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O Código Civil e a Constituição

19 de dezembro de 2012

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A Constituição domina a legislação, como impressiona o cidadão, porque o respeito à Constituição assegura ao indivíduo a certeza de paradigmas jurídicos perpétuos, ou pelo menos fortes e de difícil alteração. O legislador constituinte brasileiro sabe disso, e cada vez mais amplia as normas constitucionais, e em particular, na seara privada e especialmente no Direito Civil. Não significa, no entanto, que a Constituição substitua a lei civil, ao contrário, a norma constitucional consolida a norma civil, e não é possível entender aquela sem o socorro desta.

Supera-se, neste instante, o debate entre a constituição mínima (vide americana) e a constituição longa e detalhada. O Brasil tem a sua solução, porque a Constituição é brasileira, e feita para o Brasil e seus habitantes, e não para reger outra nação. Pelo menos, socorremo-nos de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, sobre a originalidade de nossa Constituição (Direitos Humanos Fundamentais, Saraiva, 1995, pg. 97). A simbiose entre institutos jurídicos constitucionais e civis leva o legislador civil a antes apreciar as normas maiores como determinantes de uma constitucionalidade, e as relações entre essas normas.

É importante para nosso tema, a conferência de Konrad Hesse (1988), afamado Professor de Frigburgo, Alemanha, e intensamente conhecido no Brasil, principalmente porque a Constituição alemã não é pródiga em normas privadas. Konrad Hesse mostra a influência dos direitos fundamentais sobre o Direito Privado.

A Constituição clássica não tem vínculos com o Direito Privado. Os direitos fundamentais são de ordem legal, e não constitucional. Esta apenas dirige-se à administração e ao legislador, não ao indivíduo, exemplarmente na partição dos poderes. Entre os indivíduos operavam direitos subjetivos reconhecidos pelas leis. Com a entrada do econômico e do social nas constituições, discute-se o Estado social. É importante assinalar em Hesse, aplicável fundamento ao direito brasileiro, que a eficácia dos direitos fundamentais de natureza privada desenvolve-se pela lei.

A Constituição brasileira tem inúmeras normas influenciadas ou correlatas com as normas de Direito Civil. Tal circunstância excita o mundo jurídico no momento da aplicação do atual Código Civil.

As constituições do século passado, inclusive a brasileira (1824) não inseriam normas políticas ou econômicas, fenômeno aclarado a partir da Constituição de Weimar (1919) refletido na Constituição brasileira de 1934, e nas subsequentes, e de grande intensidade, nesta Carta de 1988. Abre-se assim, aquilo que o Prof. Miguel Reale chamou de compreensão social do Direito (Razões de um novo Código Civil – O Estado de São Paulo, 5.9.98). Está aí a resposta da ligação da Constituição com normas de Direito Civil, porque estas têm grande conteúdo social, não fossem normas de regência do indivíduo na sociedade.

Estabelece-se esse liame a partir do direito à vida, e o respeito à dignidade humana. Está em proteção o ser humano.

A personalidade deriva da proteção ao ser humano, naquilo de mais ínsito, como afirmou Ferrara – direitos privados destinados a assegurar ao indivíduo o gozo do próprio ser, físico e espiritual (Ferrara – Trattato de Diritto Civile, pg. 388), corroborado por Orlando Gomes ao comentar o projeto de Código Civil de sua autoria, quando afirmava o respeito à pessoa humana, à dignidade humana, não se confundindo com os direitos do homem (Memória Justificativa do Anteprojeto de Reforma do Código Civil, 1963, pg. 38) Cabe distinguir a personalidade da capacidade, também a defesa da personalidade. É importante invocar Pietro Rescigno para quem, em primeiro lugar, a Constituição é a fonte dos direitos da personalidade (Manuale de Diritto Privato Italiano, 1980, pg. 205), tanto que várias cartas estrangeiras dão guarida aos direitos da personalidade (Alemanha – arts. 1o e 2o / França – Preâmbulo e art. 66). O exercício desses direitos é fundamental para sua existência. O código dedica amplo capítulo à personalidade desde o seu começo, os direitos do nascituro, e a defesa dos direitos da personalidade (arts. 1o e 11o). Na raiz desses direitos, vamos ao art. 1o da Constituição que tem entre os fundamentos do Estado democrático de direito – a dignidade da pessoa humana.

Desses princípios decorrem os direitos do nascituro, isto é, desde a concepção, ainda que o Código assinale o nascimento com vida (Pacto de San José da Costa Rica – art. 4o, II – desde a concepção – código – art. 1o). O direito ao corpo, e até ao cadáver (pela família do morto) impõe o respeito à doação de órgãos (C.F. – art. 199, § 4o), e regulada por lei ordinária. Essa diretriz é de alto significado, porque vidas seriam salvas, se houvesse maior compreensão para esse problema.

O direito ao nome, à imagem (art. 5o, II) e à intimidade (art. 5o, X), estão ligados à personalidade. Certamente devem ser pensadas novas diretrizes sobre a bioética, e também sobre os transplantes (C.F. – art. 199, § 4o e de Lei 9434), a engenharia genética (Lei 8974, de 5.1.95 c/c Dec. 1520) e até a clonagem.

O contrato deve ser repensado à luz constitucional partindo-se da sua função social, admitindo-se a resolução ou revisão por excessiva onerosidade, e até a multa contratual. Essa revisão conceitual faz pensar na chamada autonomia da vontade e na livre iniciativa contratual.

Como observa Pietro Perlingieri o elemento constante na teoria dos atos e da atividade dos particulares é a iniciativa, não a autonomia privada (Perfis do Direito Civil, pg. 18, Renovar). De grande espaço jurídico é a proteção ao ato jurídico perfeito (rectius – negócio jurídico – contrato), não podendo ser prejudicado por lei nova. Ainda no âmbito das obrigações, veja-se a conseqü.ncia do princípio da individualização da pena, e a obrigação de reparação do dano decorrente, que pode ser estendida aos sucessores, segundo a lei (C.F. – art. 5o XLV).

A responsabilidade civil do Estado já estava prevista no art. 15 do Código Civil (1916). Portanto, sujeitam-se as pessoas jurídicas de direito público. A Constituição, ao prever tal encargo, dá-lhe largueza para atingir as pessoas de direito privado prestadoras de serviços públicos (art. 37, § 6o; código – art. 43, que não inclui as pessoas de direito privado prestadora de serviços públicos, naturalmente submetidas à regra do ato ilícito (Código – art. 927). A Constituição admite o erro judiciário a indenização ao condenado (C.F. – art. 5o LXXV). É significativa, no âmbito da responsabilidade civil, a afirmação da indenizabilidade do dano moral (art. 5o, V e X).

Ao tratar do direito da empresa, o Código deve socorrer-se da Constituição, pois, os conceitos daquele estão inseridos nas sociedades de economia mista e empresa pública (C.F. – art. 173, § 1o, II). É importante a disposição do art. 41, § único do Código ao aplicar as normas do Código às pessoas jurídicas de direito público, que tenha estrutura de direito privado. Significa, assim, a obediência à norma constitucional de sujeição ao regime de empresas privadas, nas empresas públicas ou subsidiárias (art. 173, § 1o, II). Entende, portanto, que ainda rotulada de pública, a empresa pública rege-se pelo Código Civil, Código Comercial, CLT, CTN. Também as sociedades cooperativas são protegidas pela Carta Magna (C.F. – art. XVIII) e pelo Código – art. 1093. Deve-se buscar na Constituição o conceito de sociedade estrangeira (C.F. 176), porque o código é exaustivo no tema (art. 1134).

A família encontrou enorme espaço na Constituição, como já encontrara em outros diplomas estrangeiros (art. 226). O papel destinado à entidades familiares, ao contrário do conceito de unidade familiar, desloca-se do casamento para as relações familiares, com dignidade a seus membros. Como observa Gustavo Tepedino, a Carta Magna altera a tutela jurídico familiar, voltando-se para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes. Por isso, há necessidade da explicitação do termo casamento, porque a Constituição trata-o em duas versões: como ato e como solenidade. A regra do casamento é a nota, e a igualdade de direitos dos cônjuges, mas protege-se a união estável. A filiação é protegida com o poder familiar, não mais único do pater, e os alimentos devidos em razão do parentesco ou do casamento, mantida da prisão civil do inadimplente da obrigação alimentar, e o benefício ao idoso e necessitado na falta de alimentos (C.F. – art. 203, v. – código – art. 1596). É importante pensar-se na regra do casamento religioso (abstrai-se o civil) com efeitos civis (C.F. – art. 226, § 2o – Código – art. 1511). É grande o número de concubinatos e de união estável com casamento religioso, porém, sem o civil, por motivos religiosos, sociais, e até econômicos (sem condições de pagamento). Estabelece-se então a entidade familiar (Código – art. 1511). Para a proteção da família revigora-se o bem de família, aquele de uso familiar, fora de execução (Emenda Constitucional n.o 26; Código – art. 1711).

O Código extremou a distinção entre união estável e concubinato. Aquela decorre da convivência pública contínua e duradoura (C.F. – art. 226, § 3o e Código – art. 1723, veja-se a sucessão a favor da companheira ou companheiro – Código – art. 1790).

Na igualdade entre cônjuges algumas regras de competência serão revistas (CPC art. 100) e a consequência está na posição do cônjuge sobrevivente na ordem da vocação hereditária, em vantagem a outros herdeiros, bem como a sucessão de bens de estrangeiros situados no Brasil será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos, competindo com a lei pessoal do falecido, se esta lhes for mais favorável 9C.F. –art. 5o, XXXI).

Assegura-se o direito à herança (C.F. – art. 5o, XXX – C. Alemã – art. 14, (1)). Discute-se sobre a possibilidade de exclusão do herdeiros, como na indignidade e na deserdação.

O direito de propriedade só pode ser interpretado à luz da Constituição, a partir do conceito da função social (art. 5o, XXIII), perda da propriedade (art. 5o, XXIV e 170, III). Deve ser observada a chamada reforma agrária (art. 184), como determinante do direito de propriedade. A posse acarretadora do usucapião e a moradia como proteção social. O princípio da função social da propriedade aplica-se às obrigações, aos créditos e aos contratos. Os bens públicos devem ser pautados segundo a Constituição (art. 20). Exclui-se da penhora decorrente da dívida contraída na atividade produtiva, a pequena propriedade rural trabalhada pela família (C.F. – art. 5o, XXVI). Fatalmente o conceito de propriedade será examinado com o art. 182 (propriedade urbana) e o art. 186 (propriedade rural). Também as novas formas de propriedade devem ser repensadas (propriedade compartilhada como no , na propriedade nos flats ou apart – hotéis, no condomínio de edifícios, e na sempre discutida propriedade no shopping center.

É importante invocar o art. 5o, § 2o da Constituição que prevê outros direitos decorrentes do regime e dos princípios democráticos. Então vamos buscar os princípios morais regedores das relações jurídicas e sociais, o princípio da boa-fé (Código – art. 113, 187 e 422). A boa-fé dirige-se ao comportamento e a todos os quadrantes da vida em sociedade.

Não podemos esquecer nas outras hipóteses relacionadas com o Direito Civil. Assim quando a Carta Magna mencionou as taxas de juros reais (art. 192, § 3). Quando respeita o ato jurídico perfeito (art. 5o, LXXXVI) fundamental para a interpretação dos negócios jurídicos, e especialmente contratos avassalados por normas legais que desconstituem a vontade contratual.

Chegaremos a conflitos entre normas constitucionais de aplicação no âmbito civil. Exemplo, em tema debatido da possibilidade de escusa ao exame de DNA pelo suposto pai na investigação de paternidade. De um lado, o direito da criança à vida, à dignidade, ao respeito, à convivência familiar (CF – art. 227, do outro o direito do suposto pai à intimidade, à intangibilidade do corpo humano, à dignidade humana. Responde-se ao direito da criança, que o direito ao próprio corpo não é ilimitado, o Estado pode obrigar à vacinação, em nome da saúde pública. Também há direito à identidade da criança, cedido diante do direito ao corpo, que poderá ser utilizado, para fins científicos (Marc Frangi, Constitution et Droit Prive, Presses Universitaires D’Aix – Marseille, 1992 , pg. 148).

Conclui-se com observações prévias. Deveria a Constituição inserir normas de Direito Civil? As cartas do século passado, e aquelas fortes no modelo= americano, não se interessaram por regras econômicas e sociais. Com a Constituição de Weimar (1919) e a Constituição Mexicana de 1917, houve a transição para o estado social de Direito.

A Carta de Weimar tratou especificamente dos direitos fundamentais dirigindo-se ao indivíduo, à vida social, e à vida econômica. Destaquese na matéria que essa Constituição alemã tratou do casamento como fundamento da vida da família (art. 119), e a igualdade dos dois sexos, a igualdade dos filhos (art. 121). Acertou o Constituinte?

A resposta deve ser dada partindo-se de sintética ou não. Como o processo constituinte (1988) dirigiu-se a uma abertura, com inserção liberal de normas das maisvariadas espécies, responde-se, até aqui, como salutar a inserção. Será importante, em futuro, a separação das normas principiológicas, e portanto, dispensáveis de inserção, daquelas normas fundamentais necessárias com a inserção. Este tema não é original, porque o grande Clóvis Beviláqua já escrevera artigo sobre A Constituição e o Código Civil, em 1935 (RT 97, pag. 31).