 5º (revogado)

§ 6º (revogado)

§ 7º – Em qualquer modalidade de alienação, o Ministério Público e as Fazendas Públicas serão intimados por meio eletrônico, nos termos da legislação vigente e respeitadas as respectivas prerrogativas funcionais, sob pena de nulidade. (redação dada pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

§ 8º – Todas as formas de alienação de bens realizadas de acordo com esta Lei serão consideradas, para todos os fins e efeitos, alienações judiciais. (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

A primeira alteração substancial se dá na simplificação das modalidades ou formas de alienação judicial, sendo suprimida as hipóteses de certames com propostas fechadas e o pregão, pouco utilizadas na prática, para se implementar uma forma padrão e eficiente nos dias atuais do mundo da Internet, o leilão eletrônico, podendo ser presencial ou híbrido. O leilão eletrônico, praticamente, se demonstra eficiente para a alienação de qualquer tipo de ativo em virtude de sua grande capacidade de publicidade e divulgação. 

Contudo, prevendo hipóteses de existência de bens que necessitam de forma mais complexas para a alienação, o legislador prevê a possibilidade de processo competitivo para sua alienação por agente especializado e idôneo, a ser apresentado mediante um plano de realização deste ativo específico pelo profissional. 

Por fim, nas modalidades de alienação, o legislador prevê ainda qualquer outra forma de alienação, desde que aprovada nos termos da Lei no 11.101/2005 e nos termos do art. 144, caput, da mesma Lei.

Seja qual for a modalidade adotada para a realização dos ativos, devemos destacar que a lei fixou o prazo de 180 dias para a conclusão do procedimento, a contar da data da arrecadação destes pelo administrador judicial. Deverá o administrador judicial, após a arrecadação dos bens, apresentar um plano detalhado, no prazo de 60 dias, de como será a estratégia e forma da alienação dos ativos, devendo respeitar o prazo supramencionado impondo uma absoluta rapidez. 

Para se implementar esta rapidez, o legislador passou a considerar a realização dos ativos como venda forçada, sendo irrelevante a conjuntura do mercado ser favorável ou desfavorável para a alienação dos bens. Esclarece, ainda, que a venda dos mesmos independe da consolidação do quadro geral de credores e não está sujeita à aplicação do conceito de preço vil.

A alienação por leilão eletrônico, modalidade padrão adotada pela reforma para realização do ativo, deverá ser realizado pelo leiloeiro em ato e edital único prevendo a realização de três certames sucessivos, com prazo de 15 dias de intervalo, devendo ser realizado o primeiro certame, com o preço mínimo para a arrematação, levando-se em conta o valor da avaliação do ativo. O segundo certame será realizado 15 dias após e terá como base para a arrematação o valor de 50% da avaliação. Por fim, caso o ativo não tenha sido arrematado, ocorrerá, no prazo de 15 dias corridos, novo certame que terá como base a melhor oferta ou preço. 

Observa-se que no novo procedimento, a lei impõe, a qualquer preço, a liquidação do ativo na busca de finalizar o mais rápido possível o procedimento falimentar. Para não se ter dúvidas da imposição legal para a imediata liquidação dos ativos, determina o art. 144-A que se restar frustrada a alienação dos bens e não havendo proposta concreta dos credores para assumi-los, caberá ao magistrado considerar o ativo sem valor e destinar a doação. Inexistindo interessados na doação, os bens serão devolvidos ao falido.

Nesta concepção da lei, podemos resumir que caberá ao administrador judicial, optando pela modalidade de leilão eletrônico, liquidar todo o ativo no prazo de 180 dias da arrecadação, inexistindo, a princípio, qualquer justificativa para a sua não realização, sendo previsto, ainda, a pena de destituição do cargo na hipótese de excesso de prazo não fundamentado. (art. 22, j, da Lei no 11.101/2005) .

Da limitação da pretensão de impugnar a arrematação com base em preço vil

Qualquer alienação judicial poderá ser objeto de inconformismo e impugnação por qualquer interessado, desde que demostre legítimo interesse na lide ao apontar direito subjetivo lesionado. Contudo, a reforma da Lei no 11.101/2005, mais uma vez, prestigiando os princípios da celeridade processual e da imediata realização do ativo, determina que as impugnações deverão ser apresentadas no prazo de 48 horas da arrematação, hipótese em que os autos serão conclusos para decisão em cinco dias. Sendo rejeitada a impugnação, o bem arrematado será entregue ao arrematante, respeitando as condições do edital. 

Sem prejuízo da implementação de prazos curtíssimos para o julgamento da impugnação apresentada em desfavor da alienação do ativo, a nova legislação impõe limitações ao recebimento de impugnações com base no valor da venda (preço vil), só sendo esta aceita se acompanhada de oferta firme do impugnante ou de terceiros para a aquisição do ativo, nos termos do edital, no valor superior ao da venda efetivada, sendo necessário a caução de 10% do valor ofertado, ficando o impugnante vinculado como arrematante fosse, para todos os efeitos legais.

Por fim, a impugnação apresentada, não baseada no preço vil, mas sim em vícios processuais, que for infundada, será considerada ato atentatório à dignidade da justiça sujeito a reparação da danos ( art. 143, parágrafo 4o, da Lei 11.101/2005).

Cabe retirar tais conclusões ao examinarmos o texto do art. 143 da Lei no 11.101/2005 e seus parágrafos, abaixo transcritos:

Art. 143. Em qualquer das modalidades de alienação referidas no art. 142 desta Lei, poderão ser apresentadas impugnações por quaisquer credores, pelo devedor ou pelo Ministério Público, no prazo de 48 horas da arrematação, hipótese em que os autos serão conclusos ao juiz, que, no prazo de cinco dias, decidirá sobre as impugnações e, julgando-as improcedentes, ordenará a entrega dos bens ao arrematante, respeitadas as condições estabelecidas no edital.

§ 1º – Impugnações baseadas no valor de venda do bem somente serão recebidas se acompanhadas de oferta firme do impugnante ou de terceiro para a aquisição do bem, respeitados os termos do edital, por valor presente superior ao valor de venda, e de depósito caucionário equivalente a 10% do valor oferecido. (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

§ 2º – A oferta de que trata o § 1º deste artigo vincula o impugnante e o terceiro ofertante como se arrematantes fossem. (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

§ 3º – Se houver mais de uma impugnação baseada no valor de venda do bem, somente terá seguimento aquela que tiver o maior valor presente entre elas. (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

§ 4º – A suscitação infundada de vício na alienação pelo impugnante será considerada ato atentatório à dignidade da Justiça e sujeitará o suscitante à reparação dos prejuízos causados e às penas previstas na Lei nº 13.105/2015 (CPC), para comportamentos análogos. (incluído pela Lei nº 14.112/2020) (vigência)

Do encerramento sumário da falência

O último mecanismo de celeridade implementado no processo falimentar pela reforma legislativa, a ser analisado neste sucinto estudo, destacando a existência de outros comandos legais que visam o mesmo objetivo, é a possibilidade do encerramento da falência no seu nascedouro, desde que não existam bens a serem arrecadados ou se os existentes não forem suficientes para custear o procedimento.

Caberá ao administrador judicial, após dar ciência do fato ao magistrado, credores, Ministério Público e interessados, e não tendo nenhum credor manifestado a vontade de prosseguir no feito assumindo suas despesas, caberá ao administrador judicial elaborar relatório finalizando o procedimento com decisão em seguida de encerramento.

Neste diapasão, a reforma legislativa alterou a estrutura principiológica da falência e criou mecanismos para a concretização e efetivação dos novos anseios da sociedade perante a atividade empresarial, deixando de ser um procedimento fim para se tornar um procedimento de recomeço, prestigiando os bens de produção e o recomeço do empreendedor. 

Da impossibilidade de incidência das alterações legislativas implementadas pela Lei 14.112/2020 às falências em curso

Após a análise de todas estas mudanças principiológicas no procedimento falimentar trazida pela Lei no 14.112/2020, cabe indagar se são aplicáveis aos procedimentos em curso e como implementar esta aplicação no caso concreto.

A solução teórica é encontrada na Lei no 14.112/2020, em seu art. 5o, que regula a sua incidência no tempo, determinando:

Art. 5º – Observado o disposto no art. 14 da Lei nº 13.105/2015 (CPC), esta Lei aplica-se de imediato aos processos pendentes.

Determina o dispositivo acima a aplicação imediata da norma aos processos pendentes, observando o art. 14 do CPC, que por sua vez dispõe:

Art. 14. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.

Efetuando uma interpretação dos dois dispositivos em conjunto, devemos concluir que as alterações principiológicas introduzidas pela Lei no 14.112/2020 devem ser aplicadas de imediato aos procedimentos falimentares em curso, não retroagindo e respeitando os atos processuais já praticados e as situações jurídicas consolidadas. 

Na prática, o operador do Direito deverá efetuar uma análise, caso a caso, devendo atentar, principalmente, para os atos processuais complexos, que se desenvolvem em várias etapas, devendo sempre respeitar a irretroatividade da norma, buscando aproveitar, sempre que possível os atos já praticas. Tal fato se justifica em razão do princípio da celeridade processual.

Sugestão de efeito eminentemente prático é a determinação do juízo falimentar ao administrador judicial que, mediante elaboração de um relatório do estado da falência, venha a implementar os novos princípios na busca da alienação rápida do ativo e encerramento do procedimento o quanto mais ligeiro possível, implementando as novas regras processuais acima esboçadas.

Conclusão

O procedimento falimentar deixou de ser um processo que priorizava o encerramento da atividade empresarial, com a mera arrecadação dos bens visando ao pagar dos credores de forma igualitária, em uma verdadeira execução coletiva, para se transformar em um recomeço para a atividade empresarial e para o empreendedor, à luz dos princípios da preservação e otimização dos ativos da empresa, da liquidação imediata dos bens tangíveis e intangíveis, da realocação eficiente de recursos econômicos e do fomento ao empreendedorismo. Para a concretização destes princípios deverá o administrador judicial, mediante cada caso em concreto, realizar relatório do estado do processo em curso e requer as providências necessárias para a aplicação imediata dos comando e princípios supramencionados, aplicando os novos mecanismos criado pela lei acima abordados.