Edição 71
O direito líquido e certo da vítima na reparação do dano do artigo 89, § 1º da Lei 9099/95
30 de junho de 2006
Marcelo Cailleaux Cezar
Antes do advento da Lei 9009/95, a vítima não era peça relevante para o processo, qualificando o Réu, na verdade, como figura mais importante, inexistindo uma preocupação realista e circunstancial dos efeitos do crime em relação à vítima e sua família, muito menos se dando qualquer importância na prática, a possibilidade de reparação do dano visando uma atenuação dos efeitos do delito.
Atualmente, a figura da vítima é colocada em primeiro plano, já que com a adequação dos crimes com pena máxima de 01(um) ano, e depois incluídos também em tal qualidade, os crimes com pena máxima de 02(dois) anos, como delitos de menor potencial ofensivo com a edição da Lei 10259/2001, foi permitida a composição civil dos danos antes mesmo de se falar em processo criminal.
Por outro lado, possibilitou a lei 9099/95, no seu artigo 89, a suspensão condicional do processo, nos crimes com pena mínima ou inferior a 01 (um) ano, benefício que deverá ser oferecido ao acusado, após preenchidos os requisitos legais, após o recebimento da denúncia pelo juiz, que impõe como condição a reparação do dano da vítima.
“Muitas vítimas, que jamais conseguiram qualquer indenização no processo de conhecimento clássico, saem agora dos juízos criminais com indenização, Permitiu-se a aproximação do infrator e a vítima. Ambos podem conversar, trocar impressões, externar os seus pontos de vista.
E com freqüência o infrator acaba reconhecendo a sua “infração” e a sua “vítima”. (1)
AS CONDIÇÕES NA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO DA LEI 9099/95.
A suspensão condicional do processo, esta prevista no art. 89 da Lei nº 9099/95, é um benefício que o acusado terá direito, havendo o preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos elencados no mesmo dispositivo, se revestindo como legítimo direito público subjetivo. (2)
Os requisitos objetivos se observam na exigência legal que o crime imputado ao acusado, tenha pena mínima seja igual ou inferior a 1 (um) ano, que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido ‘condenado por outro crime, ambos positivados no mesmo art. 89 da Lei
9099/95.
Os requisitos subjetivos são os capitulados no artigo 77 do Código Penal, que apresentam a necessidade para concessão do benefício da suspensão condicional do processo, que e o acusado não seja reincidente em crime doloso e que a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, autorizem a concessão do benefício.
Com o preenchimento dos requisitos acima citados, o juiz poderá suspender o processo, sendo obrigado a propor as condições previstas nos incisos do ‘§1º do artigo 89 da Lei 9099/95, quais sejam, a reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo, proibição de freqüentar determinados lugares, proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do juiz, e ainda, no comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.
Todavia, no que concerne às condições de proibição de freqüentar certos lugares e de se ausentar da comarca onde reside, as mesmas se consideram ineficazes no nosso ordenamento jurídico, tendo em vista a impossibilidade de fiscalização pelo Estado de tais institutos, se recomendando assim, a inclusão de outras condições mais adequadas e que demonstrem maior capacidade de efeito para cada caso concreto.
Na verdade, conclui-se que o Ministério Público deverá propor ao acusado as referidas condições elencadas nos incisos do § 1º do artigo 89 da Lei 9099/95, sendo que em relação à reparação do dano, se verifica que o acusado somente deixará de fazê-lo, caso não seja possível. Tal alegação do acusado no sentido de que não tem condições financeiras para reparar o dano, obviamente se impõe seja comprovada nos autos durante o período de prova, evitando-se, assim, o total desvirtuamento do objetivo da lei e flagrante injustiça.
Os princípios da adequação (proporcionalidade), e da prevenção geral e especial, devem ser observados na inclusão das condições previstas nos incisos do §1º, como também, nas “outras condições” que podem ser somadas as anteriores, conforme o §2º do artigo 89 da mesma Lei, que disciplina o seguinte:
“O juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado”.
Assim, o juiz pode especificar outras condições, além das previstas nos incisos do §1º do mesmo artigo, devendo ser respeitada em ambos os casos, a adequação com relação ao fato e à situação pessoal do acusado.
As condições estabelecidas na suspensão condicional do processo devem ser proporcionais ao fato e à situação pessoal do acusado, de modo que em relação a pessoa do acusado,
devem ser observadas o grau da sua culpabilidade (juízo de reprovação que pode ser dolosa ou culposa), os motivos (torpe, fútil etc), suas conseqüências (graves, leves etc) suas circunstâncias (modo empregado para a execução do crime, local do crime etc), o comportamento da vítima etc.
E com relação à pessoa do acusado, impõe-se averiguar a sua conduta social, personalidade, vínculo com vítima, situação econômica, local de trabalho, profissão etc.
Se no instituto da transação penal, se entende que é um acordo entre o Ministério Público e o acusado, para se evitar a propositura da ação penal, já no instituto da suspensão condicional do processo, com a ação penal proposta, se pretende apresentar ao acusado a possibilidade de uma alternativa à pena a ser proferida em sentença.
Assim sendo, apesar dos dois institutos serem conceitualmente diferentes, ‘os mesmos são uma espécie de uma “transação”, de modo que deveriam ter o mesmo objetivo, isto é, a ressocialização do acusado e sensação à vítima de que houve justiça.
Os objetivos acima mencionados se referem justamente a prevenção geral e especial do crime.
Cuida-se a prevenção geral, em proporcionar de forma eficaz, a intimidação do direito penal, a fim de que a sociedade permaneça ciente de que realmente existe a possibilidade da aplicação da sanção penal na hipótese de se realizar o comportamento previsto no tipo penal, mesmo quando está colocada de forma secundária, bem como da prevenção especial, que visa atingir a ressocialização do infrator pela via alternativa.
Não sendo de forma diferente, a suspensão condicional do processo deve revelar uma imagem tanto para a vítima, que o dano sofrido foi reparado, e para o acusado, que foi concedida a oportunidade para sua ressocialização, e ainda, para a sociedade em geral, a agilidade da Justiça e a sua não estigmatização.
Com tais premissas, reafirmam-se assim, o ordenamento jurídico e principalmente a preocupação de não gerar a impunidade.
De fato, tais objetivos são conflitantes na aplicação na prática forense, contudo, os aplicadores do Direito devem ter preocupação no sentido de que o benefício possa ser realmente concedido, com o devido atendimento aos requisitos objetivos e subjetivos, e ainda a devida aplicação de condições que realmente sejam proporcionais ao fato.
Contudo, não é difícil a constatação em inúmeros processos, com concessão da suspensão condicional do processo, sem que seja feita a correta e atenta apreciação dos dispositivos legais adstritos a matéria, no mais das vezes em razão do volume grandioso de demandas, restando para a vítima, a sensação de impunidade, e ao autor, que o crime compensa, o que deve ser combatido.
DA REPARAÇÃO DO DANO COMO CONDIÇÃO NECESSÁRIA
Não bastasse, apesar da resistência de muitos em relação à aplicação de tal instituto, o Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento no sentido de que a reparação do dano é condição necessária para a concessão da suspensão condicional do processo, o que não significa dizer que seria uma reparação prévia ao benefício, de modo que a mesma deverá ser efetuada no período prova, sob pena de revogação do benefício, ou caso o acusado provar contundentemente que não tem possibilidades financeiras para tanto, estará isento de tal obrigações, conforme prevê o inciso I, §1º, do artigo 89 da Lei 9099/95, devendo cumprir com as demais condições impostas e aceitas pelo acusado .
Vale transcrever aqui o entendimento firmado no STJ sobre a matéria, in verbis:
“RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME DE USURA. LEI N. 1.521/51. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. CONDIÇÃO OBRIGATÓRIA. REPARAÇÃO DO DANO. INTELIGÊNCIA DO ART 89, § 1º, INCISO I, DA LEI 9.099/95.
1. Esta Corte entende que a reparação do dano é condição necessária para concessão do sursis processual, salvo na impossibilidade de fazê-lo de maneira justificada. Precedentes.
2. Cabe ressaltar que a obrigação de reparar o dano decorre da prática do crime. Na hipótese vertente, a suspensão condicional do processo decorre da prática do crime do art. 4º, alínea a, da Lei n.º 1.521/51, que trata da cobrança de juros superiores à taxa permitida em lei, não se vinculando à posse e propriedade de determinado bem litigioso.
3. Recurso conhecido e provido. “
(STJ – 5ª Turma – RESP 566664 – Min. rel. Laurita Vaz – unânime – Julg
03/08/2004 – DJ 11/10/2004)
Desta feita, urge enfatizar que deve se atender os objetivos do artigo 89, §1ºinciso I da Lei nº 9009/95, que impõe que a reparação do dano seja incluída como uma das condições da suspensão condicional do processo, para que até mesmo seja possível a sua homologação pelo juiz, pois caso contrário, o magistrado tem embasamento legal para discordar do representante do Ministério Público que oferece o referido benefício sem a inclusão da reparação do dano.
A nossa melhor doutrina, é no mesmo sentido “ Urge que bem se compreenda a natureza jurídica da reparação do dano, que vem alinhada como condição da suspensão. Ela não é condição da concessão da suspensão, senão condição da extinção da punibilidade. Não é preciso que haja reparação prévia, isto é, não é necessário pagar os danos para obter a suspensão. Ao longo do período de prova é que deve ocorrer a reparação dos danos”. (3)
O ônus da prova incumbe ao autor do fato. Porém, não se trata de um dever jurídico.
“Trata-se apenas de um dever no sentido de um interesse de necessidade, interesse, necessidade de produzir a prova para formar-se a convicção do juiz a respeito o dos fatos alegados”. (4).
Sob o mesmo prisma, Chiovenda: “como não existe um dever de contestar, não existe um dever de provar, senão no sentido em que se diz, por exemplo, que quem quer ganhar deve trabalhar. Fala-se, por isso, com mais exatidão, de ônus da prova. A atividade que se despende na prova, como em geral a que se emprega em proveito próprio, é uma condição para se obter a vitória, não um dever jurídico” (5).
No entanto, faz-se mister enfatizar questão que pouco é tratada pelos Tribunais, já que para a reparação do dano, verifica-se necessária a presença da vítima, seja nos processos que têm o procedimento dos crimes de menor potencial ofensivo (Lei nº 9009/95), seja nos outros crime que têm o procedimento ordinário, apesar do legislador não ter previsto tal hipótese, mas que seria possível em decorrência de uma interpretação extensiva ao disposto no artigo 89, §1º , inciso I da Lei 9099/95.
Desta feita, na grande maioria dos processos que realizam a persecução penal pelo rito ordinário, as vítimas dos crimes não são intimadas para comparecerem nas audiências que são feitas as propostas de suspensão condicional do processo, que geralmente são feitas no Interrogatório do acusado, ou até mesmo em Audiência Especial, não sendo possível assim, o alcance dos objetivos preconizados pela Lei 9099/95, principalmente no tocante ao artigo 62 e no artigo 89, §1º, inciso I, que surgiu para prestigiar os direitos da vítima, que sempre na história do Processo Penal foi excluída na participação no processamento e julgamento dos crimes em que diretamente foi ofendida.
Assim, mesmo que haja a possibilidade da vítima se habilitar como assistente
de acusação após o recebimento da denúncia oferecida pelo Ministério Público, a fim de ficar cientificada da proposta de suspensão condicional do processo, a fim de ter o seu dano reparado, isso se revela eficaz somente para poucos, que tem condições plenas de contratar advogados capacitados que defendam seus interesses em Juízo, ao contrário de grande parte da população que depende da assessoria jurídica do Estado, hoje sem a estrutura capaz para fornecer o ideal atendimento á população.
Outrossim, a reparação mesmo sendo parcial, em razão das condições financeiras do Réu, verifica-se razoável que o acusado tenha direito de continuar a cumprir a suspensão condicional do processo, posto que demonstrou a sua vontade de minimizar os efeitos do fato e do processo para a vítima.
CONCLUSÃO
Não se objetivou o esgotamento do assunto com esta apresentação, mas simplesmente algumas considerações de um modesto intérprete da lei que presencia diariamente na prática penal forense, aplicação direta da Lei 9099/95.
Assim, sempre deve se buscar o objetivo da lei e aplicá-lo. E no caso em tela, a inserção da reparação do dano como condição da suspensão condicional do processo, o legislador assim quer, como regra. Logicamente, a exceção é a impossibilidade do acusado reparar o dano da vítima, por falta de condições financeiras, que deve alegá-la e comprovar contundentemente no período de prova.
Obviamente que o papel de cada intérprete da lei, seja advogado, seja juiz, seja promotor, é a aplicação das leis e principalmente da Constituição, buscando sempre a Justiça em cada interpretação.
Apenas para reflexão, os aplicadores do Direito devem estar atentos ao que poderá advir no futuro, pois a Lei 9099/95 foi principalmente editada além de outros motivos, para solucionar o problema da superlotação das
entidades carcerárias no Brasil, mal este criado, no mínimo, pelas equivocadas gestões dos governantes anteriores, além da fracassada intenção de erradicar a criminalidade com a aplicação de penas mais graves e supressão de benefícios, de modo que devemos lutar para que as leis sejam cumpridas, e que o Estado deixe de criar formas e métodos de trabalho para forjar a falta de investimento para o devido cumprimento das leis, devendo se almejar sempre a ideal e adequada estrutura que a população brasileira merece receber, face absurda carga de tributos que recolhem para os cofres públicos.
Notas
1. Molina, Antonio Garcia-Pablos de, Luiz Flavio Gomes, Criminología, edição, RT, 2002, Pág. 616
2. Nogueira, Paulo Lúcio Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Ed. Saraiva, 1996, págs, 108/109
3. Luiz Flávio Gomes, Suspensão Condicional do Processo Penal; Ed. RT 1995, PÁG. 186
4. Amaral Santos, Moacyr, Prova Judiciária no Cível e Comercial, vol 1, Max Limonad Editor, 1952, pág. 94
5. Conf. Original, in Amaral Santos, Moacyr, obra citada, pág. 95