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O inquérito policial como instrumento de garantia

17 de março de 2015

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Fernando Veloso“No cotidiano da Polícia, concretizam-se as decisões valorativas da Constituição.”: palavras de Peter Alexis Albrecht.1 Nesse sentido, a legitimação democrática da polícia judiciária, antes do papel repressivo da persecução de fatos puníveis, repousa na salvaguarda dos direitos e das garantias dos cidadãos.

Decorre de tal raciocínio que a polícia judiciária, como agência investigativa, não poderá operar adstrita aos interesses da acusação, mas à verdade real dos fatos. Frise-se: a função da polícia judiciária está indissoluvelmente ligada à apuração e elucidação da verdade dos fatos (sic: certeza processual aproximada). “A Polícia tem de investigar os fatos e de tomar as medidas necessárias ao seu esclarecimento, de modo independente, ou seja, sem que haja uma requisição ou uma ordem do Ministério Público”.2

Avançando o raciocínio, pode-se descortinar outra finalidade destinada ao inquérito policial, qual seja a de promover a garantia que tem o cidadão de não ser processado sem prévia apuração do fato e da autoria, obstaculizando ações penais temerárias. Acusar um indivíduo, imputando-lhe a autoria pela realização de um fato típico, ilícito e culpável, de forma despida de elementos mínimos de prova, é a mais chocante e nefasta violação ao senso moral da humanidade civilizada. Destarte, outra não pode ser a conclusão de que, no processo penal moderno, o escopo do inquérito policial, presidido pelo Delegado de Polícia, deva funcionar como filtro de contenção do poder punitivo imoderado do Estado, fazendo triunfar o estado de direito sobre a barbárie.

Pensamos estar completamente superada a concepção clássica atribuída ao inquérito policial, conceituado como mera peça informativa, vigilante puramente dos interesses do titular da ação penal. Segundo a afonsina lição de José Frederico Marques, “a investigação é atividade estatal da persecutio criminis destinada a preparar a ação penal”.3 Nada mais ultrapassado e distante do estado democrático de direito. Na medida em que os Delegados de Polícia são os titulares da primeira intervenção jurídico-penal do fato, logo os primeiros protetores dos bens jurídicos dos cidadãos, o inquérito policial transforma-se inevitavelmente no primevo instrumento de racionalização e organização da disciplina do direito penal. Nesse viés, deve ser acentuado que o instituto do inquérito policial precisa ser compreendido como um saber digno e humanizado da disciplina social, responsável por promover o estado constitucional de direito.

E como realizar esse projeto constitucional? Com a constitucionalização da investigação policial.

Dessa forma, urge superar a visão utilitarista do inquérito policial, que não se trata de uma teia de aranha à qual se procuram pendurar os suspeitos de uma prática criminosa, tratados como objetos de investigação. Essa concepção, que desvaloriza o indivíduo, sujeito de direitos, em favor de supostos interesses do corpo social, não serve mais aos propósitos modernos. Primeiro devem ser observadas as garantias do indivíduo e, em sequência, o Estado. Sustentar o contrário seria equivalente a pregar o recuo da cultura jurídica aos tempos medievais. A nova seiva que deve possuir os estudos e as investigações científicas do inquérito, como processo policial investigativo, é a da reconstrução da verdade. Não qualquer verdade para buscar a condenação. A verdade reconstruída à luz do princípio da Paridade de Armas entre acusação e defesa.

Para o Delegado de Polícia, a finalidade do inquérito policial será alcançada caso o resultado das diligências investigativas conclua pela identificação da justa causa habilitadora da ação penal (fato aparentemente típico, ilícito, culpável e elementos mínimos de autoria e materialidade).

Da mesma forma, a finalidade do inquérito policial restará satisfeita caso as diligências investigativas, após a análise técnico-jurídica do fato, concluam pela inocência do investigado e consequente ausência de responsabilidade penal.

Para o Delegado de Polícia, o valor da denúncia ou queixa-crime não difere do valor do arquivamento da ação pelo magistrado, uma vez ultimada a investigação que é marcada pela neutralidade. A culpabilidade e inocência do investigado são predicados ou qualidades do atributo da verdade. O Delegado de Polícia é imparcial em relação ao resultado do inquérito policial. Seu escopo, como presidente do inquérito, é aplicar corretamente a lei penal e investigar laboriosamente a verdade dos fatos, dentro das balizas constitucionalmente admitidas. Não é sem razão que Luigi Ferrajoli, na sua monumental obra “Direito e Razão”, estabelece, no que tange a necessidade de imparcialidade, paralelismo do Delegado de Polícia com os Juízes de Direito:

Em particular, a polícia judiciária, destinada, à investigação dos crimes e a execução dos provimentos jurisdicionais, deveria ser separada rigidamente dos outros corpos de polícia e dotada, em relação ao Executivo, das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário do qual deveria, exclusivamente, depender.4

De mais a mais, compete sublinhar que vivenciamos o fenômeno da policialização do processo penal, em razão das modernas técnicas de investigação criminal, calcadas em avanços tecnológicos, que transferem para o palco do inquérito policial as provas cabais do fato, debilitando o próprio princípio do contraditório no processo penal.

O Professor Geraldo Prado, em artigo de sua lavra, pontuou que:

Bernd Schünemann coloca em relevo que o processo penal das sociedades industrializadas submete-se à influência de “dois modelos rivais” , mas em ambos os casos as duas últimas décadas testemunharam a crescente importância da investigação criminal, haja vista: a) a tendência de expansão das formas consensuais penais (acordos penais), que diminuem os custos da Justiça Criminal; b) o incremento das técnicas especiais de investigação (TEI), particularmente os chamados “meios ocultos” (interceptação telefônica etc.), que caracterizam poderosa ingerência na intimidade alheia. A causa é decidida em caráter “quase definitivo” na investigação. O processo oral e em contraditório perde espaço e relevância.5

Faz-se necessário enaltecer que o emprego de tecnologias modernas no inquérito policial também favorece a ampliação da segurança e garantias dirigidas aos cidadãos, permitindo, por exemplo, maior integração entre órgãos envolvidos no sistema criminal. É o caso do sistema de controle operacional da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, que integra, em uma única base de dados, não apenas as Delegacias de Polícia, mas também o Ministério Público que acompanha procedimentos, realiza agendamento de audiências em Juizados Especiais para o Poder Judiciário, encaminha medidas cautelares em casos de violência contra a mulher ao Poder Judiciário etc., deixando clara a importância do emprego da tecnologia em benefício do cidadão.

Por todo o exposto, é de clareza hialina que a pedra de toque do moderno processo penal seja a imprescindível permeação do princípio do devido processo legal no seio do inquérito policial, e da imparcialidade na condução do procedimento investigativo, como instrumentos de garantia do cidadão.

Desse raciocínio, depreende-se também que a investigação, na busca da verdade dos fatos, deva igualmente zelar pela produção de provas que beneficiem a defesa, quiçá que afastem as suspeitas que possam recair sobre algum dos investigados, uma vez que o norte das investigações não deva jamais ser o de encontrar “um” autor, mas sim e sempre de se encontrar “o” autor, se e quando houver. A busca da verdade mostra-se imperiosa.

Por fim, para refletir, fiquemos com as lições do mestre de todos os estudiosos do direito penal, Prof. Nelson Hungria:

Há no bojo da lei possibilidades que escaparam inteiramente à vontade subjetiva do legislador. Vontade da lei não é o mesmo que vontade do legislador. Costuma-se dizer, e com acerto, que a lei, às vezes, é mais sábia ou mais previdente que o legislador. Ainda mais: a lei não pode ficar inflexível e perpetuamente ancorada nas ideias e conceitos que atuaram na sua gênese. Não se pode recusar, seja qual for a lei, a denominada interpretação evolutiva (progressiva, adaptativa). A lógica da lei, conforme acentua Maggiore, não é estática e cristalizada, mas dinâmica e evolutiva. Se o direito é feito para o homem e não o homem para o direito, o espírito que vivifica a lei deve fazer dela um instrumento dócil e pronto para satisfazer, no seu evoluir, as necessidades humanas.6

O direito a um inquérito policial garantidor de direitos, conduzido com imparcialidade, é a primeira das garantias do cidadão!

 

Notas________________________________

1 ALBRECHT, Peter Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, ICPC. p.297.
2 ALBRECHT, op. cit., p. 256.
3 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual. Vol. I. Campinas: Bookseller, 1997. p.139.
4 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, teoria do garantismo penal. São Paulo: RT. p.617, 2002.
5 PRADO, Geraldo. A investigação criminal e a PEC 3: IBCCRIM, São Paulo, ano 21, n. 248, p. 5-7, jul./2013.
6 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p.75.