“O Direito do Trabalho não acabou” 

29 de abril de 2020

Compartilhe:

Fragmento do discurso do Ministro Alexandre Agra Belmonte ao receber o título de doutor honoris causa da Universidade Santa Úrsula

O Brasil de hoje me preocupa. A economia brasileira ainda se destaca entre as maiores do mundo, mas a população está mais pobre e as elites estão cada vez mais ricas. Esse dado está estampado nos sites do Banco Mundial, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O dinheiro, concentrado nas mãos de poucos, não circula como deveria, acentuando a pobreza e a violência. O comprometimento de mais da metade da arrecadação do Estado com o gasto público, que impede investimento de recursos em políticas públicas; a má distribuição dos recursos e o baixo índice educacional, leva a maioria da população ao aculturamento, ao despreparo para os postos de trabalho, a salários baixos para a aquisição dos bens da vida e à desigualdade social.

Segundo dados do IBGE, quem recebe mais do que R$ 5.214 por mês figura entre os 10% mais ricos do Brasil. Isso é quase sete vezes mais do que a média do rendimento real de metade da população, que foi de apenas R$ 754 no ano de 2017. Cerca 80% da população tem renda familiar média per capita abaixo de R$ 1.052. Como manter nas escolas adolescentes que têm dificuldade de mobilidade urbana para chegar às escolas e ainda precisam ajudar na renda familiar?

Como consequência da globalização, da velocidade da comunicação e das transformações no processo produtivo, a partir dos anos 1980 o mundo tornou-se mais dinâmico e mais volátil, caracterizado pelo risco, incerteza e instabilidade, fenômeno que Zygmunt Bauman chama de tempos líquidos.

Esse quadro levou os empresários a adaptarem o antes tradicional contrato de trabalho por tempo indeterminado às suas necessidades episódicas, ditadas não apenas pela conjuntura econômica, mas também pela concorrência e pelas sucessivas mudanças de interesse e gosto do consumidor por produtos e serviços. 

A produção compartimentada, antes observada em atividades como montagens de automóveis e empreitadas de construção, generalizou-se e tornou o outsourcing, os contratos de curta duração e o trabalho à distância presença cada vez mais constantes e marcantes no mercado de trabalho. 

Esse novo ambiente fissurado, a que alude David Weil, professor de Harvard, provoca, por meio da utilização intermediada, presencial ou à distância, o distanciamento e desconexão do trabalhador em relação às fases e empresas que compõem a cadeia produtiva, precarizando o trabalho e fragmentando, sobremaneira, as relações sindicais. Os envolvidos perdem a noção de conjunto na cadeia produtiva e esse modelo coloca em risco a identificação dos problemas comuns a todos. Os sindicatos precisam encontrar meios eficientes de comunicação e diálogo, bem como novos paradigmas de reivindicação e melhoria das condições de trabalho, garantidores da paz social.

A introdução das novas tecnologias, de novos métodos de produção, de organização empresarial e as novas formas de contratação são essenciais à sobrevivência das empresas. São essenciais para redução dos custos, atração de consumidores e enfrentamento da concorrência. Mas terminam por tornar obsoletas inúmeras ocupações no campo e nos centros urbanos. O que provoca desemprego, exclusão e, consequentemente, precariza o trabalho e coloca em xeque a proteção social como hoje a conhecemos. Mas como diz meu amigo Roberto Fragale, o problema não está nas tecnologias e nas mudanças sociais que elas proporcionaram e proporcionam. O problema está no que fazemos com isso. Na forma como podemos ou devemos distribuir os benefícios que as novas tecnologias geram e contornar os problemas que elas trazem.

Enfim, o lado bom das novas tecnologias é que revolucionaram o mercado e os costumes, encurtando distâncias, oferecendo comodidades e tornando mais simples, rápido e menos oneroso produzir. O lado ruim é que isso não melhorou a vida dos brasileiros em geral e só serviu para acentuar a desigualdade social.

Assim ocorre porque até aqui as escolhas têm sido direcionadas à redução dos custos da produção para competição no mercado e na concentração de riquezas em proporções jamais vistas nas mãos de poucos para o reinvestimento e incorporação da concorrência.

A economia brasileira, que por força do art.170, da Constituição Federal deveria preservar os valores sociais do trabalho, promover a justiça social e assegurar a dignidade da pessoa humana, simplesmente prepondera sobre os interesses do ser humano. Em vez de inseri-lo no centro das relações e servir como instrumento para o alcance da realização material e espiritual do ser humano, atua para gerar desigualdade social. Em ambientes como o Brasil, atingido por problemas sociais de toda ordem, os efeitos são mais intensos.

Penso, no entanto, que o Direito do Trabalho não acabou. E que também não precisa ser reinventado. Ao tempo em que o trabalho subordinado perde peso normativo, o trabalho semidependente ganha força e reclama proteção, em um movimento social que merece a devida atenção.  

O Direito do Trabalho foi introduzido e reconhecido pelas Constituições sociais para que o trabalho subordinado não fosse mais tratado como mercadoria. Para que o trabalho, em atenção aos seus valores intrínsecos, permitisse, além satisfazer a subsistência do trabalhador, proporcionar-lhe a progressão material e espiritual e a consequente realização, reduzindo assim a desigualdade social. A proteção mínima legal e a negociação coletiva, fruto de diálogo entre trabalhadores e empresários, visam esse objetivo, em nome da paz social. 

Trata-se de uma conquista histórica derivada do pacto que, ao fim da I Guerra Mundial, pôs fim à questão social deflagrada no Século XIX. O princípio protetivo daí advindo visou, por meio da proteção trabalhista, compensar a fragilidade do trabalhador perante os meios produtivos e nas relações civis, por meio da supremacia da ordem pública, conferindo proteção legal à parte mais fraca nos contratos civis.

Vivemos agora uma situação em que o trabalho volta novamente a ser considerado mercadoria ou commodity e que pelas transformações sociais, boa parte do trabalho antes considerado autônomo passou a ser trabalho semidependente, incluído de forma colaborativa na rígida estrutura organizacional das empresas. Só que nos tempos atuais, ao contrário dos tempos em que o homem convivia com as máquinas e era indispensável para operá-las, isso ocorre por força das novas tecnologias, da nova estrutura produtiva e dos novos concertos sociais, que agora suprimem ou redimensionam o trabalho humano, gerando desemprego estrutural. Tudo isso sem que a sociedade esteja preparada para a reinserção do trabalhador tradicional no mercado, ou capacidade para incluir todos os trabalhadores no sistema formal de identificação, regulação e arrecadação.

A hora é do Estado se preocupar com políticas públicas de inclusão e com a construção de novas formas de proteção. Sem elas, o ser humano ficará sem perspectivas e a miserabilidade crescente trará ao mundo uma nova questão social, em um filme já visto e que não interessa a ninguém rever, pela instabilidade e atrocidades que produziu. (…)