Edição 300
O fenômeno do aumento da judicialização e das reclamações administrativas na seara da saúde suplementar e os possíveis efeitos da RN nº 623/2024 na sua mitigação
4 de agosto de 2025
Eliane Medeiros Diretora de Fiscalização da ANS
Marcus Braz Diretor Adjunto de Fiscalização da ANS

A Constituição brasileira de 1988 é categórica ao dispor que o direito à saúde é um direito fundamental, um “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviço para sua promoção, proteção e recuperação”.
Buscando concretizar esse direito, a mesma Constituição criou o Sistema Único de Saúde (SUS), o qual foi regulamentado pela Lei no 8.080/1990. Importante destacar que o SUS é, por definição constitucional, um sistema público, nacional e de caráter universal, baseado na concepção de saúde como direito de cidadania, sendo de implantação obrigatória em todas as esferas federativas. Ocorre que o Brasil é um país de dimensões continentais e com grande população, fatores esses que desafiam o SUS no cumprimento da sua missão. Por conta dessas questões, que dificultam o atendimento pelo SUS de todas as necessidades de saúde da população, a saúde suplementar se apresenta como uma válvula de escape, um complemento a esse sistema, oferecendo opções privadas para quem busca serviços diferenciados.
Diante da importância desse segmento, entendeu por bem o Estado brasileiro em regulá-lo, o que foi feito por meio da Lei no 9.656/1998, que regulamenta os planos e seguros privados de assistência à saúde, sendo a principal legislação que trata da saúde suplementar no Brasil. Por sua vez, para realizar tal trabalho regulatório, foi criada pela Lei no 9.961/2000 a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
A coexistência do SUS e do mercado da saúde suplementar é imprescindível para proporcionar e potencializar o acesso à saúde pela população brasileira. Ocorre que, nos últimos anos, temos constatado fenômeno envolvendo o grande volume no número de reclamações recebidas pela ANS, bem como na judicialização de questões de saúde. No Poder Judiciário, a repercussão é tanto na seara pública, quanto na saúde suplementar.
Mas quais seriam as razões para esse aumento? Embora não existam estudos definitivos sobre o assunto, há uma série de fatores que não podem ser ignorados e que certamente desempenham algum papel nesse fenômeno. Entre eles, podemos destacar a evolução da medicina (mudanças tecnológicas – incorporação de terapias avançadas de alto custo); as transformações nas estruturas de morbimortalidade (surgimento de novas doenças, retorno de doenças antigas);eo envelhecimento da estrutura etária da populaçãobrasileira, o que acarreta maior utilização dos serviços de saúde.
Também não podemos ignorar, nessa análise, o possível impacto da aprovação, nos últimos anos, de legislação (Lei no 14.307/2022, no 14.454/2022 e Resolução Normativa no 539/2022) que ampliou a cobertura a ser observada pelas operadoras, tanto pelo prisma qualitativo, quanto quantitativo.
Independentemente da existência de estudo definitivo sobre a questão supracitada, o fato é que a litigiosidade aumentou consideravelmente, na seara da saúde no Brasil, e os números demonstram isso claramente. Em âmbito administrativo, a ANS tinha, até 2018, uma média histórica de recebimento de cerca de 100 mil reclamações por ano. A partir de 2019, esses números aumentaram drasticamente, sendo que a Agência terminou 2024 com 375 mil reclamações recebidas. No Judiciário, por sua vez, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao final de 2024, verificou-se que foram ajuizadas cerca de 670 mil ações judiciais na área da saúde, aumento de mais de 93% em relação ao ano de 2020; dessas ações, quase 300 mil são dirigidas à saúde suplementar.
Seja na esfera administrativa, seja na judicial, é inegável que a maioria dos litígios recebidos tem como objeto a negativa de cobertura, a discussão sobre reajustes considerados abusivos, a falta de atendimento adequado e a dificuldade de acesso a procedimentos e tratamentos por parte dos consumidores.
Nesse contexto, é importante destacar alguns fatores que influenciam a judicialização quando o assunto é saúde suplementar, a saber:
- pedidos por cobertura assistencial fora do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, ou nele previstos, mas que não atendem à diretriz de utilização – DUT (condições de elegibilidade à cobertura), casos em que a ANS não tem competência legal para atuar (Lei no 14.454/2022);
- necessidade de decisão mais rápida do que os prazos de solução de conflitos existentes no instrumento da Notificação de Intermediação Preliminar (NIP) da Agência;
- ausência de observância aos entendimentos técnicos da ANS;
- instrumentos que a ANS não tem, mas disponíveis ao Poder Judiciário, como a obrigação de fazer e as astreints; e
- enunciados/súmulas que vinculam a decisão do magistrado em determinadas situações.
Ressalta-se que o fenômeno em questão, apesar de expressar a garantia do direito de acesso a estruturas estatais, produz efeitos danosos tanto na saúde pública, quanto na suplementar. No que diz respeito à saúde pública, a judicialização acaba gerando desequilíbrio financeiro ao gerar custos elevados para o Estado fora do programado e ao proporcionar a possível realização de procedimentos e tratamentos que não estão incorporados pelo SUS (nessa seara, destaque para os pedidos de medicamentos de alto custo) e que não possuem eficácia comprovada. Ocorre que, na saúde, lidamos, diuturnamente, com a questão de tentar harmonizar o uso de recursos limitados para atender a demandas ilimitadas, sendo certo que essa equação pode ser seriamente comprometida pela judicialização, já que a obrigação de cumprir as determinações judiciais pode dificultar o planejamento e a gestão eficiente dos serviços de saúde, especialmente em relação à distribuição de recursos (já que, para atender a decisões judiciais, muitas vezes será necessário remanejar recursos) prejudicando-se, também, a padronização de tratamentos.
No âmbito da saúde suplementar, os efeitos da judicialização não são muito diferentes. O cumprimento das decisões judiciais promove o aumento dos custos do mercado, principalmente ao determinar a realização de tratamentos e procedimentos sem previsão contratual ou no rol da ANS. Além disso, a judicialização pode promover desequilíbrio das relações contratuais ao chancelar o descumprimento das cláusulas avençadas pelas partes, gerando, assim, insegurança jurídica. Importante lembrar que a saúde suplementar se calca no mutualismo, isto é, a forma de financiamento dos planos de saúde é baseada no compartilhamento dos custos entre todos os beneficiários; os valores arrecadados devem cobrir os gastos daqueles que precisaram usar o plano.
Dessa forma, os aumentos de custo decorrentes da judicialização são inegavelmente repassados aos consumidores no financiamento do sistema mutualista, acarretando reajustes maiores no valor das contraprestações dos planos. Por sua vez, esses aumentos, ao longo do tempo, podem tornar inviável a manutenção do plano pelos consumidores, levando-os a deixar a saúde suplementar e a recorrerem ao SUS, sobrecarregando ainda mais o sistema público. Paralelamente, a diminuição do número de beneficiários nos planos torna-os mais caros, eis que teremos menos pessoas para compartilhar os custos para pagamento dos gastos de saúde do plano. O problema em questão tem sido amplamente discutido e diversas formas para sua solução ou mitigação têm sido ventiladas, destacando-se, entre elas, o fomento à informação e à educação dos consumidores, tanto sob o prisma dos seus direitos, quanto da forma de utilização adequada do serviço de saúde contratado; o estabelecimento de padrões clínicos claros e objetivos para utilização da cobertura de medicamento e procedimentos, evitando-se desperdícios e dando-se maior eficácia e previsibilidade aos serviços contratados; e o incentivo à resolução dos litígios entre os consumidores e as operadoras por meio da mediação, sem a utilização da via judicial.
É no bojo dessa última forma de solução do problema que a Resolução Normativa (RN) no 623/2024 da ANS encontra guarida para auxiliar na mitigação da litigiosidade da saúde suplementar, tanto no âmbito administrativo, quanto no judicial, ainda que o normativo tenha sido criado para seara administrativa.
Aprovado em dezembro de 2024, o normativo, que entrou em vigor em 1o de julho, define as novas regras de atendimento a serem observadas nas solicitações apresentadas pelos beneficiários nos canais de atendimento da operadora, tendo como norte as seguintes premissas:
transparência, clareza e segurança das informações;
rastreabilidade das demandas;
cortesia no relacionamento com o consumidor;
resolução efetiva nas Centrais de Atendimento/SACs; e
avaliação e monitoramento interno dos resultados obtidos.
Na realização de tais objetivos, inúmeras inovações normativas foram estabelecidas, merecendo destaque a inclusão das demandas não assistenciais no escopo da norma (a norma anterior só tratava das demandas assistenciais); a normatização do princípio da resolutividade nos canais de atendimento; a obrigatoriedade de a operadora dar acesso ao andamento da solicitação do beneficiário por meio virtual (a norma anterior só tratava do atendimento presencial e telefônico), bem com a sincronização do canais; a divulgação clara e ostensiva de todos os canais de atendimento no site da operadora, inclusive da Ouvidoria; a apresentação de resposta efetiva, em linguagem clara e adequada, ao beneficiário, no prazo previsto;a redução a termo da negativa da solicitação, independentemente de solicitação do consumidor; e o estabelecimento de vedação a respostas genéricas como “em análise”, “em processamento” no prazo de resposta da solicitação, que, por sua vez, não se confunde com o prazo da efetiva realização do procedimento.
Além disso, buscando fomentar a solução dos conflitos sem a utilização da NIP, ou seja, dentro do âmbito das centrais de atendimento/SACs das operadoras, prevê a norma a divulgação, no site da ANS, das operadoras que alcançarem a meta trimestral de excelência no IGR (Índice Geral de Reclamações) e a meta de redução do IGR trimestral, estimulando a concorrência no setor. Tais dados ainda serão considerados pela atividade fiscalizatória em outras frentes, sendo que as operadoras que alcançarem os padrões de qualidade propostos pelo normativos terão a possibilidade de obter abatimento nos valores das multas.
Ao estimular o mercado regulado a dar melhor tratamento às solicitações dos consumidores nas centrais de atendimento/SACs, pretende a ANS ajustar a curva de crescimento do seu registro de reclamações na NIP. Afinal, se o consumidor tem seu problema resolvido com mais eficiência ou consegue entender com clareza eventuais negativas às suas solicitações, a possibilidade de diminuição dos litígios é grande.
Essa afirmação ganha força pelo fato de que, desde a aprovação da RN no 623/2024 (em dezembro de 2024), a ANS já teve diminuição de 15% do número de reclamações recebidas, mesmo sem o normativo ainda ter entrado em vigor. Cabe acompanhamento dos dados, mas a primeira evidência é de que a medida tem bastante potencial.
Mas afinal, como a RN no 623/2024 pode ajudar a mitigar a judicialização na saúde suplementar?
Como dito anteriormente, a nova norma se destaca por dois prismas. O primeiro diz respeito a sua função indutora, ao buscar melhores práticas pelo mercado regulado para o tratamento das solicitações do consumidor. A RN no 623/2024 indiretamente estimula o alinhamento do setor jurídico e do compliance das operadoras para poder responder adequadamente os consumidores. Em segundo, mas não menos importante, o normativo empodera, fortalece os direitos dos beneficiários, promovendo a transparência nas informações e estabelecendo padrões de rastreabilidade, acolhimento e resolutividade de suas demandas.
Em outras palavras, a RN no 623/2024 tem como principal objetivo estimular a mediação, a autorregulação, ou seja, promover a adoção de práticas que evitem litígios na saúde suplementar, mediante a utilização, pelas operadoras, de ferramentas que valorizem o atendimento humanizado, a comunicação clara e direta e com o consumidor e, consequentemente, a resolução das solicitações encaminhadas.
Importante destacar que a ANS verificou, na Análise Impacto Regulatório que antecedeu à norma, grande espaço para prevenção de reclamações evitáveis, bem como a ampliação da resolutividade nos canais de atendimento.
Dessa forma, entendemos que o desdobramento natural do eventual fortalecimento das centrais de atendimento das operadoras de planos de saúde irá proporcionar a melhoria dos serviços contratados pelos consumidores, arrefecendo a litigiosidade atualmente existente no setor, com a consequente diminuição da procura de soluções de conflito, tanto pelo caminho administrativo (NIP da ANS), quanto pela judicialização.